A utilização da história em quadrinhos Turma da Mônica como ferramenta pedagógica para o ensino sobre a covid-19
Fabiana da Conceição Pereira Tiago
Professora de Biologia (Departamento de Ciências Biológicas, Cefet/MG)
Rosália C. Sanábio de Oliveira
Professora de Geografia (Departamento de Geociências, Cefet/MG)
Viviane Moreira Maciel
Professora de Geografia (Instituto Coração de Jesus)
Érico Anderson de Oliveira
Professor de Geografia (Departamento de Geociências, Cefet/MG)
As primeiras expressões gráficas executadas pelo homem, certamente, foram aquelas produzidas nas paredes das cavernas, uma maneira dos conhecimentos necessários à sobrevivência serem passados de geração a geração, antes mesmo do surgimento da comunicação pela fala. Luyten e Lovetro (2020) afirmam que as primeiras histórias em quadrinhos da história humana foram as sequências desenhadas nas paredes das cavernas. Também reiteram que, através dos hominídeos, foi “inaugurada a primeira biblioteca do mundo. Ao invés de livros, havia sequências desenhadas, ou seja, os quadrinhos” (Luyten; Lovetro, 2020, p. 12).
Na contemporaneidade, as histórias em quadrinhos (HQ), enquanto forma de manifestação cultural, permanecem como “comunicação ativa do ser humano, tendo uma mesma base estrutural” do passado, “essa linguagem não pode ser desprezada em nossa evolução e nem ser vista como mera diversão” (Luyten; Lovetro, 2020, p. 13).
O uso das HQ no ambiente escolar não é recente, pois docentes do século passado utilizavam-nas na escola como material para auxiliar no processo de ensino-aprendizagem. Tico-Tico foi a primeira revista em quadrinhos publicada no Brasil, em 1905, e ela possuía, inclusive, um segmento educacional. Nas décadas de 50 e 60 do século XX, foram disponibilizadas as revistas Ciência em Quadrinhos e Enciclopédia de Quadrinhos cujo objetivo era o ensino das ciências para a juventude. Posteriormente, no início dos anos 60, Maurício de Sousa publicou suas primeiras HQ (Cabello et al., 2010).
Apesar do avanço das HQ, no Brasil, o préstimo das revistas em práticas pedagógicas não era considerado adequado e as revistas eram vistas com aversão por muitos profissionais da área de educação, isto é, eram marginalizadas. A história dos quadrinhos, na escola, modificou-se e, atualmente, passou a ser objeto de estudos acadêmicos, mirada como um meio de interlocução diversa, reunindo imagens e palavras, resultando em um diálogo criativo, inteligente e, na maioria das vezes, bem-humorado com o leitor (Neto; Silva, 2015).
A popularização das HQ, com finalidades educacionais, principiou-se ainda no século XX, quando cartilhas educativas, romances e contos ganharam o gosto popular. Elas apresentam, desde então, um caráter de comunicabilidade verbal, já os quadrinhos apresentam uma proposta diferenciada, aproveitando a linguagem verbal e a não verbal. Eisner (1999) define as HQ como arte sequencial, empregando imagens (linguagem não verbal), com cenas, personagens e a descrição dos pensamentos e das falas dos atores da história ali narrada (linguagem verbal), relacionando distintas mensagens e discursos dentro de um mesmo universo (Mendonça, 2008).
A linguagem textual das HQ é feita por meio de balões, que usam os aparatos de formatação do texto para dar a ideia de importância, de entonação e de emoção. Também, há a aplicação de símbolos associados às exteriorizações faciais das personagens durante suas interações com outros protagonistas da narrativa e com o leitor. Para o entendimento do enredo, o aluno deve interpretar tanto a linguagem simbólica quanto as palavras, em conjunção com o cenário onde acontece a história, resultando em uma instrução participante. Dessa feita, insere-se o estudante na sociedade como ser reflexivo, sendo um excelente instrumental a ser aplicado ao ensino (Neto; Silva, 2015). Para que o processamento do aprendizado tenha sentido e seja significativo, é determinante que o discente “queira aprender” (Pelizzari et al., 2002).
A alfabetização científica deve florescer como um eixo transversal que perpassa todas as disciplinas – Português, Geografia, Ciências, Matemática. Mais do que a leitura em si mesma e suas diferentes linguagens e arcabouços que as expressam, a HQ é uma delas, como possibilidade de leitura do mundo. Embora, como professores, sejamos formados em determinada licenciatura que nos dá uma visão particularizada do conhecimento, para ampararmos nossos alunos, precisamos transpor os limites da formação específica e nos concatenarmos a outros saberes, fazendo uma mescla de correlações e auxiliando os estudantes a “raciocinar sobre”. Helena Callai (2005), ao expor o que seria aprender Geografia, no Ensino Fundamental, esclarece a respeito de “ler o mundo da vida, ler o espaço”:
Uma forma de fazer a leitura do mundo é por meio da leitura do espaço, o qual traz em si todas as marcas da vida dos homens. Desse modo, ler o mundo vai muito além da leitura cartográfica, cujas representações refletem as realidades territoriais, por vezes distorcidas por conta das projeções cartográficas adotadas. Fazer a leitura do mundo não é fazer uma leitura apenas do mapa, ou pelo mapa, embora ele seja muito importante. É fazer a leitura do mundo da vida, construído cotidianamente e que expressa tanto as nossas utopias, como os limites que nos são postos, sejam eles do âmbito da natureza, sejam do âmbito da sociedade (culturais, políticos, econômicos) (Callai, 2005, p. 228).
O surgimento das gibitecas, no país, também ajudou a democratizar e impulsionar as HQ como uma leitura com potencial didático-pedagógico, o que deixou parte do estigma de “leitura menor” para trás. Em 1982, foi inaugurada a primeira gibiteca no Brasil, em Curitiba, e, no momento, a maior gibiteca encontra-se no Estado de São Paulo, com mais de 120.000 exemplares (Neto; Silva, 2015).
Para Araújo (2008), com o despontar da internet e outros meios de comunicação rápida, os quadrinhos se propagaram e se tornaram parte da cultura, aguçando o interesse dos alunos, convertendo-se em uma configuração encantadora, ao conciliar diversas áreas de conhecimento e as predileções de tais sujeitos. Nessa perspectiva, os quadrinhos podem ser adotados como recursos didático-pedagógicos para a alfabetização científica e artística (Araújo, 2008).
As HQ, hoje, emergem, então, como um suporte educativo, diversificando a linguagem, tornando-a lúdica e atrativa para os discentes, sendo sugerido seu emprego para a Educação Básica pelos PCN (Brasil, 1997), porque apoiam a compreensão e a aprendizagem da língua, assim como a contextualização de aspectos sociais e históricos (Neto; Silva, 2015). Sendo assim, as HQ são destinadas às escolas pelo PNBE (Programa Nacional de Biblioteca na Escola), desde 2006, e distribuídas nacionalmente para as escolas públicas (Neto; Silva, 2015), fato que favorece a formação de novos leitores.
Com isso, vislumbramos os quadrinhos ampliando seu espaço na área de divulgação científica e da saúde pública para a sociedade, como um todo, mas, particularmente, para o segmento infantojuvenil. É patente o aumento de cartilhas informativas no modelo de quadrinhos as quais veiculam saberes essenciais e colaboram na prevenção de várias doenças, incluindo a covid-19. Segundo Mendonça (2008), o emprego da linguagem simples e de imagens chamativas dos quadrinhos revelam um potencial didático para o leitor - seja ele um estudante, seja um cidadão comum - por portar uma essência lúdica de fácil discernimento, com personagens que se identificam com o leitor (Mendonça, 2008).
Um bom exemplo disso são as cartilhas divulgadas pelo Ministério da Saúde e outros órgãos do Governo Federal as quais contam com os recursos das HQ que abrangem inúmeras temáticas como alimentação saudável, saúde da criança, puericultura, cidadania, inclusão social, combate à dengue, febre amarela, coronavírus, agrotóxicos, queimadas, entre outras. A linguagem aproveitada ostenta informações científicas recorrendo às locuções coloquiais afeitas à população. Normalmente, o divulgador do conhecimento é uma personagem da história que, dentro do ambiente lúdico, aproxima-se do leitor, cria um panorama agradável para o processo de assimilação daquele conteúdo específico e leva, ao público, de modo mais compreensível, assuntos normalmente complexos.
A aproximação do linguajar das HQ com o leitor é um facilitador para a transmissão do conhecimento científico que, na grande maioria das vezes, é retratado, para o público escolar, a partir de um vocabulário hermético e de difícil absorção. De modo geral, os discentes não compreendem, com clareza, os conceitos científicos, principalmente, por estarem apartados de seu cotidiano, ligando o seu aprendizado à memorização.
De acordo com Rubem Alves (1981, p. 26), para discernir sobre o espírito científico, “a primeira tarefa que se impõe, portanto, é ver o problema com clareza”. E uma segunda condição se impõe: “Quem não diz com clareza, não está vendo com clareza. Dizer com clareza é a marca do entendimento, da compreensão” (Alves, 1981). E o mesmo autor continua: “O que significa encontrar a solução para o problema?”. A elucidação do problema “é o caminho que o levará de onde você está até onde você deseja ir” (Alves, 1981, p. 26). À vista disso, cabe ao docente mediar o encadeamento didático para que o aluno faça o seu próprio caminho.
Logo, o vocabulário, para ensinar ao estudante um conceito científico, tem que ser inteligível, porque não há como dissociar essa característica da linguagem. Para que ocorra essa alfabetização científica, como descrito por Oliveira (2009), parte-se do pressuposto teórico de que a linguagem científica desenvolve, evidentemente, o pensamento investigativo a partir do aprofundamento do raciocínio, amplificando-se, igualmente, a própria linguagem científica. O domínio da linguagem, pelo aluno, transforma-se, assim, num valioso instrumento de desenvolvimento dos processos cognitivos e orienta a ideação do próprio conhecimento (Oliveira, 2009). Por consequência, as HQ são ótimas vias de comunicação para o ensino e para a aprendizagem das Ciências, dentro e fora da escola, já que, por meio delas, todos têm acesso às informações, democraticamente.
Nas HQ, encontramos a combinação das imagens, das palavras e do que não é dito, mas deve ser presumido por quem as lê. Lúcia Santaella e Winfried Nöth (1998, p. 42), ao se pronunciarem sobre o poder das imagens, da Semiótica e da mídia, ilustra sobre a “autonomia semiótica da semiose visual” e reitera que tanto os “aspectos da autonomia como também da interdependência entre linguagem e imagem devem ser levados em consideração”.
Ainda com relação à linguagem visual, Roland Barthes (1972) explana sobre as possibilidades de leituras estéticas da imagem:
[A imagem] ilustra não apenas o objeto ou seu trajeto, mas também o próprio espírito que o pensa; esse movimento duplo corresponde a uma dupla leitura; se você ler a gravura de baixo para cima, você revive o trajeto épico do objeto, sua expansão complexa no mundo dos consumidores; você vai da natureza à sociabilidade; mas se você ler a imagem de cima para baixo, começando pela vinheta, você reproduz o caminho do espírito analítico (Barthes, 1972, p. 98-99).
Barthes ainda enriquece a discussão quando desvenda o prazer da leitura e como ele acontece, admitindo-o como “aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura” (Barthes, 2013, p. 21). Desse modo, as HQ aliam várias qualidades que fazem jus a uma exploração didática bem delineada.
A leitura das HQ abre, para o seu leitor, outras alternativas para que ele decifre não só esse gênero textual como a própria humanidade e, com aprazimento, viabiliza-se a sua constituição como leitor analítico. Em referência a essa eventualidade, aludimos a Brandão (1994):
Essa concepção de leitura como um processo de enunciação e do leitor como co-enunciador se inscreve num quadro teórico mais amplo que considera como fundamental o caráter dialógico da linguagem e consequentemente sua dimensão social e histórica. A leitura como uma atividade de linguagem é uma prática social de alcance político. Ao promover a interação entre indivíduos, a leitura compreendida não só como leitura da palavra, mas também como leitura do mundo (Paulo Freire) deve ser uma atividade constitutiva de sujeitos capazes de interligar o mundo e nele atuar como cidadãos (Brandão, 1994, p. 89-90).
A satisfação, no ato de ler, com os quadrinhos, segue-se pelo fato de o leitor “ler em seu próprio timing [...] também dá voz em sua imaginação aos personagens. Interpreta junto com eles e cria o som” (Luyten; Lovetro, 2020, p. 16). Essa magia ao explorar a imaginação mantém vivos, ainda nos dias atuais, inúmeros leitores de revistinhas em quadrinhos apesar dos equipamentos eletrônicos e das animações das personagens (Luyten; Lovetro, 2020).
Desenvolvimento
A ludicidade é uma característica habitual das crianças; contudo, ao entrar para a escola, o aluno começa a desaprendê-la, como se a alegria não fizesse mais parte de sua vida. No ensino, o lúdico oportuniza um maior intercurso entre o estudante, o material que Lovetro provoca para o seu interesse e deleite e o brincar com o outro, dialogando e avultando talentos. Consequentemente, a ludicidade pode beneficiar, com efetividade, a apropriação de conteúdo, desde que haja planejamento por parte do docente e os propósitos deste estejam perceptíveis para todos.
Rubem Alves (1994, p. 11) já afirmava que “a educação, fascinada pelo conhecimento do mundo, [...] esqueceu-se de que sua vocação é despertar o potencial único que jaz adormecido em cada estudante”. O aprender e o ensinar são as faces de uma mesma moeda, nela estão impressas as marcas sociais, intelectuais e afetivas existentes na dimensão humana de cada sujeito.
Ainda em consonância com Alves (1981, p. 15), pontuamos como se dá a ação científica, procurando-se harmonizá-la “a partir daquilo que nós e outras pessoas fazemos o dia todo”. Para tal autor, é preciso conciliar “o fazer ciência” em correspondência “a cozinhar, a andar de bicicleta, a brincar, a jogar e adivinhar. A ciência nasceu de atividades como estas” (Alves, 1981, p. 15).
Desse jeito, a ciência localiza-se no cotidiano dos indivíduos, incluindo até a simples apreciação de uma HQ, pois a fruição prazerosa de uma história desse tipo pode suscitar ponderações futuras e uma das pontes, para que isso aconteça, está no aprender com alegria. Para o discente, a HQ será sempre uma distração; para o docente, uma probabilidade didático-pedagógica.
As riquezas das HQ são ainda denotadas por serem produtos culturais e de entretenimento e permitirem múltiplas interpretações – imagéticas, verbais, do mundo (desde que tenham sentido para seu leitor). As HQ promovem o simples prazer da leitura, de um modo informal, e geram divertimento. Eisner (1999) reitera que a formatação da revista em quadrinhos “apresenta uma sobreposição de palavra e imagem” e, para ser incorporada pelo leitor, este tem que usar “as suas habilidades interpretativas visuais e verbais” (Eisner, 1999, p. 8).
Além do mais, “os processos psicológicos envolvidos na compreensão de uma palavra e de uma imagem são análogos. A estrutura da ilustração e da prosa são similares” (Eisner, 1999, p. 8). As HQ aplicam “imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis” usados inúmeras vezes e, por “expressarem ideias similares, tornam-se uma linguagem”, [...] a “gramática da arte sequencial” (Eisner, 1999, p. 8). Dessa forma, há uma “hibridização” que é atada ao leitor quando se dá o raciocínio.
Pelo maior acolhimento e pela universalização, as HQ precisam ser observadas cuidadosamente. Mais recentemente, converteram-se em meios aditivos à aprendizagem, aparecendo em livros didáticos de todas as disciplinas. Mas elas devem ser analisadas para além da mera ilustração suplementar dos livros e de uma preleção neutra, apolítica de seu uso, mantida historicamente pelos meios de comunicação e pelas classes dominantes até o presente. A superficialidade de sua aplicação, quando ocorre em sala de aula, espelha “o conservadorismo [...], deixando os educadores tranquilos quanto ao alerta das catequistas de décadas passadas: não haverá consequências perturbadoras da ordem” (Silva, 1989, p 53).
Precisamos, na verdade, “desvendar o caráter mitológico e ideológico das ações das personagens” das HQ, uma vez que atuam no “comportamento psicológico e social dos seres humanos na sua realidade e em situações concretas” (Silva, 1989, p. 56). Mesmo estando imersas nas “contradições do momento histórico”, os quadrinhos têm potencial transformador em direção à conscientização (Soares, 1989, p. 60). Soares (1989) ainda assinala um direcionamento para o docente:
O educador que não dispuser de tempo para grandes
leituras poderá realizar, também ele, seu trabalho junto a seus alunos. Basta ler as histórias com eles e elaborar um roteiro de questões para debates que apontem para a identificação do roteiro, a coerência das atitudes, os interesses envolvidos. A leitura repetida de várias histórias de uma mesma personagem ajudará a formar o perfil dos heróis e anti-heróis (Soares, 1989, p. 53).
A Turma da Mônica, em especial, é um quadrinho histórico que tem cultivado o imaginário das crianças por décadas e, atualmente, além da HQ, também pode ser vista pelas crianças em animações na internet. Tanto os desenhos animados quanto as HQ relatam as aventuras de crianças que são amigas e vizinhas, vivenciando circunstâncias atuais e educativas. Evidencia-se, nas obras de Maurício de Sousa, uma preocupação com os problemas contemporâneos, trazendo as informações científicas de modo singelo e descomplicado para as crianças, aproximando-as das ciências por incentivarem a tomada de decisões, instigando-as a ajuizar cientificamente.
Ao processar uma leitura de um quadrinho em numerosos graus de profundidade, o aluno não só lê as palavras e as imagens, mas também as interpreta dentro do seu cabedal cultural e de sua perspectiva de mundo. Nessa lógica, cria-se um diálogo com outros estudantes e o professor, suscitando posicionamentos refletidos, alcançando uma argumentação criteriosa diante de uma questão problematizadora e chegando, igualmente, à sua possível resolução.
A partir de Luyten e Lovetro (2020), citamos propriedades positivas das HQ, para além das que foram enumeradas anteriormente:
1- Quadrinhos é a linguagem mais próxima dos alunos, desde a infância até as universidades. 2- Cria uma nova relação colaborativa entre alunos e professores. 3- Ameniza a violência e estimula o companheirismo com os colegas e professores. 4- Os ensinamentos são apreendidos sem a resistência pela obrigação de aprender. 5- O processo ajuda em qualquer matéria apresentada nas Diretrizes Curriculares Nacionais. 6- Os alunos que leem Quadrinhos têm uma absorção do conteúdo 30% maior que em mídias eletrônica e virtual, segundo pesquisas realizadas neste campo. 7- Nossos autores de quadrinhos são comparados aos melhores do mundo (Luyten; Lovetro, 2020, p. 9)
Sendo assim, por seus atributos conhecidos, as HQ deveriam estar sendo mais desfrutadas, pedagogicamente, nas salas de aula, e ficam as dúvidas sobre por que isso não acontece tão frequentemente: falta de explicitação sobre esse recurso? Exiguidade de opções disponíveis ou escassez de pesquisas na área? Nada disso é verdade ou procede, pois, se o docente desejar fazê-lo, contará com expedientes e sugestões disponíveis gratuitamente em sites e repositórios na internet.
A HQ Covid-19, da Turma da Mônica, educa para a cidadania porque se direciona a uma educação com consciência, aquiescendo ao leitor/aluno examinar a sua história, coadunando-a com os eventos reais. Ou seja, leva o discente a projetar conclusões, cooperar para a transformação social e ser sujeito atuante no próprio decurso de aprendizagem (Neto; Silva, 2015).
Essencialmente, no tocante aos problemas de saúde e à divulgação de prevenção e cuidados em relação às doenças, as HQ são dispositivos importantes para contrapor conceitos errados expostos nas mídias e nas relações em comunidade. Por propagarem dados corretos, do ponto de vista científico, tais textos conduzem os alunos a questionamentos plausíveis diante das concepções errôneas de muitas crenças populares, que, por se manterem no senso comum e sem averiguação científica, favorecem a irradiação de considerações incorretas, aumentando os riscos de contágio e a propagação de epidemias.
Em vista disso, julgamos a obra de Maurício de Sousa – Turma da Mônica Covid-19, como um ótimo apetrecho didático que pode coadjuvar o trabalho do docente no ensino desse conteúdo transversal, iniciando o aluno em sua alfabetização científica (Figura 1).
Figura 1: Imagem ilustrativa da HQ da Turma da Mônica intitulada Covid-19
Metodologia
A HQ Covid-19, da série Saiba Mais da Turma da Mônica, foi facultada para uma turma do 7º ano do Ensino Fundamental de uma escola privada – Colégio ICJ (Instituto Coração de Jesus), na cidade de Belo Horizonte/MG. Logo após a seleção da história que melhor atendia aos intentos pedagógicos – coligar a alfabetização científica com as inquirições sobre a covid-19, empreendeu-se o planejamento das etapas a serem executadas, dando início ao projeto.
Os alunos efetivaram a leitura em casa e, posteriormente, de forma on-line, foi efetuada uma discussão coletiva com a turma, com base nas dúvidas levantadas pelos estudantes. Previamente, antes do debate, eles enviaram à professora a relação dos tópicos mais marcantes e, na sequência, esses pontos direcionaram a mesa-redonda on-line com a temática: “Pandemia da Covid-19”, prevenção e busca da vacina.
Os alunos, nas aulas on-line, foram convidados a refletir sobre os seguintes tópicos levantados por eles:
- A doença covid-19, suas características biológicas, meios de transmissão, cuidados de higiene, pessoais e coletivos, seus impactos para a saúde e economias locais, nacionais e mundiais;
- Outras consequências causadas pela pandemia no mundo (expansão, fechamento de fronteiras, desemprego, isolamento social, desigualdade de acesso à infraestrutura de saúde, subnotificação de casos e mortes);
- O que é Ciência e qual o seu papel na atualidade;
- O posicionamento do aluno como consumidor de leitura científica e crítica;
- Mudanças no comportamento da população mundial e projeções para o pós-pandemia;
- A relevância de uma vacina contra o SARS-Cov-2 e as consequências para a população mundial.
A professora, durante o diálogo coletivo, explorou os mapas dispostos livremente na internet, exibindo-os para o enriquecimento das conversações. Entre eles, o mapa-painel da Johns Hopkins University & Medicine para que os discentes relacionassem o que estava sendo debatido em sala com as informações – visualizadas espacialmente em tempo real, sobre a covid-19, a doença ocasionada pelo novo coronavírus.
Em continuidade, os participantes montaram um painel com imagens e comentários, ilustrando a importância da Ciência na eficácia das pandemias, valendo-se da ferramenta digital Padlet. A realização do painel coletivo permitiu que os alunos estruturassem suas ideias, associando-as com os fechamentos coletivos e as ponderações da educadora, por meio de reflexões dos conceitos científicos, contribuindo para a aprendizagem aprofundada do conteúdo abordado.
Resultados
No atual cenário de incertezas causadas pela pandemia da covid-19, as escolas, assim como as pessoas, estão se ajustando para sobreviver e realizar um ensino digno, tentando adequar as medidas de prevenção à doença via isolamento social e ensino remoto.
O docente tem uma considerável atribuição no processo de ensino e, dentro dessa excepcionalidade, o seu ofício se agiganta. A docência demanda investigar e utilizar ferramentas e metodologias criativas para a sala de aula, preferencialmente lúdicas, para motivar o aluno em meio a esse afastamento social indesejado, mas necessário. Nem sempre contando com um suporte técnico e/ou infraestrutura mínima desejável, de modo geral, o aprendizado docente digital tem acontecido no fazer diário das aulas on-line, na sua ambiência de moradia, com o trabalho de ensino remoto exercido de casa; com todo tipo de pressões e demandas a serem atendidas.
Por maiores que sejam os esforços, o ensino remoto não substitui o ensino presencial, todavia, é o que, nesse momento, consegue-se fazer. Os alunos têm dificuldades em suas atividades escolares remotas, muitos podem encontrar-se desmotivados e cansados pelo excesso de conteúdo, tarefas etc. Exige-se do discente foco, organização, autonomia e vontade de aprender. No Ensino Fundamental II, os estudantes contam, dentro do possível, com a ajuda dos familiares, que acabam ficando sobrecarregados também.
Por essa razão, é crucial que o educando compreenda o panorama atual de pandemia e torne-se um agente ativo na proteção e combate à doença, nesse primeiro momento, em seu ambiente familiar e, depois, a partir da abertura paulatina dos serviços públicos e das atividades comerciais, na coletividade.
Os dados sobre a pandemia são veiculados maciçamente na sociedade pelos canais de comunicação. Existem os discursos corretos cientificamente e aqueles ambíguos e duvidosos, deixando parte da população confusa sobre como deve agir de fato para se proteger. Ao internalizar informações sobre a temática da covid-19, como no projeto apresentado, os discentes conectaram as informações com suas vidas, não só neste momento, mas indagando sobre as perspectivas. Ao auxiliarmos o aluno, nessa jornada de alfabetização científica, ele pode tornar-se um cidadão apto a assumir posições que modifiquem a sua realidade, assessorando as transformações da sociedade.
O emprego da HQ, nas dinâmicas aqui relatadas, assegurou um aprendizado significativo, pois, na lógica de Pelizzari et al. (2002), os estudantes “quiseram aprender”, os quadrinhos da Turma da Mônica mostraram-se envolventes e interessantes para os participantes e houve abordagem sobre a pandemia de uma forma divertida. Além disso, as reflexões produzidas pelos estudantes demonstraram que houve mudanças no comportamento diário deles, com o aumento dos cuidados com a medidas de higiene pessoal, como lavagem das mãos, uso de máscaras, cumprimento pelos cotovelos, utilização contínua de calçados em casa, assepsia dos produtos comprados nos supermercados antes de serem consumidos etc.
A HQ ainda permitiu a aproximação da linguagem científica aos estudantes; as personagens clássicas infantis de Maurício de Sousa abriram espaço para a argumentação proativa de temas e vocabulários científicos concernentes à pandemia do covid-19, como prevenção, higiene, vírus, vacinas e o valor da ciência em nosso cotidiano.
Uma vez que os princípios científicos foram trabalhados interdisciplinarmente, congregando conceitos de Geografia, de Ciências, de Português, os alunos investigaram as pandemias no decorrer da história, realizaram mapas mentais, ampliaram o seu glossário científico, conectaram a cartografia com a espacialização da doença e a interpretação de informações nos mapas e assimilaram as características básicas do microrganismo causador da covid-19. Deu-se, de fato, uma aprendizagem verdadeira por meio da qual mudou-se o olhar que os estudantes dessa turma, do Ensino Fundamental II, tinham sobre a pandemia, convertendo, processualmente, as informações em conhecimentos. Os alunos sentiram-se, pois, mais valorizados e responsáveis por suas ações ao abarcarem esses conhecimentos sobre a covid-19 e suas intercorrências.
Considerações finais
A concretização deste trabalho ratificou que os quadrinhos podem beneficiar, substancialmente, o ensino em sala de aula, como uma prática pedagógica cativante para os discentes. Nesse sentido, de maneira multidisciplinar, o projeto moveu-se didaticamente entre diversas formas de linguagens e meios; contextualizou problemas sociais, ambientais e de saúde pública; levou o educando a meditar sobre seu próprio comportamento social, o que significa ser e atuar como cidadão.
As HQ não são ferramentas transformadoras da prática pedagógica em si mesmas, mas dispositivos “potencialmente significativos” (Ausubel, 2000). O ensinar criticamente, com consciência e com fins precisos através delas, poderá, sim, convertê-las em “pontes” dialógicas nas quais os alunos farão interconexões e alcançarão êxito na elaboração de sentidos. Nesse caso, o projeto relatado, apurado criativamente nas circunstâncias apresentadas, facilitou o desenvolvimento da alfabetização científica dos discentes, ocorrendo a transposição das vivências das personagens da Turma da Mônica, com a mediação da professora, para a realidade dos membros da turma de sétima série do Ensino Fundamental.
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Publicado em 08 de fevereiro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
TIAGO, Fabiana da Conceição Pereira; OLIVEIRA, Rosália C. Sanábio de; MACIEL, Viviane Moreira; OLIVEIRA, Érico Anderson de. A utilização da história em quadrinhos Turma da Mônica como ferramenta pedagógica para o ensino sobre a covid-19. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 5, 8 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/5/a-utilizacao-da-historia-em-quadrinhos-turma-da-monica-como-ferramenta-pedagogica-para-o-ensino-sobre-a-covid-19
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