Ensino domiciliar e o desafio dos antissociais

Esteban Lopez Moreno

Professor doutor da Fundação Cecierj

De repente, encontrei-me homeschooler, ou, como preferem, educador de ensino domiciliar (ED). Foi bem assim, por acaso. Era, anteriormente, um pai “normal”, com forte convívio social com outras famílias e confiante na escola. Cheguei, eu próprio, a ser diretor voluntário, uma possibilidade que as escolas Waldorf arbitram aos pais por meio de eleições. Os anos seguiram, minha criança virou pré-adolescente e a antiga escola não lhe coube mais. Precisávamos de outra; procuramos e procuramos, uma dúzia delas, e optamos ao final pela mais artística – era o que se dizia – e com um projeto pedagógico arrojado – era o que se dizia também. Duplo fiasco – digo.

Descobrimos com o tempo o que parecia impensável: nenhuma escola iria nos atender. Precisávamos de um apoio diferenciado; entretanto, por mais que ensejássemos junto aos coordenadores pedagógicos, não conseguíamos. Bem que tentaram, foram longas horas de escuta mútua, mas a escola tinha seus vícios, nós tínhamos os nossos. Respeitando o interesse de nossa própria filha, montamos, com a ajuda de uma família que se juntou a nós, o nosso próprio sistema de ED para o Ensino Médio. Não conhecíamos qualquer outro caso nessa faixa de ensino. Eram páginas desconhecidas – agora para duas jovens e para nós, pais neófitos.

Foram inúmeras horas de pesquisa e planejamento; contamos com o apoio de outros professores e criamos, ao final, em que pese a falta de modéstia, um ótimo projeto. Optamos por contratar diversos professores, um para cada disciplina escolar, e eles fizeram um trabalho incrível. Recebiam por hora/aula bem mais do que se estivessem lecionando na escola (provavelmente por isso, mas não apenas por isso, o ED seja temerário a alguns empresários e donos de escolas) e nós investíamos praticamente o mesmo que seria a mensalidade em uma boa escola. O valor era apertado em nosso orçamento, mas justo, e todos estávamos contentes. Se o serviço não nos satisfizesse, mudávamos de professor, o que foi feito diversas vezes, sempre com muito diálogo e carinho. 

Durante o percurso, outras famílias se juntaram, depois se afastaram; o ritmo era forte, tínhamos um calendário a cumprir e não cedemos na qualidade. Na verdade, eram as duas alunas que demandavam mais. Mesmo tendo finalizado todo o currículo do Ensino Médio, elas desejaram ampliar o estudo em Filosofia e Letras até mesmo depois de passarem em seus exames de seleção para a universidade. Ganharam gosto pelo estudo, pelo conhecimento, formaram uma relação virtuosa com os professores e hoje seguem as carreiras que almejam. Em apenas um período de universidade, já se engajaram em trabalhos comunitários; uma delas recebe, por isso, apoio financeiro da própria instituição. 

Entretanto, vivemos por três anos à sombra amarga da ilegalidade e sentimos esse drama muito próximo a nós, por meio de uma família amiga, com poucos recursos financeiros, que se engendrara em outra iniciativa de ED. Era uma ação comunitária bem elaborada, conduzida por pais e professores, que atendia a algumas famílias em uma região carente de escolas de uma pequena cidade no Sul de Minas. Isso, contudo, não evitou que os pais fossem denunciados por “abandono intelectual” de seus filhos. A dor de tal acusação foi tremenda, contrariou os seus melhores esforços e resvalou negativamente em toda a comunidade. A denúncia, é claro, se baseava em suposições falsas. 

Nossos amigos viram-se obrigados a matricular seu filho na única escola pública da região. Antes de entrar na escola, o desejo do rapaz era se formar em História; seus olhos vicejavam sempre que conversava sobre algum grande “causo” do passado, o qual ele pesquisara avidamente. Ocorreu o que temíamos: desistiu dos estudos, apenas e a muito custo finalizou o Ensino Médio. Não é uma generalização, mas é frequente que tal seja o efeito de quando se impinge um ensino de má qualidade.

Há algumas semanas, o então candidato Ciro Gomes resumiu em poucas palavras seu entendimento sobre as famílias que optam pelo ED: para ele somos “fanáticos doentes”. Não são poucos os que pensam assim (apesar de serem poucos os que se expressam desse modo); vão desde juízes do Supremo, presidentes de sindicatos, associações e entidades diversas; talvez até bem-intencionados, mas também cheios de incompreensões e preconceitos sobre essa modalidade. A principal justificativa contrária apoia-se – ao menos ao que nos levam a crer – na necessidade de socialização de nossos jovens. Às maledicências de Ciro, acrescente-se, pois, a mais recorrente: somos “antissociais”.

Freud dizia que, “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Essa frase tem um sentido óbvio: há muito de si quando falamos do outro. Mesmo sendo uma obviedade, vale deixar claro o sentido do que entendemos como sendo antissocial.

Antissocial é não conseguir andar na rua sem responder de forma truculenta, machista e ofensiva à primeira provocação. Antissocial é usar a toga preta para inocentar corruptos deslavados e impingir-nos os piores desmandos jurídicos, como tristes lembranças do clientelismo e autoritarismo do qual querem nos fazer acreditar que estão a nos proteger. Antissocial é produzir manifestos ou declarações ensejando que estão preocupados com a educação dos jovens quando apenas reforçam as engrenagens de uma máquina social que tem por centro seres incompletos, despersonalizados, escravizados mentalmente. Isso é parte do grande espelho o qual não tardam a rejeitar. 

O ED já é realidade há décadas na maioria dos países que nos despertam profunda inveja em seus indicadores educacionais. Boa parte dos jovens que deixaram de frequentar as quatro paredes de uma instituição escolar se destaca sobremaneira nos testes de avaliação em larga escala. A lista de grandes personalidades que passaram pelo ED é imensa e inclui estadistas como Winston Churchill, quatorze ex-presidentes norte-americanos, cientistas do quilate de Albert Einstein, Erwin Schrödinger, Michael Faraday, Pierre Curie e Benjamin Franklin, filósofos, escritores e artistas como Bertrand Russell, Leo Tolstoy, Charles Dickens, William Blake, Claude Monet – e é uma pena não citarmos ao menos mais uma dúzia. Não podemos nos esquivar de memorar que o nosso afamado Paulo Freire também usufruiu do ED em sua formação.

É claro que o ED tem limitações e enfrenta vários desafios, como a socialização, que é essencial ao ser humano. No entanto, trata-se de uma modalidade de ensino que há muito tem demonstrado resultados relevantes e computáveis. As questões que permanecem como aguilhões em nossa alma são: por que o desconhecimento do ED deveria sair ganhando em nossa sociedade? Por que as pessoas de bem, entidades e órgãos afins, ao invés de levar para o campo ideológico, não se esforçam em reconhecer a sua importância e contribuir para a melhora de suas fragilidades, já que se colocam tão interessados na melhoria da educação no Brasil? Por que não podemos locupletar as duas modalidades, tradicional e domiciliar, cada qual com seu valor próprio, que certamente se somam? Ou, pelo menos, respeitar o que não conhecem, não advogando contra e dando um mínimo de sentido próprio e adequado? 

No dia 19 de maio de 2022, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que autoriza o ED no Brasil. Uma vitória arduamente trabalhada por muitas famílias brasileiras, representando os anseios de um setor expressivo da sociedade. O projeto ainda precisará ser analisado pelo Senado, onde poderá sofrer alterações e, se for o caso, retornará à Câmara. Torçamos, pois, que sigam nossa fé, acreditando na socialização de nossos jovens, na educação e no futuro.

Publicado em 13 de dezembro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

MORENO, Esteban Lopez. Ensino domiciliar e o desafio dos antissociais. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 46, 13 de dezembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/46/ensino-domiciliar-e-o-desafio-dos-antissociais

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