Racismo na obra lobatiana: uma análise do livro "Caçadas de Pedrinho"

Taís Fernandes Paulo

Graduanda de Pedagogia (IFNMG - Câmpus Salinas)

Leonardo Vieira

Docente do IFNMG - Câmpus Salinas, mestre em Letras - Estudos Literários

O presente artigo é fruto da análise do conto Caçadas de Pedrinho, escrito por uma destacada figura brasileira, nascida no município de Taubaté a 18 de abril de 1882. Ela receberia, por batismo, o nome de José Renato Monteiro Lobato. Filho de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta M. Lobato, Monteiro Lobato viria a se transformar em uma importante personagem da literatura brasileira: escritor, diretor, produtor e ativista, considerado o criador da Literatura Infantil no Brasil.

Seus textos se espalharam por todo o país e muitos deles estão incluídos no Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE), tais como, Urupês, Cidades Mortas, Emília no País da Gramática, Histórias de Tia Nastácia, O Minotauro e Memórias da Emília, dentre outros, os quais comumente são utilizados na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Torna-se fundamental discutir esses materiais de que os alunos dispõem, uma vez que fazem parte de outro período histórico. A questão se apresenta ainda mais necessária quando se trata de um país majoritariamente negro e que, conforme Santos (2000), traz uma cidadania mutilada, pois o preconceito racial no Brasil é repleto de conotação estrutural, caracterizado pelo efeito da naturalização da discriminação. Nesta análise são utilizadas, ainda, como referenciais teóricos, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e a Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, fruto de uma luta travada pelo movimento negro.

Nesse sentido, a discussão apresentada é empreendida a partir de pontuações racistas observadas nas obras de Monteiro Lobato, cuja consequência foi uma acusação, ao autor, no Supremo Tribunal Federal. Em 2010, o conto lobatiano Caçadas de Pedrinho (1933) teve sua distribuição ameaçada, o que se justificava, no parecer do Conselho Nacional de Educação e por meio da ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, na alegação de tratar-se de um livro com alto índice racista, que não deveria ser selecionado por licitação pública.

Nessa obra há o relato de uma situação na qual a personagem Tia Nastácia foge de uma onça no Sítio do Picapau Amarelo. Na cena, Lobato descreve a idosa, empregada e mulher preta da casa, como uma macaca de carvão que, esquecida dos muitos reumatismos, parece nunca ter feito outra coisa senão trepar em mastros. Na passagem seguinte, o autor atribui ao corpo da empregada a característica de “carne preta”. A partir daí, surge a necessidade de uma análise do contexto histórico do qual o autor fez parte, pois o período pós-escravocrata, marcado pela transição do trabalho escravo para o livre, ainda não se concretizava e era absolutamente distante da maneira que se esperava, em relação à Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, sancionada pela princesa Isabel, então regente do Império do Brasil.

Partindo desse pressuposto, entendemos que, por um longo período, estabeleceu-se no Brasil a marca da inferioridade de uma raça em relação à outra, sendo essa marca, a principal sustentação da escravidão por três séculos. É importante destacar que é recente a demanda de alguns grupos marginalizados pela sociedade, que trazem à tona suas discussões para serem sancionadas, como no caso dos negros, das mulheres, do movimento LGBTQIA+ e demais indivíduos que lutam coletivamente, sobretudo pela igualdade de direitos.

Objetiva-se, então, neste artigo, analisar se nas obras lobatianas, em especial Caçadas de Pedrinho, há resquícios racistas, a fim de comentar de que forma os professores da rede pública podem se fundamentar para o trabalho com obras semelhantes às produzidas por Lobato e carregadas das marcas da sociedade de décadas passadas. Para tanto, desenvolvemos um texto em quatro subseções. A primeira retrata o racismo no Brasil como fenômeno histórico, que compreende uma estrutura de poder, tendo como base um errôneo entendimento de que haveria superioridade entre raças. A segunda parte aborda a concepção do negro no cenário da literatura brasileira; a terceira apresenta a retratação do autor em relação à figura do Jeca, personagem presente nos escritos lobatianos. Por fim, ainda na terceira parte, analisaremos a obra Caçadas de Pedrinho, verificando alguns trechos específicos para identificarmos um possível teor racista.

O tema aqui proposto surgiu após aprofundamento nas discussões levantadas no decorrer da disciplina de Educação Étnico-Racial, que compõe a grade curricular do curso de licenciatura em Pedagogia. É válido destacar a importância da temática durante o processo de formação de professores, pois esses futuros profissionais logo atuarão em instituições de ensino, transmitindo seus conhecimentos aos alunos.

O racismo como fenômeno histórico

Para Santos (1995), a grande aspiração do negro brasileiro é ser tratado como um homem comum, pois o país está longe de se tornar uma democracia racial. Há dados que apontam diferenças gigantescas, conforme revela o Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE) em pesquisa produzida, a partir das estatísticas de cor e/ou raça. A análise mostra que os cidadãos que se declaram brancos possuem maiores salários, sofrem menos com o desemprego e são a maioria dos que frequentam o Ensino Superior. O racismo está presente na estrutura da sociedade, mostrando-se ainda forte e enraizado.

Racismo é a suposição de que há raças e, em seguida, a caracterização biogenética de fenômenos puramente sociais e culturais. E também uma modalidade de dominação ou, antes, uma maneira de justificar a dominação de um grupo sobre outro, inspirada nas diferenças fenotípicas da nossa espécie. Ignorância e interesses combinados, como se vê (Santos, 1990, p. 12).

Nesse contexto, surgem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil, aprovada em 2004, e que se manifesta como um planejamento pedagógico resistente, a fim de trazer para dentro do ambiente escolar uma discussão fundamental, por vezes negligenciada. As diretrizes possuem como escopo principal atender a Lei nº 10.639/03, que aborda a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas do nosso país, configurando-se um marco importante dos chamados movimentos negros. A partir dela, um novo lugar político e social é ocupado pelo grupo, oferecendo a oportunidade de trazer às instituições de ensino questões relacionadas à cultura e à identidade que incentivam o indivíduo a se reconhecer e, sobretudo, a se valorizar como negro. Dessa maneira, a escola possui papel essencial na construção desse processo identitário, que sofre influências individuais e coletivas.

O livro comentado, Caçadas de Pedrinho, é composto por duas histórias. A primeira transcorre quando o menino Pedrinho resolve convocar toda a turma para uma corajosa missão de captura a uma onça pintada, tendo como consequência a revolta dos animais da floresta contra os moradores do Sítio do Picapau Amarelo. A segunda parte, por sua vez, inicia-se após a fuga de um rinoceronte de um circo no Rio de Janeiro. As crianças do Sítio, por terem abrigado o animal, tornam-se alvos dos agentes do governo, que passam a procurar o bicho.

A obra em análise foi denunciada por apresentar conteúdo racista e preconceituoso quando analisada de forma desvinculada do restante do contexto que compõe o livro, tornando-se alvo de críticas e polêmicas. Em resposta, o Ministério da Educação se posicionou contra o parecer, alegando que o preconceito está de acordo com determinado contexto histórico, e obras literárias não devem ser sujeitas à censura, cabendo ao docente o papel de mediador. O trecho da obra literária em questão é o seguinte:

Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! As onças também trepariam pelos degraus. Seus olhos esbugalhados procuravam inutilmente a salvação.

— Trepe no mastro! — gritou-lhe a Cléu. Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros (Lobato, 1933, p. 23).

O trecho chama a atenção principalmente pelo termo “macaca de carvão” utilizado pelo autor. Nessa mesma passagem é possível identificar a abordagem da captura de uma onça, um plano elaborado pelo corajoso Pedrinho, que obriga os demais colegas do Sítio a ajudá-lo. Fato que, semelhante ao racismo, também configura crime na atual sociedade brasileira. Portanto, embora a obra traga traços racistas na descrição das personagens, é de suma importância que o professor compreenda a situação como uma chance para trabalhar com os documentos construídos comparativamente pela perspectiva antirracista, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e a Lei nº 10. 639.

O segundo trecho que destacamos da obra se passa quando a famosa boneca de pano, Emília, resolve reunir os moradores do Sítio do Picapau Amarelo para uma assembleia:

Minutos depois realizava-se, debaixo da jabuticabeira grande, uma segunda assembleia, menos numerosa que a dos bichos. Compareceram todos, inclusive o marquês de Rabicó. Pedrinho pediu à boneca que repetisse a sua conversa com os besouros espiões. Emília repetiu-a, terminando assim: — É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do Sítio, exceto os de pena (Lobato, 1933, p. 13).

Todos os episódios nas histórias do Sítio remetem à infância de Lobato, bem como à sua utilização da língua portuguesa, conforme o seu tempo. Grande parte das expressões depreciativas destinadas aos negros, não só no conto Caçadas de Pedrinho como em outras obras do autor é proferida pela boneca de pano, Emília, em seus momentos de rebeldia. Nesse sentido, destacamos que a boneca se tornou uma personagem querida entre a criançada, reforçando uma posição negativa do negro no imaginário infantil. Entretanto, as características de uma única personagem não podem ser utilizadas para representar a obra por completo.

O negro na literatura brasileira

Lobato, nascido nos últimos anos do período escravocrata brasileiro, presenciou uma realidade bastante diferente da dos dias atuais. A obra aqui analisada traz à tona o modo como o negro era visto pela literatura, intensificando diversos estereótipos construídos pela sociedade e enfatizando atitudes de superioridade dos povos de pele branca. Gregório de Matos, no século XVII, demonstra essa problemática em seus versos satíricos.

Que falta nesta cidade?... Verdade.

 Que mais por sua desonra?... Honra.

Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,

Por mais que a fama a exalta

Numa cidade onde falta

Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?...

Negócio. Quem causa tal perdição?... Ambição.

E a maior desta loucura?... Usura

Notável desaventura

De um povo néscio e sandeu

Que não sabe que o perdeu

Negócio, ambição, usura.

Quem são seus doces objetos?... Pretos.

Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.

Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,

Dou ao demo a gente asnal,

Que estima por cabedal

Pretos, mestiços, mulatos (Matos, 2010, p. 41).

O poeta apresenta seu desprezo pelos negros, na forma evidenciada de seus versos, que descrevem como eles são vistos pela sociedade da época. No contexto de escravidão do país, esse sentimento se apresentava latente, sobretudo, pela colonização do século anterior. Eduardo de Assis Duarte (2013), em sua obra O negro na literatura brasileira, defende que, para a literatura do país, o negro é sempre um tema para a escrita, mas nunca uma voz autoral, o que reforça a percepção de uma superioridade branca europeia, internalizada na opinião inconsciente do coletivo brasileiro.

Duarte evidencia traços característicos dessa literatura, ao abordar a figura negra como personagem que ocupa um lugar pequeno no cenário literário da nação. Na prosa, ela tem lugar inexpressivo quando coadjuvante, mas quando ativa no enredo, ocupa sempre o lugar de vilã. Tais concepções traduzem estereótipos enraizados em nossa sociedade que perduram até os dias atuais.

Por sua vez, o século XIX materializou a concepção estereotipada do negro, como vemos, por exemplo, em A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (1872), que retrata a história de uma mulher branca, filha de um português com uma escrava negra. Tais características evidenciam a necessidade de um estudo crítico-reflexivo que deve ser feito dentro do ambiente escolar, pois a consciência sobre o racismo é um despertar dos estudantes à diversidade, aos direitos humanos e à cidadania. Assim é possível que o docente identifique, construa e desconstrua pensamentos voltados à história do negro em nosso país.

A figura do Jeca Tatu e a retratação do autor

Em 1911, com a morte do visconde de Tremembé, avô de Lobato, o autor se transformou em um grande proprietário rural. A Fazenda Buquira é recebida como herança, junto à sua imensidão de terras na Mantiqueira, que, acrescentada àquelas herdadas pelo pai, alcança quase dois mil alqueires. Apesar de tratar-se de pirambeiras de terras acidentadas e cansadas, é para lá que a família muda.

Lobato se esforça em lucrar a partir da terra, porém suas tentativas são abaladas em um contexto em que a política econômica não beneficia a lavoura dos fazendeiros paulistas, de acordo com a perspectiva deles. Três anos após sua empreitada como dono de fazenda, em 1914, surgiu a Guerra na Europa. Como forma de representar o que passava nesse momento, Monteiro Lobato publica, no jornal O Estado de S. Paulo, uma carta na seção “Queixas e reclamações”. Referindo-se ao texto Velha praga; torna-se bastante famoso. Nessa história, Jeca Tatu, Chico Marimbondo e Manuel Peroba são nomes que, anonimamente, Lobato acusa de atividades incendiárias. Como continuidade da raiva aqui apresentada, surgiu a segunda obra, também sem compaixão, Urupês. Ambos os livros fazem de seu escritor uma figura reconhecida e discutida.

A fama de Monteiro Lobato repercute. O anti-herói, Jeca Tatu, é caracterizado em Velha praga como um “piolho da terra com orelha de pau”, contradizendo diretamente a luta das minorias: índios, caboclos, negros e caipiras. O ridículo é associado à ideia da presença do caipira na cidade grande.

Na década de 1920, Lobato expressa a sua marca de forma nítida com o Garimpeiro do Rio das Garças. Na história, aventureiros de todo o país partem rumo a uma região remota do Rio das Garças, no Estado do Mato Grosso, sonhando com a riqueza por meio do garimpo de diamantes e ouro. A obra é um livro infantil pouco conhecido. O protagonista, João Nariz, recorda Jeca Tatu, porém aqui já se trata um Jeca autônomo e sabido.

Em 1948, num ajuste ideológico, Monteiro Lobato envia o texto O rei vesgo para ser lido em um comício de protesto pela cassação dos parlamentares do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Aqui aparece pela terceira e última vez a figura do caipira nas histórias do autor, agora sob uma ótica que supera a ideia presente nas obras anteriores.

Este Monteiro Lobato maduro reescreve o jovem Monteiro Lobato que em 1914 não tinha sabido entender a dimensão econômica do problema agrário brasileiro. Zé Brasil corrige também o outro Monteiro Lobato que, nos anos 20, no meio de campanhas pela saúde pública, avança a questão, mas não chega a atinar que o problema das péssimas condições de saúde do Jeca era decorrente da infraestrutura brasileira (Lajolo, 2000, p. 81).

O livro Zé Brasil finaliza a trajetória de Lobato, que morre um ano depois da sua publicação, no ápice da fama. A obra é considerada a mais desconhecida entre os escritos do autor, embora aborde uma retratação extremamente relevante.

Uma análise do racismo na obra lobatiana

Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta (2011) introduzem a obra Caçadas de Pedrinho ao abordarem um pouco da trajetória de Lobato. Apresentam a forma como o autor dedicava grande parte do seu tempo, na infância, a brincadeiras: subir em árvores e pescar no riacho. Contudo, não deixava de lado um bom livro de aventuras da biblioteca do seu avô. Após formar-se em Direito, Lobato continuou escrevendo e, ao invés de exercer a sua profissão de advogado, criou o Sítio do Picapau Amarelo.

Monteiro Lobato substituiu as fábulas importadas, trazidas da Europa e traduzidas de forma confusa para o nosso país, por um cenário tipicamente brasileiro para suas personagens. Assim, criou para os leitores histórias simples e de fácil compreensão. Camargos e Sacchetta (2011) afirmam que, como nossa língua sofre constantes mudanças, algumas palavras deixaram de ser utilizadas com o passar do tempo. Ainda assim, todas elas foram mantidas da forma como o autor registrou em seus escritos.

Monteiro Lobato respeitava a inteligência das crianças e dos jovens. No Sítio do Picapau Amarelo toda a turma tem vez e tem voz. Os netos de Dona Benta são sempre ouvidos com carinho, convivendo com os adultos de igual para igual. Comum nos dias de hoje, essa atitude era impensável na época de Lobato. Quando ele criou suas histórias, no começo do século XX, os pais falavam e os filhos obedeciam sem dar um pio. Não questionavam os adultos nem diziam o que pensavam. Foi ele quem ensinou como todo mundo podia sair ganhando com o diálogo. Pedrinho, Narizinho e a incrível boneca Emília, “bocuda” e palpiteira como ela só, conversam com os mais velhos livremente (Camargos; Sacchetta, 2011, p. 6).

Condenar a obra lobatiana, portanto, não se torna uma opção viável, pois Lobato registrou na sua escrita o que era comum no seu contexto, numa sociedade em que, havia poucas décadas, contava com o trabalho escravo, além de outros fatores, como a Segunda Guerra Mundial e as intervenções do então presidente Getúlio Vargas. Desse modo, a obra de Lobato não pode ser considerada racista. Ainda, conforme afirma João Luís Ceccantini (2012), pesquisador de literatura infantojuvenil e coautor do livro Monteiro Lobato, livro a livro, querer modificar ou censurar uma obra cultural é analfabetismo histórico, já que crianças conseguem identificar e absorver a essência positiva presente na literatura produzida pelo autor, necessariamente marcada por tempo e contexto específicos.

Explorar para compreender o mundo faz parte da literatura infantil. A partir dela, a criança tem a oportunidade de construir e imaginar um universo de possibilidades. Segundo Cagneti,

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura, ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o imaginário e o real; os ideais e sua possível/impossível realização (Cagneti, 1996, p. 7).

Essa possibilidade de viajar e transformar a realidade pelo acesso à literatura é fundamental ao infante, assim como analisar como acontece essa abordagem dentro do ambiente escolar e, principalmente, como os profissionais estão sendo formados para atuarem diante das temáticas da atualidade. A prática pedagógica baseada numa ação reflexiva deixa explícita a maneira docente de encarar determinada questão dentro dos muros escolares, ambiente que não deve ser monótono.

A partir da prática pedagógica, há a esperança de se efetivar as transformações que constantemente buscamos na nossa sociedade. Segundo Franco (2012), práticas pedagógicas se organizam intencionalmente para atender a determinadas expectativas educacionais solicitadas por uma dada comunidade. É a oportunidade de o docente efetivar a mediação das mudanças nos indivíduos, nos grupos e nas instituições, pela educação. Além disso, de acordo com Brandão (1985), não existe educação e sim educações, no plural. A educação do índio pode não ser a mesma do colonizador e ainda sim as duas possuem grande importância em meio à sociedade.

Na literatura, mundo repleto de peculiaridades, o que é narrado se assemelha à realidade. Traz intenção de emocionar e sensibilizar o leitor, como se fizesse parte do real, de fato. A isso dá-se o nome de verossimilhança, uma estratégia narrativa que torna possível o impossível (Wellek; Warren, 2003). Portanto, antes de tudo, a literatura representa a vida, ainda que não deva ser confundida com ela por ser ficção.

Assim, todas as personagens que compõem determinada obra são indivíduos fictícios e que não precisam estabelecer um compromisso com a realidade. Dessa forma, compreendemos que as queixas direcionadas ao autor, Lobato, como pessoa real, não devem se ligar às críticas a ele como narrador de uma obra de ficção, sobretudo numa época fortemente marcada por questões hoje criminalizadas.

A obra lobatiana não é a primeira e certamente não será a última a ser censurada no Brasil. O livro Feliz Ano Novo, escrito pelo mineiro Rubem Fonseca, por exemplo, foi proibido no país durante o período militar, acusado de atentar contra a moral e os bons costumes. Um ano após a sua publicação, em 1975, a obra tornou-se um best-seller nacional. Fonseca, porém, entrou com uma ação contra a União e, uma década depois, a obra foi liberada no Brasil, reeditada quatro anos depois, quando o autor venceu a ação na Justiça.

Outro caso de censura ocorrido também na ditadura militar está relacionado à famosa canção Pra não dizer que não falei das flores, escrita por Geraldo Vandré em 1968. A obra foi considerada subversiva e o autor teve como consequência o exílio. Embora vivendo a condenação imposta, a música viria a se tornar um símbolo de resistência no período ditatorial.

Além das obras mencionadas, muitas outras foram censuradas em determinados períodos político-sociais. Com Monteiro Lobato não ocorre de maneira diferente. O autor somente traz à tona como era e ainda é difícil ser negro no Brasil. Censurar ou retificar seus escritos seria enganar as nossas crianças e burlar o passado.

A escola e todo o corpo docente devem estar preparados para a abordagem de obras semelhantes àquelas aqui citadas. Ao trabalhar com a obra Caçadas de Pedrinho, por exemplo, é função do professor intermediar a situação quando verificadas compreensões equivocadas por parte do aluno, deixando explícito que muitas expressões e falas presentes na obra trazem hoje vocabulário discriminatório. Mais do que simplesmente explicar, devemos ajudar os alunos a compreender como aconteceu tal transição de contexto (histórico e político), incentivando que o localizem, o debatam e observem todos os traços incompatíveis com o presente.

Tratar das obras aqui mencionadas em sala de aula torna-se uma possibilidade ímpar de trazer para dentro do ambiente escolar questões relacionadas à educação étnico-racial, bem como trabalhar os documentos construídos a partir de tal perspectiva, tais como as Diretrizes Curriculares Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais, junto à Lei 10.639/03.

Algumas sugestões são propostas nessas diretrizes que abordam a educação das relações étnico-raciais. Por exemplo, sugere-se que se traga para dentro da escola congadas, moçambiques, rodas de samba ou maracatus como formas de viver a cultura negra, reforçando a importância do ensino sobre a África como nações diversas com seus costumes, interligando à experiência dos africanos no Brasil. Trata-se de abordar a História da África como é tratada a História europeia ou a brasileira:

A diversidade cultural brasileira, e sua tão propalada pluriculturalidade, deve ser pensada levando-se em consideração os intercâmbios e as trocas culturais, de forma a colocar em evidência a pluralidade da própria experiência negra no país. Persistentes são as ações e políticas que mantêm e renovam as desigualdades e hierarquias raciais em nosso país. (Abreu; Mattos, 2008, p. 13).

A abordagem em sala de aula deve, portanto, ser planejada e, sobretudo, deve levar à reflexão. Todas as experiências anteriores devem ser levadas em consideração, principalmente para acabar com o modelo falso e reduzido de tratar a contribuição dos africanos e seus descendentes ao país. A escola é o local ideal para realizar o exercício da conscientização.

Considerações finais

Analisar se existe ou não racismo nas obras escritas pelo neto do visconde de Tremembé é uma questão delicada. O autor teve sua fama espalhada nacionalmente e suas obras se destacam na literatura infantil do Brasil. Isso reforça o debate que atualmente conta com uma grande polêmica entre defensores e opositores, sempre que se trata da temática. Nesse sentido, há muitas dificuldades em garantir que os docentes façam a correta abordagem de certas questões em sala de aula. Afinal, conforme afirma Brandão (1985), na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar e pode fazer o contrário do que se pensa fazer.

Como retratado ao longo deste trabalho, é de suma importância analisar o contexto histórico sempre que trabalhamos com menções, problemas e temas de uma sociedade de outrora. Além disso, é preciso analisar a obra de maneira completa, verificando se sua contribuição é, de fato, negativa para a formação da criança ou se é possível trabalhar seus benefícios, indo contra o que ela pode trazer de material controverso, absorvendo dela o que ela pode oferecer de melhor.

Assim, podemos citar a fala final de Tia Nastácia no conto aqui analisado, quando, ao fim da saga do rinoceronte, a boa empregada se retira dizendo “tenha paciência, agora chegou a minha vez, negro também é gente, sinhá” (Lobato, 1933, p. 49).

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 9  de janeiro de 2003.

______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf. Acesso em: 02 dez. 2019.

CAGNETI, Sueli de Souza. Livro que te quero livre. Rio de Janeiro: Nórdica, 1996.

CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Globo, 2011.

CECCANTINI, João Luís. Entrevista. Jornal de Debates, 2012. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/ldquo_censurar_monteiro_lobato_e _analfabetismo_historico_rdquo/. Acesso em: 02 dez. 2019.

DUARTE, Eduardo de Assis. O negro na Literatura brasileira. Revista Navegações, Porto Alegre, 2013.

FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santouro. Pedagogia e prática docente. São Paulo: Cortez, 2012.

LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000.

LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Brasiliense, 1933.

MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

MATTOS, Hebe; ABREU, Martha. Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 25 de junho de 1995.

MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

SANTOS, Milton.  Entrevista. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Especial, 1995.

______. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo, 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm. Acesso em: 02 dez. 2019.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura e metodologia dos estudos literários. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Publicado em 21 de março de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

PAULO, Taís Fernandes; VIEIRA, Leonardo. Racismo na obra lobatiana: uma análise do livro "Caçadas de Pedrinho". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 10, 21 de março de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/10/racismo-na-obra-lobatiana-uma-analise-do-livro-cacadas-de-pedrinho

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.