Desenvolvimento de analogias como instrumento de ensino-aprendizagem em Citologia: transporte vesicular
Paty Karoll Picardi
Mestra em Bioquímica, PhD em Clíníca Médica - Ciências Básicas
Atualmente, metáforas e analogias são amplamente empregadas no ensino da Biologia. O conceito de analogia é baseado na Matemática e significa “proporção” (Haaparanta, 1992). Sua abrangência ocorreu pelo fato de a analogia não corresponder a uma identidade de duas relações, pressupondo igualdade simétrica, mas a semelhanças de correlações (Perelman, 1970), tendo por objetivo o entendimento do desconhecido a partir de algo conhecido. Independentemente das diferenças entre as definições do termo analogia desenvolvidas por vários autores, ao longo dos anos, como Newby (1987), Duit (1991) e Treagust (1992), elas sempre traçarão relações entre algo que seja conhecido e algo pouco conhecido ou desconhecido.
Desde os anos 1990, o uso de analogias no ensino da Ciência auxilia na compreensão de conceitos científicos, aproximando a linguagem científica da linguagem comum (Girardi, 2005). Para melhor compreensão, podemos destacar as analogias encontradas nos livros didáticos e ordenadas, conforme Ferraz e Terrazzan (2001), em nove categorias: Simples, Simples referindo-se às funções, Simples referindo-se à forma, Enriquecida e Dupla ou Tripla.
Alguns autores defendem o não uso de analogias, pois o uso inadequado desses recursos poderia causar confusões e favorecer o surgimento ou a manutenção de conceitos inadequados por parte dos alunos. Embora o uso de analogias, de modo inconsciente ou automático, como descrito por Terrazzan (2003), possa ocorrer, esse uso no ensino é um recurso didático que traz pontos mais positivos do que prejudiciais, visto que os seres humanos são predispostos a pensar analogicamente e, consequentemente, a utilizar analogias em suas explicações.
Realizando uma busca pela internet, observamos que a palavra cognição, por exemplo, é definida como o processo da aquisição do conhecimento através da percepção, da atenção, da memória, do raciocínio, do juízo, da imaginação, do pensamento, da linguagem e da associação. A associação está intimamente ligada ao aprendizado, e acreditamos que o desenvolvimento de recursos do raciocínio analógico auxilia na compreensão do conhecimento científico.
Vários autores, como Bahar et al. (1999), Öztap et al. (2003), Riemeier e Gropengieber (2008) e Tekkaya et al. (2001), reforçam que assuntos relacionados à Citologia são comumente citados pelos alunos como difíceis de serem compreendidos e suas dificuldades independem da idade e do gênero. As dificuldades na aprendizagem em relação aos conteúdos de Citologia são decorrentes da complexidade dos termos e de como eles são apresentados vinculados a um padrão científico próprio da disciplina, o que dificulta o processo de aprendizagem dos alunos (Cid; Neto, 2005). O ensino da Citologia tradicional foi construído por meio de uma aprendizagem memorística e de investigações microscópicas junto a análises bioquímicas. Estudos demonstram que assuntos de natureza microscópica relacionados a processos fisiológicos promovem dificuldade na aprendizagem dos alunos. Conteúdos de natureza abstrata, como é o caso da Citologia, não se aproximam da realidade cotidiana dos discentes.
O objetivo deste estudo é o uso de analogias como recurso didático para facilitar o entendimento sobre o transporte e endereçamento de proteínas na célula. Acreditamos que essa estratégia didática promove um avanço no entendimento sobre os compartimentos celulares e suas relações, bem como a compreensão de como as proteínas são transportadas. Diferentemente das células procariontes, as quais possuem apenas um único compartimento intracelular envolto por uma membrana plasmática, uma célula eucariótica é bem mais complexa, com compartimentos funcionalmente distintos envoltos por membranas. Para entender a célula eucariótica, é primordial conhecer como a célula cria e mantém esses compartimentos, o que ocorre em cada compartimento e como as moléculas se movem entre eles. Existem três caminhos fundamentalmente diferentes pelos quais as proteínas se movem de um compartimento a outro: o transporte mediado, o transporte transmembranar e o vesicular. Muitas vezes, torna-se difícil o entendimento e a memorização dos mecanismos moleculares, de como as proteínas são direcionadas, reconhecidas e mantidas nesses compartimentos. Por isso, o desenvolvimento de analogias para o entendimento desses mecanismos é de grande valia para o aluno e cria novas abordagens para a aprendizagem de tema tão importante. Portanto, propomos uma abordagem didática baseada em analogias para que os alunos entendam o mecanismo de transporte vesicular de proteínas.
Resultados
A síntese de todas as proteínas começa em ribossomos no citosol, exceto aquelas que são sintetizadas nos ribossomos das mitocôndrias e dos plastídios. Seu destino depende de sinais de endereçamento, como se as proteínas tivessem seu endereço gravado nelas. Esse endereço “gravado” são sequências específicas de aminoácidos que direcionam ao seu destino. Então, podemos dizer que cada proteína, ao ser sintetizada, carrega a informação de onde ela ficará dentro da célula. Devemos ressaltar que algumas proteínas não carregam um sinal de endereçamento e, consequentemente, permanecerão no citosol (Alberts et al., 2017).
Para entender os princípios gerais pelos quais os sinais de endereçamento operam, ou seja, como esses mecanismos direcionam as proteínas aos seus lugares de destino, propomos uma abordagem didática baseada em analogias para o transporte vesicular. É importante ressaltar que existem três caminhos diferentes pelos quais as proteínas se movem de um compartimento a outro: o transporte mediado, o transporte transmembranar e o transporte vesicular. O transporte vesicular tem origem na transferência de proteínas solúveis do retículo endoplasmático rugoso ao complexo de golgi. A partir desse ponto, as vesículas podem permanecer no citoplasma à espera de um sinal, direcionar-se aos lisossomos ou à membrana plasmática, pois as proteínas transportadas não atravessam uma membrana, o transporte vesicular transporta proteínas somente entre compartimentos topologicamente equivalentes. As vesículas de transporte são carregadas com uma leva de proteínas derivadas do lúmen de um compartimento. À medida que se desprendem da membrana, o conteúdo é descarregado em um segundo compartimento por fusão com a membrana que o envolve. Uma vesícula, ao encostar no compartimento alvo, precisa ser reconhecida por esse compartimento. Como isso acontece? Existem proteínas tanto na membrana da vesícula quanto na membrana do compartimento alvo e essas proteínas se reconhecem, uma se entrelaçando na outra, de modo que a membrana da vesícula fique próxima da membrana do compartimento alvo a ponto de as duas se fundirem. É nesse momento que as proteínas de dentro da vesícula são lançadas para o interior do compartimento alvo. Quando utilizamos a palavra transporte e a correlacionamos ao nosso cotidiano, logo imaginamos pessoas sendo transportadas por diversos meios, como carro, moto, avião etc. Então, comparamos as vesículas com um ônibus. Digamos que você queira chegar a determinada cidade, mas para isso precisa pegar um ônibus. Você pegaria qualquer ônibus? A resposta será não. Você pegará um ônibus específico para o seu local de destino. O ônibus até pode parar em outra cidade pelo caminho, mas você só descerá do ônibus quando ele chegar ao seu destino. Para isso, você compra um bilhete de passagem com a informação do seu destino e o entrega ao motorista. O motorista fará o reconhecimento do seu bilhete e só após isso deixará você entrar no ônibus.
As proteínas que estão no interior do retículo endoplasmático rugoso e são destinadas, por exemplo, aos lisossomos passarão pelo complexo de golgi, onde sofrerão possíveis modificações. Porém elas serão descarregadas apenas nos lisossomos. O retículo endoplasmático rugoso seria a cidade da qual você saiu e os lisossomos, a cidade de destino. Entre a cidade de origem e a de destino, pode haver paradas – no caso, o complexo de golgi. Como dito anteriormente, nesse tipo de transporte, vesículas de transporte carregam proteínas de um compartimento topologicamente equivalente a outro, ou seja, pessoas que são transportadas em um ônibus não irão desembarcar em uma pista de pouso apropriada para um avião. Nesse momento, os alunos entenderão o caminho que as vesículas permeiam (retículo endoplasmático rugoso – complexo de golgi) e seus possíveis destinos finais (lisossomos, membrana plasmática ou citoplasma, aguardando um sinal). Outro ponto importante a destacar nessa analogia é que o bilhete, contendo a informação sobre o destino de desembarque do indivíduo, faz analogia com as sequências de endereçamento das proteínas (sequência sinal: sequência de aminoácidos específica). Após a chegada aos seus destinos finais, a sequência sinal será retirada da proteína, assim como aquele bilhete de chegada já não terá mais utilidade para o indivíduo. Assim, o aluno entende primeiro o mecanismo de transporte para depois conhecer os nomes das proteínas de reconhecimento que permeiam todo o processo; por isso não as citamos.
Muitas questões surgem do alunado, tais como: existe a possibilidade de alguma pessoa (proteína), entrar no ônibus (vesícula) onde não era para ter entrado? E se isso acontecer? Falhas podem acontecer. Afinal, quem nunca pegou um ônibus errado? Na célula, não seria diferente. Não é raro que proteínas que deveriam permanecer no retículo endoplasmático rugoso entrem na vesícula e cheguem até o complexo de golgi. Essas proteínas residentes do retículo endoplasmático rugoso também contêm sinais (sequência de aminoácidos) que mostram o local onde elas devem permanecer. Caso isso ocorra, o ônibus retorna ao local de origem, deixando as pessoas que não deveriam estar no ônibus. Após a explicação, o professor pede aos alunos que pesquisem no livro os nomes dessas proteínas de reconhecimento. Acreditamos que essa abordagem metodológica facilita o entendimento do aluno, gerando uma comunicação mais acessível entre professor e aluno, contribuindo para a melhoria do processo de ensino-aprendizagem.
Referências
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Publicado em 22 de fevereiro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
PICARDI, Paty Karoll. Desenvolvimento de analogias como instrumento de ensino-aprendizagem em Citologia: transporte vesicular. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 7, 22 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/7/desenvolvimento-de-analogias-como-instrumento-de-ensino-aprendizagem-em-citologia-transporte-vesicular
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