Diálogos entre circo, educação e saúde no contexto do Programa Mais Educação

Alana de Sousa Carvalho Soares

Educadora Física (UCB), especialista em Ciência, Arte e Cultura na Saúde (Fiocruz), artista do movimento

Maria Paula de Oliveira Bonatto

Doutora em Saúde Pública, educadora do Museu da Vida Fiocruz, professora do Liteb/IOC/Fiocruz

Nas últimas décadas, as artes circenses ganharam muito espaço em diálogo com outras áreas do conhecimento. Hoje, por meio da renovação e ampliação de suas práticas, observa-se a potência dessa arte como estratégia pedagógica que beneficia estudantes tanto na sua saúde física como mental.

Existe consenso desde a Antiguidade Clássica e mesmo na tradição milenar chinesa quanto aos benefícios das atividades físicas sobre a saúde mental (Neto, 2012). Com base nessa constatação, foi desenvolvido um estudo no âmbito da pós-graduação em Ciência, Arte e Cultura na Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) no período entre 2016 e 2018 (Soares, 2018) buscando subsidiar reflexões sobre as experiências pedagógicas de Circo Social realizadas em uma escola pública participante do Programa Mais Educação. A intenção foi contribuir para a compreensão do papel e da abrangência das artes circenses como ferramentas educativas e de promoção da saúde. Como objetivos específicos da pesquisa, buscamos elucidar como as artes circenses podem contribuir para a promoção da saúde física e mental, além de discutir as artes circenses como instrumento de contribuição para transformações sociais e promoção de autonomia no contexto de apoio pedagógico com base em uma experiência de dois anos de ação na Escola Municipal Guimarães Rosa, localizada no bairro Magalhães Bastos, na cidade do Rio de Janeiro/RJ. Nesse sentido, o estudo buscou responder à seguinte questão: considerando a experiência relatada, quais os indícios teóricos e práticos de que as artes circenses associadas ao ambiente escolar podem contribuir para a promoção da saúde?

Para responder a essa questão, a metodologia utilizada foi a realização de uma experiência seguida de análise de atividades propostas em aula e depoimentos de professores e da diretoria da E. M. Guimarães Rosa no ano de 2017. Buscamos assim verificar o pressuposto de que as artes circenses atuam como estratégia pedagógica emancipatória junto a crianças da escola pública em contextos em que estão associadas a educação formal e a não formal.

O contexto que gerou as condições para o desenvolvimento do estudo foi a adesão da E.M. Guimarães Rosa ao Programa Mais Educação.

Um breve panorama sobre o Programa Mais Educação

O Programa Mais Educação (PME) foi criado no governo Lula da Silva pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação e Cultura, pela Portaria Interministerial nº 17/07, tendo vigorado entre 2007 e 2016. Foi um dos maiores programas educativos do Brasil no período em alcance e recursos; foi concretizado como um dos objetivos do Plano de Desenvolvimento em Educação, a principal ação indutora para a agenda de educação integral no país. Teve como foco a ampliação da jornada escolar e a reorganização curricular nas escolas públicas, com atenção especial para escolas em situação de vulnerabilidade. Visava uma educação integral como processo pedagógico que conecta áreas do saber à cidadania, ao meio ambiente, aos direitos humanos, à cultura, às artes, à saúde e à educação econômica. Oferecia atividades optativas no contraturno escolar agrupadas em macrocampos: acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde, comunicação, educação científica e educação econômica. As atividades tiveram início em 2008, com a participação de 1.380 escolas em 55 municípios dos 27 estados para beneficiar 386 mil estudantes. Em 2015, o programa possuía quase 51.440 escolas inscritas em 26 estados e no Distrito Federal. Em 2016, no governo de Michel Temer (MDB), o PME foi substituído pelo Programa Novo Mais Educação. Embora ambos sejam planos de ampliação da jornada escolar e haja certa continuidade entre eles, a concepção de educação que trazem é divergente, não dialogando com a concepção de educação integral.

Dentre seus princípios estão a centralidade dos estudantes no contexto pedagógico, a aprendizagem como processo permanente, a construção de um currículo integrado, a perspectiva inclusiva e a gestão democrática. Esse pensamento em torno da visão de educação integral não é algo novo. Na Antiguidade já se falava nessa visão ampliada de educação, que entendia o homem como um cidadão completo (Mauricio, 1981, p. 85). Para Aristóteles, a ideia de educação integral era uma estratégia para desenvolver todas as potencialidades humanas (Gadotti, 2009).

Como nos educamos o tempo todo, falar em educação de tempo integral é uma redundância. A educação se dá em tempo integral, na escola, na família, na rua, em todos os turnos, de manhã, de tarde, de noite, no cotidiano de todas as nossas experiências e vivências. O tempo de aprender é aqui e agora. Sempre (Gadotti, 2009, p. 22).

Jaqueline Moll (2009), uma das educadoras que participaram da construção do Mais Educação, afirma que a educação integral não é um mero acúmulo de crianças no espaço da escola; pressupõe um trabalho pedagógico planejado, para que crianças possam desenvolver suas habilidades de forma saudável e equilibrada. Além disso, a educação integral associada ao contexto da escola pública pode funcionar como prevenção, evitando que crianças e adolescentes estejam expostos às situações de violência tão comuns nos espaços urbanos das grandes cidades.

O ideal da educação integral traduz a compreensão do direito de aprender como inerente ao direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar e comunitária e como condição para o próprio desenvolvimento de uma sociedade republicana e democrática. Por meio da educação integral, se reconhecem as múltiplas dimensões do ser humano e a peculiaridade do desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens (Brasil, 2011, p. 7).

O programa tinha também como objetivo diminuir a evasão, agregando ao ambiente escolar diversas atividades do âmbito da educação não formal oferecidas aos estudantes, de forma a vivenciarem outras formas de experiências de aprendizado que os incentivassem a se manter na escola. Esse entendimento parte da compreensão de que a escola deve se envolver com a comunidade local, criando alternativas pedagógicas que formem cidadãos de forma integral. Nos documentos oficiais, fica evidente que as atividades extracurriculares podem ser um elo de aproximação das famílias à escola, fortalecendo o diálogo e a cooperação. Nesse contexto, observamos aspectos das teorias de Paulo Freire.

Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões, punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber que vai além do saber da pura experiência feita, que leve em conta suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história (Freire, 1991, p. 16).

A escola pública, para Freire, torna-se um lugar de encontro e desenvolvimento de autoemancipação intelectual dos filhos dos trabalhadores. Nessa perspectiva, a escola é entendida como “clima de trabalho, uma postura, um modo de ser” (Freire, 1991, p. 16).

Foi com essa expectativa que o Programa Mais Educação, foco do nosso estudo, foi implantado na Escola Municipal Guimarães Rosa. De 250 alunos matriculados, 120 eram atendidos pelo programa na época, recebendo apoio pedagógico nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, além de atividades optativas: práticas circenses, judô e capoeira.

A relevância do presente estudo se dá pela necessidade de contribuir para o aprofundamento do tema, visto que há poucas produções que relacionem as artes circenses às políticas públicas de educação, em especial o Programa Mais Educação. Assim, o objetivo deste texto é contribuir com reflexões a partir da experiência do ensino das artes circenses no contexto do Programa, discutindo seu potencial como ferramenta pedagógica para a promoção de saúde e de transformações sociais. A seguir, abordaremos como as práticas circenses corroboram essa visão no espaço escolar, a partir do conceito de Circo Social.

O Circo Social como pedagogia

As artes circenses se inserem no que é chamado de artes corporais, popularizadas antes que a palavra “circo” fosse conhecida. Segundo Bortoleto e Machado (2003), artes corporais são manifestações artísticas em que os gestos e as ações motrizes intencionadas são utilizadas. Elas se enquadram na “cultura corporal do movimento”, que a princípio, sendo um conteúdo único, foi se subdividindo em áreas como esportes, dança, circo e teatro. Cada área se desenvolveu de maneira única a partir dessas “especializações”, adquirindo linguagens especificas.

As artes circenses foram divididas em modalidades, embora as tentativas de classificá-las sejam consideradas uma forma de restrição (De Blas; Mateu, 2000,apud Bortoleto; Machado, 2003, p. 31). Goudard, Perrin e Bourra (1992) organizaram uma classificação segundo os materiais utilizados nas artes circenses. Para que se cumprissem os objetivos das aulas de Educação Física, Bortoleto e Machado adotaram essa forma de classificação segundo o Quadro 1 (Bortoleto; Machado, 2003, p. 31).

Quadro 1: Classificação das artes circenses segundo materiais utilizados

Categorias segundo os tamanhos de materiais utilizados

Modalidades de atividades circenses

Grande

Trapézio (volante ou fixo), báscula russa, mastro chinês e balança russa

Médio

Monociclo, perna de pau, bolas de equilíbrio, tecido, corda vertical, arame (funambulismo), corda frouxa, bicicletas especiais (acrobáticas e/ou de equilíbrio), trampolim acrobático (cama elástica), paradismo (mesa – pulls) e balança coreana

Pequeno

Malabares, rolo americano, mágica e faquirismo (com material pequeno: moedas, baralhos etc.), pirofagia, fantoches e marionetes

Corpóreas (Sem a utilização de materiais)

Acrobacias: de solo (chão), mão a mão (em dupla), em grupo; banquinas: contorcionismo; equilibrismo corporal individual: paradista, verticalista; clown (palhaço), mímica; ilusionismo (sem a utilização de instrumentos e/ou materiais); ventríloquo

Fonte: Adaptado de Bortoleto; Machado, 2003, p. 31.

As escolas de circo surgiram da necessidade de manter vivas as artes circenses, visto que muitos filhos de artistas circenses não seguiam a profissão dos seus pais, tendo sido muitas vezes afastados do espaço circense, enviados para a casa de parentes em busca de uma vida “melhor” (Silva,1996). O Circo Social é uma vertente que foi fortalecida por essas escolas voltadas para formação de artistas: “utiliza a linguagem circense como instrumento de inclusão social, atuando como pedagogia alternativa, que se direciona a ajudar sujeitos da classe popular a adquirirem cidadania” (Macedo, 2011, p. 1).

Observa-se que, por meio das atividades propostas em aula, os estudantes vão encontrando caminhos para expressar sua personalidade de forma criativa, desenvolvendo sua autoestima, ganhando a condição de protagonistas de sua própria história (La Fortune; Bouchard, 2011).

Muitas vezes usamos o conceito de resiliência, desenvolvido por Boris Cyrulnik, que afirma que qualquer um pode usar seu passado e experiências para progredir. Alguns jovens permanecem marcados na vida pelos obstáculos que eles encontraram, enquanto outros usam essas provações para seguir em frente. Com o Circo Social, nos esforçamos para desenvolver essa capacidade (La Fortune, Bouchard, 2011, p. 16, tradução nossa).

O Circo Social também dialoga com as teorias de Paulo Freire (1996), pois o processo criativo acontece por meio da escuta do educando pelo educador, que não se coloca como único detentor do conhecimento, aceitando ideias e propostas dos estudantes na construção de um espaço de diálogo educativo permanente.

A seguir descrevemos e analisamos as experiências das práticas circenses no Programa Mais Educação na Escola Municipal Guimarães Rosa sob a perspectiva da Promoção da Saúde.

As artes circenses como promotoras de saúde

O conceito de promoção da saúde vem sendo aprimorado e amplamente discutido há décadas; a Carta de Ottawa é um de seus documentos fundadores. A Organização Mundial da Saúde organizou, em 1946, uma definição do conceito de saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (OMS, 1946, p. 1). A ampliação do debate em torno desse conceito reconhece a saúde como conquista universal do povo brasileiro, de responsabilidade do Estado e determinada socialmente, conforme lavrado na Constituição de 1988.

Percorrendo os mesmos caminhos, foi se construindo o conceito de promoção da saúde como recurso para a qualidade de vida, havendo pré-requisitos básicos para que sejam atendidas as necessidades da sociedade (OMS, 1986). A Carta de Otawa destaca que “a equidade é um dos focos da promoção da saúde”,evidenciando que a saúde deve ser acessível a todos, minimizando as diferenças por meio de um trabalho que atenda de forma diferenciada aos que mais necessitam (OMS, 1986). A colaboração entre setores, profissionais e comunidade na promoção de saúde vai além de cuidados básicos de saúde como o documento de Ottawa (1986) destaca:

A promoção da saúde coloca a saúde na agenda de prioridades dos políticos e dirigentes em todos os níveis e setores, chamando-lhes a atenção para as consequências que suas decisões podem ocasionar no campo da saúde e a aceitarem suas responsabilidades políticas com a saúde (OMS, 1986, p. 2).

Nessa perspectiva, pode-se dizer que as artes circenses se harmonizam como uma forma de promover saúde dentro de um programa de política pública, como o Mais Educação, pois ela influencia na saúde mental e física dos estudantes, interferindo no seu cotidiano, contribuindo para a transformação de sua realidade por meio de experiências educativas e estéticas, pelo resgate de conhecimentos tradicionais, pela reverência à disciplina e à simplicidade da vida, à alegria e ao prazer de viver.

Por outro lado, é importante considerar que tanto no ambiente escolar como no universo circense existem construções corporais que trilham “melodias” diferentes. No corpo do circense acontece a apropriação dos conhecimentos de forma exaustiva para oferecer ao público a qualidade de um espetáculo que beira o improvável. Em seu texto Estética do risco: do corpo sacrificado ao corpo abandonado, Philipe Goudard (2009, p. 30) afirma: “As três etapas da realização da obra (a aprendizagem, a composição e a exploração do espetáculo) correspondem a três situações do corpo do artista: o corpo ferramenta, o corpo objeto significante e o corpo explorado”.

No ambiente da escola, o corpo do estudante passa por uma construção que difere daquela realizada no âmbito do corpo circense. Considerando a realidade do estudante de escolas públicas de grandes centros urbanos, há que se considerar que seu corpo pode carregar marcas avessas à espetacularização que denotam resistência, que variam desde ambientes familiares instáveis às ameaças concretas à sobrevivência como perseguições, violências, situações que se refletem em seu corpo físico e emocional.

O espaço escolar normalmente demanda urgência na disciplina do corpo para que o estudante atenda às necessidades da inserção social. A domesticação do corpo, termo usado por Michel Foucault, identifica esse tipo de processo na produção do que ele chama de “corpo dócil”: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Foucault, 1999. p. 163).

Rafael Trindade, utilizando a expressão “razão inadequada”, título de sua página na rede mundial, discute que esse corpo dócil também pode ser submetido para atender à grande máquina de produção por meio de técnicas de dominação:

Mais uma peça na grande máquina de produção e, como qualquer produto de produção em massa, o corpo humano passa por vários estágios de confinamento até estar acabado: família, escola, quartel, fábrica; ou sua versão moderna: família, escola, faculdade, escritório. Caso alguma coisa dê errada, hospital, igreja, hospício, cadeia (Trindade, 2018).

Compreende-se assim que há diferentes utilizações da dimensão disciplinar, tanto no ambiente escolar como em outros espaços sociais, ao lado de uma possível dimensão de autonomia e emancipação, ou seja: há uma imposição disciplinar que concorre com a possibilidade de expressão, sufocando o desenvolvimento por meio de técnicas de dominação. Nas aulas de circo, segundo a tradição, outra dimensão de apropriação da disciplina, ligada ao desenvolvimento dos potenciais do corpo e à segurança, deve promover a conscientização e a importância do respeito aos colegas, influenciando na construção de um ambiente saudável e harmônico.

No circo, o risco é presente – e é isso que torna seus espetáculos fascinantes, deixando os espectadores deslumbrados. Além dos riscos reais, há os riscos simbólicos, como o andar desequilibrado do palhaço, a possível queda da bolinha de malabares ou ainda a realidade do risco financeiro. Wallon (2009) endossa essa perspectiva:

Diante da diversidade de suas habilidades, o artista do circo se expõe deliberadamente ao desequilíbrio. Esse jogo entre o controle e a queda impõe que se corra risco, tanto físico quanto estético. Ele exibe uma instabilidade dos corpos e dos objetos que remete a um modo de vida precário, mas também ao frágil estatuto da arte (Wallon, 2009, p. 23).

Mesmo os riscos sendo de naturezas diferentes, relacionar os riscos do circo aos riscos da vida cotidiana é uma estratégia que o educador circense pode utilizar para que estudantes enfrentem seus medos e superem desafios. Mesmo em um espaço com segurança, os estudantes precisam se conscientizar das necessidades do cuidado com seu corpo e com o dos colegas, uma consciência que deve permear o coletivo, preparando-os para enfrentar os riscos a que ficam expostos tanto nas aulas como na vida.

As reflexões abordadas aqui são apenas uma amostra do grande potencial que as artes circenses oferecem para o campo da Educação e para os processos de superação psíquica entre crianças, jovens e adultos. As evidências obtidas com nossas práticas indicam a importante contribuição das artes circenses para a promoção da saúde de estudantes de escolas públicas.

As artes circenses e a expressão criativa nas práticas da Escola Municipal Guimarães Rosa

Nos encontros de práticas circenses, houve a preocupação da escuta a cada estudante, começando com a indagação sobre o que esperavam das aulas de circo. Nessa primeira conversa, houve interesse para investigar se os estudantes conheciam as artes circenses e se já foram a algum espetáculo de circo. A partir dessas conversas e observando as necessidades iniciais dos estudantes, o planejamento pedagógico foi construído, sempre com a perspectiva de contribuir com seu desenvolvimento. Houve a preocupação de que o planejamento fosse orientado pelo projeto político-pedagógico da Escola Municipal Guimarães Rosa, que tem como um dos seus aspectos “Fazer da sala de aula não só um local de transmissão de conhecimento, mas também de desenvolvimento psicossocial e cultural” (2017, p. 12).

Dessa forma, as ações educativas das práticas circenses desenvolveram-se em espaço de diálogo e construção coletiva, compartilhando a ideia de que todos poderiam colaborar nos processos de produção do conhecimento, superação dos desafios e criação de espetáculos.

Os estudantes também tiveram acesso a aulas conceituais sobre a história do circo e suas raízes, de forma que não se fixassem apenas nas destrezas físicas, mas desfrutassem do pensamento e da riqueza da contribuição teórica relativa ao universo circense e de sua contribuição ao mundo. Com o apoio da escola, foi organizada uma visita ao Unicirco, do ator Marcos Frota, para que os alunos pudessem conhecer um espetáculo circense. Essa experiência foi depois compartilhada em rodas de conversa, de forma que cada um falasse sobre suas percepções. Abastecidos dessa vivência, começamos a experimentação das modalidades que a escola ofereceu. As práticas aconteciam uma vez na semana com a participação de dez crianças que se interessaram pelo projeto, no horário de 14h30min às 16h30min, no contraturno das aulas. As aulas proporcionam benefícios físicos que Costa (2015) divide em três categorias:

Aspectos físicos: coordenação motora, propriocepção, resistência física, força muscular e flexibilidade. Aspectos mentais: concentração, criatividade, olhar crítico, confiança e disciplina. Aspectos sociais: sociabilização, desinibição, coletividade e respeito (Costa, 2015, p. 8).

Exploramos as possibilidades a partir do quadro proposto por Bortoleto e Machado (2003), com as devidas adaptações de acordo com o espaço e os recursos que a escola pôde oferecer em 2017. As aulas exploraram uma diversidade de estratégias, com a preocupação voltada não somente para o desenvolvimento das modalidades circenses, mas também para a possibilidade de expressão dos diversos campos de interesse do universo infantojuvenil. Ao fim de cada semestre, investimos na construção de um espetáculo com a colaboração de todos os estudantes.

Em uma roda de conversa, foi pedido que cada estudante sugerisse ideias sobre temas para embasar o espetáculo. Todos os temas sugeridos foram discutidos, explorando seu sentido diante das possibilidades para sua realização. Naquele ano (2017) foi sugerido e escolhido pelo grupo o título “Renascer”. Com o título em mãos, a educadora propôs uma dinâmica: que cada um explicasse, a seu modo, o que significaria a palavra renascer. Seguem-se alguns dos depoimentos escritos obtidos:

Renascer não é só nascer de novo, mas sim nascer com algo novo. Com uma experiência a mais, uma paixão a mais, um aprendizado a mais, mais que tudo, vem junto com mais esperança (G. S., 13 anos/8° ano).

Renascer para mim significa drama. Renascer significa amar, compaixão (B. F., 10 anos/5° ano).

Renascer para mim é você reviver tudo o que você ama: sua amizade, sua felicidade etc. Renascer para mim é isso (Y., 13 anos/8° ano).

Assim, toda a construção do espetáculo foi sendo desenvolvida por meio de pesquisas, discussões e votações com os estudantes em relação a todo o processo: figurino, cenário, narrativas apresentadas etc. Essa experiência vivenciada nos ensaios, aulas e na construção do espetáculo refletiu-se sobre diversos aspectos da vida dos estudantes, o que foi constatado na etapa final de avaliação feita por eles sobre a construção e a apresentação do espetáculo, conforme a discussão que se segue.

Resultados e discussão

A pergunta final de avaliação do processo foi: qual a importância do circo na vida de vocês? As respostas escritas pelos estudantes apontaram não apenas a afinidade e o prazer com as atividades desenvolvidas como também a dimensão que as atividades circenses atingiram em suas vidas:

O circo me ajudou bastante em questão de alongamento, me ajudou mentalmente, a entender o circo, para mim a aula de circo é muito boa e interessante (G. S., 13 anos/8° ano).

Eu acho a aula de circo produtiva (não é chata) é legal, me ajudou a crescer e não ficar em casa e ficando sedentária, me incentivou no judô e me ajuda a gastar energia todo dia. Eu amo o circo, e amo a A. (B. F., 10 anos/5° ano).

A oficina de circo para mim é muito legal, ela me distrai quando estou triste, também tem a tia [...] que é muito bonita e simpática, eu gosto muito dela e acho que ela de mim, enfim eu amo a oficina de circo e a professora (B. F., 10 anos/5° ano).

O reconhecimento dos benefícios das artes circenses por parte dos estudantes demonstra sua potência não só como ferramenta educacional, mas também como ferramenta de incentivo na busca de outras práticas que que possam agregar valor à sua vida pessoal e estudantil. Esse entendimento evidencia como as artes circenses promovem saúde, contribuindo para a conscientização dos estudantes individualmente e de forma coletiva para o desenvolvimento de sua sensibilidade, percepção e reflexão sobre suas práticas.

A interpretação dessas respostas, coaduna com o que chamamos de arte de aprender, que, segundo Jiddu Krishnamurti, “implica a vivência de autoconhecer-se, que também possibilita ao ser humano tomar consciência do funcionamento da mente velha condicionada em sua própria existência” (apud Soares, 2001, p. 2).

Percebemos que a criatividade dos alunos foi intensificada com a participação no processo artístico, influenciando no desenvolvimento de uma escrita poética para comunicar a relevância do circo na sua vida pessoal. Essa criação poética revela a necessidade de transcender a condição de narradores de acontecimentos para a possibilidade de recriarem-se a si mesmos por meio de uma nova expressão artística. Em consonância com esse pensamento, Severino Antônio (2016) destaca que a criança, por causa da sua espontaneidade, consegue recriar sua realidade, penetrando na poesia, acrescentando dimensões às vivências do dia a dia.

Figura 1: Desenho de P., 13 anos. Novo mundo, um dos nomes cogitados para o espetáculo, com a criação de uma logomarca

Figura 2: Desenho e texto de P. de O. F., 12 anos: O circo e suas influências. O circo influenciou muitas coisas na minha vida, como minha coordenação motora, e me ajudou bastante em outras coisas. Gosto do circo porque é muito legal. Agora sou um palhaço

Em uma conversa com esse estudante (12 anos), ele explicou que a árvore representa o conhecimento e que os estudantes estariam divididos entre duas classificações em nível de absorção do conhecimento: o médio e o aprendiz. O primeiro estaria focado apenas no aprendizado vivenciado no momento das aulas; o outro alcançaria a profundidade como raízes de uma árvore, prosseguindo com a missão de transmitir o aprendizado adquirido.

A aula de circo é bem divertida, queria que fosse todos os dias. Nós estamos pensando em uma... planejando uma apresentação. O nome é Novo Mundo vai ser muito legal! (L., 10 anos/5° ano).

A partir das experiências vividas pelos estudantes, observou-se a necessidade de expor a imaginação acerca das possibilidades, como ser um palhaço, ou de se construir um “novo mundo”. Observou-se também o reconhecimento do professor como mediador que investe em seus estudantes para que sejam despertados neles interesses diversos no sentido de aprofundar seus conhecimentos.

Durante o projeto, observou-se também, a partir de conversas informais com outros profissionais da escola, como as artes circenses contribuíram para a melhoria dos estudantes em toda a sua rotina, promovendo a assiduidade e o empenho nas atividades propostas pela escola. Em uma dessas conversas, a diretora descreveu como alguns estudantes se descobriram na atividade circense e como seu envolvimento os fez se sentirem valorizados, influenciando em seu comportamento diário. Ela acrescentou que, pela sua experiência, entende que muitos estudantes têm aptidões que vão além das disciplinas normais, e as atividades extras, como as artes circenses, podem extrair talentos que em outros espaços pedagógicos não seriam oportunizados.

Considerações finais

A partir da experiência relatada no presente estudo, consideramos que as artes circenses podem ser consideradas uma estratégia de promoção de saúde ao serem inseridas em políticas públicas como o Programa Mais Educação, em especial no enfrentamento das consequências da vulnerabilização de crianças e jovens que vivem em sociedades marcadas pela desigualdade e por violências. Considerando sua relevância, observamos a importância de realizar mais estudos sobre o tema, de forma que haja mais evidências sobre os resultados das relações entre artes circenses e políticas públicas, principalmente nas interfaces com a promoção da saúde. Por meio de tais estudos, podemos perceber mais claramente a amplitude de possibilidades inerentes às artes circenses, que continuam desbravando espaços, mantendo sua característica de “arte de resistência”. Essas reflexões indicam que essas atividades contribuem para que as pessoas que se apropriam delas desenvolvam diferentes olhares para vivências do seu dia a dia, criando conceitos e experiências estéticas valorizadas por meio do autoconhecimento, concretizado em processos individuais e coletivos de construção do ser humano, ainda inacabado, conceito sabiamente descrito por Paulo Freire (2005): “Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente” (Freire, 2005, p. 50). Assim, este estudo também não pretende ser conclusivo. Sua pretensão está em expor a potência das artes circenses no ambiente escolar e a importância de sua inserção por meio de políticas públicas educacionais que se mostraram importantes para o desenvolvimento integral de jovens em nosso país.

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Publicado em 29 de novembro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

SOARES, Alana de Sousa Carvalho; BONATTO, Maria Paula de Oliveira. Diálogos entre circo, educação e saúde no contexto do Programa Mais Educação. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 44, 29 de novembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/44/dialogos-entre-circo-educacao-e-saude-no-contexto-do-programa-mais-educacao

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