Festival de pipas: a abordagem cultural da Educação Física contribuindo para a autonomia dos alunos

Cosme Luiz da Silva Conceição

Licenciado em Educação Física e mestre em Educação (UFRRJ), professor de Educação Física do Ensino Fundamental (SME/RJ)

A atividade pedagógica aqui proposta foi realizada no ano de 2017, em uma escola municipal do primeiro segmento do Ensino Fundamental, com funcionamento em turno único com sete horas diárias, localizada em Guaratiba, em um bairro da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

A escola contava com vinte turmas distribuídas em um número igual de salas de aula, com laboratório de Artes, refeitório, quatro banheiros internos, um pátio interno e uma ampla área externa dividida entre uma parte gramada e arborizada, outra parte concretada, duas quadras poliesportivas com uma dessas cobertas e vestiários desativados.

A atividade planejada e descrita foi constituída visando à construção de uma prática pedagógica que oportuniza a autonomia aos alunos participantes, ainda que mediada ocasionalmente pelos professores presentes. A atividade, coordenada pelo professor regente de Educação Física, foi uma proposta multidisciplinar, contando com a participação de outros professores regentes e da professora de Arte.

Objetivos

Os objetivos foram retirados das competências específicas da Educação Física para o Ensino Fundamental listadas na BNCC (Brasil, 2017) a fim de atender a demanda presente no documento curricular:

  1. Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos;
  2. Experimentar, desfrutar, apreciar e criar diferentes brincadeiras valorizando o trabalho coletivo e o protagonismo;
  3. Usufruir das práticas corporais de forma autônoma para potencializar o envolvimento em contextos de lazer.

Conteúdo programático

A unidade temática considerada foi Brincadeiras e Jogos, usada na prática de soltar pipa foi planejada para atender a turmas de diferentes anos do Ensino Fundamental contemplando tanto o contexto das brincadeiras regionais, conteúdo correspondente às turmas de 1 a 3 anos, quanto o contexto mundial destinado às turmas de 4 a 5 anos. As pipas são manifestações culturais presentes em diversos países do mundo, com suas respectivas variações. 

Preparação para o trabalho de campo

O planejamento da ação pedagógica foi organizado ao longo do bimestre iniciando-se com o planejamento de uma proposição de atividade que ocupasse todo o dia letivo. Após a confecção do plano de trabalho, o professor regente divulgou e convidou os demais professores interessados em colaborar com o festival. Os que aderiram ao projeto colaboraram também financeiramente para a aquisição dos materiais e recursos necessários à execução e que não havia no estoque da escola, a saber, alguns rolos de linhas, varetas para a confecção das pipas e pipas já construídas. 

Desenvolvimento da prática

Caixa de texto: Figura 1: Grupos de trabalho

Figura 1: Grupos de trabalho

No dia da realização do festival, os professores que aderiram ao evento dirigiram suas turmas para a ampla área externa da escola, onde o método pedagógico foi realizado em etapas. A primeira etapa foi a confecção das pipas em um processo colaborativo, estimulando a autonomia dos alunos. A fim de resolver a atividade proposta, as crianças que iriam participar da atividade foram levadas à quadra da escola pelos professores responsáveis pelas turmas e perfiladas na arquibancada. O professor de Educação Física perguntou às crianças se sabiam confeccionar uma pipa. Aqueles que sabiam, foram recrutados como voluntários responsáveis pelos grupos de trabalho organizados, dividindo-se o total de alunos restantes pelo número de alunos responsáveis. Aos pequenos núcleos, foi disponibilizado o material básico para que cada aluno confeccionasse a pipa enquanto os alunos responsáveis articulavam mais materiais.

Caixa de texto: Figura 2: Colagem no papel de seda

Figura 2: Colagem no papel de seda

Os grupos de trabalho foram sentados em roda e distribuídos pela quadra, sendo supervisionados pelos professores e auxiliados por outros três professores presentes que sabiam confeccionar os brinquedos populares. A etapa durou até o horário do almoço.

Caixa de texto: Figura 3: Prática de empinar pipa

Figura 3: Prática de empinar pipa

A segunda etapa constituiu-se na prática de soltar a pipa com os alunos, recebendo linhas e voltando a organizarem-se os grupos pré-definidos a fim de viabilizar a ação de “soltar pipa” quando os alunos focavam em aprender e em ensinar a pipa a alçar voo. Por inviabilidade de algumas pipas alçarem voo, alguns alunos foram orientados a guardarem-nas para receber pipas já prontas, adquiridas pelos professores. Outros alunos, foram encarregados de produzir e aprender sobre a utilidade do cabresto e da rabiola. Após a viabilização das pipas, iniciou-se a prática lúdica nos espaços disponíveis a céu aberto dentro da escola.

Referencial teórico

Começaremos esta seção conceituando a pipa, objeto tematizado na prática lúdica relatada, cuja principal referência teórica usada foi a Coleção Gira Mundo (2004), distribuída como anexo da revista Nós na Escola (2004), antiga publicação da SME.

A coleção faz uma breve contextualização teórica do “brinquedo com armação de bambu e papel, preso por uma linha” (2004) que, de acordo com a publicação, é conhecido pelo mundo por vários nomes e está presente em diversos momentos da História da humanidade, sem origem definida. A publicação descreve um exemplo de como, na cultura chinesa, a pipa desempenhou diversos papéis, como destacado no trecho: 

Os chineses empinaram as primeiras pipas, há três mil anos, por objetivos religiosos. Mais tarde, os militares usaram pipas para enviar mensagens durante os combates. Conta-se que, em suas andanças pela China, o grande navegador Marco Polo, ao ver-se encurralado por inimigos, fez voar uma pipa carregada de fogos de artifício presos de cabeça para baixo, que explodiram no ar em direção à terra, provocando o primeiro bombardeio aéreo da história (Rio de Janeiro, 2004, p. 1).

O material da Coleção Gira Mundo também vinha com informações sobre ventos, veículos aéreos inspirados nas pipas e a famosa experiência de Benjamin Franklin, empinando uma pipa que carregava uma chave metálica durante uma tempestade para provar sua teoria a respeito da eletricidade estática. A publicação foi a base teórica do trabalho desenvolvido no projeto sob distintas abordagens, cada uma adequada às demandas da prática de cada docente colaborador.

Em relação à Educação Física, Daólio (2003) foi o referencial com sua proposta de uma Educação Física da desordem, considerando o aluno a partir de uma relação intersubjetiva, um indivíduo socializado que se revela a partir de manifestações corporais eminentemente culturais da humanidade. Assim, deve-se respeitar e assumir a dinâmica cultural simbólica e a mediação necessária para uma intervenção intersubjetiva. Foi essa a inspiração que construiu a proposta de dinâmica pedagógica, possibilitando aos alunos atuar autonomamente durante a atividade, de forma colaborativa com as práticas dos demais alunos e professores participantes.

Kunz (2012) contribuiu com o projeto na medida em que orienta a respeito da importância de trazer o mundo vivido da criança para o interior das práticas da Educação Física, entendendo que o aluno já possui uma série de conhecimentos construídos fora da escola. Perspectiva semelhante defende Neira (2016) com a valorização da cultura produzida pelos grupos sociais subalternos a fim de permitir a tematização de outras expressões culturais nas aulas de Educação Física.

Para avaliar a atividade, utilizamos o registro fotográfico, seguindo a sugestão de Neira (2016), que discorre sobre as múltiplas possibilidades de avaliação da prática pedagógica. 

Resultados e discussão

A aplicação do planejamento superou completamente as expectativas. Imaginávamos uma colaboração embrionária entre os alunos, entretanto, observou-se uma grande dedicação de todos os participantes, em especial dos alunos recrutados como responsáveis pelos grupos de trabalho, a maioria já possuía conhecimento prévio acerca da feitura da pipa. Em alunos tantas vezes considerados “bagunceiros" houve mudança no comportamento e maior comprometimento na tarefa. Importante observar que quando práticas corporais são relacionadas ao mundo vivido, concreto dos alunos, elas são mais valorizadas como atividades pedagógicas, gerando uma resposta positiva na interação entre os alunos e os professores.

Outro fator positivo observado foi a interação com a diversidade. Meninos, meninas e alunos com deficiência interagiram sem que questões relativas à discriminação viessem à tona. As crianças mantiveram-se engajadas a realizar as tarefas e em cooperar de maneira muito espontânea com as produções.

Vale destacar que as crianças não sabiam da existência de pipas prontas, por isso ficaram preocupadas se as pipas construídas por elas iriam funcionar. Foi exposto que o erro faz parte do processo de aprendizagem e que o mais importante era realizar a atividade a fim de aprender a base da produção da pipa. Mais tarde, com a prática, a produção ganharia em qualidade.

Ao fim da fase de confecção das pipas, as crianças foram almoçar e ao retornarem da refeição, posicionaram-se novamente na arquibancada. Receberam, com efusivo entusiasmo, o professor que trazia um pacote com pipas prontas, iniciando a fase de preparação para a prática de empinar pipas.

Vale notar que muitos dos alunos preferiram utilizar as próprias pipas construídas, independentemente da sua funcionalidade, brincando na medida da possibilidade do objeto. O fato gerou uma linda cena com várias crianças correndo, empinando suas pipas com linhas curtas e outras longas, fazendo-as alçarem voo ainda que de maneira irregular.

Considerações finais

Quando uma ação pedagógica é realizada a contento, é sempre gratificante ao professor. Principalmente quando atende às expectativas do seu planejamento.

Com o festival de pipa, foi interessante observar o quanto nossas expectativas foram superadas pelo fato das crianças se divertirem e aprenderem, ao mesmo tempo. Ensinar e compartilhar conhecimento remete-nos a Paulo Freire quando afirma que “a alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria” (Freire, 1996).

Referências

BRASIL. MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais Educação Física. Brasília: MEC/SEF, 1998. 

______. Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Brasília, MEC, 2017.

DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cultura: polêmicas do nosso tempo. São Paulo: Autores Associados, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

KUNZ, E. Educação Física: ensino e mudanças. Ijuí: Ed. Unijuí, 2012.

LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

NEIRA, M. G. Educação Física Cultural: inspirações e prática pedagógica. Jundiaí: Paco, 2016.

RIO DE JANEIRO. MultiRio. Coleção Gira Mundo em Pauta: pipa. Revista Nós da Escola, Rio de Janeiro, nº 22, 2004.

______. Secretaria Municipal de Educação. Revisitando as orientações de Educação Física: documento teórico-metodológico. Rio de Janeiro: SME, 2016.

Publicado em 15 de março de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

CONCEIÇÃO, Coslme Luiz da Silva. Festival de pipas: a abordagem cultural da Educação Física contribuindo para a autonomia dos alunos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 9, 15 de março de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/9/festival-de-pipas-a-abordagem-cultural-da-educacao-fisica-contribuindo-para-a-autonomia-dos-alunos

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