Reflexões sobre a evolução social da criança
Denise Claudete Bezerra de Oliveira
Mestre em Letras, professora da SEC-BA
A história de vida do indivíduo é a história de pertencer a inúmeros grupos sociais, pois é por meio desses grupos que as determinações sociais agem sobre o indivíduo no seu trânsito existencial, internalizando-se e apropriando-se da realidade objetiva, constitutiva de sua formação psíquica, permitindo que ele aja sobre o mundo.
Agir no mundo pressupõe a ocorrência de um processo de socialização. Ou seja, apenas quando o indivíduo se apropria da realidade objetiva, construída a partir de modelos de organização econômica, política, jurídica e cultural (de instituições como a família, a igreja/grupos religiosos, a escola, grupos de lazer, partidos políticos), que ele está apto a interagir significativamente, assumindo a sua condição de ser social.
Discorrer sobre a evolução dessa condição do ser humano em uma perspectiva histórica, como sujeito da ação criadora e recriadora da sua própria realidade objetiva, implica abordar conceitos sobre o papel das instituições fundamentais, a saber, a família e a escola.
As teorias sobre o desenvolvimento humano iniciaram-se pelo estudo da infância, estimuladas pelas ideias de Darwin (1809-1882) a respeito da evolução e do comportamento das espécies. A partir dos pressupostos darwinianos, a criança passou a ser vista como rica fonte de informação sobre a evolução humana. Portanto, ao inquirir sobre a evolução da condição social do homem, passou-se a direcionar esses questionamentos ao processo de socialização, iniciado ainda na infância, destacando-se, então, o papel da família e da escola.
Duas vertentes de tais análises podem ser destacadas, a saber, a vertente tradicional e a vertente interacionista (divulgada a partir das pesquisas de Piaget, Vygotsky e Wallon).
As teorias psicológicas e pedagógicas tradicionais apresentam o conceito de socialização como um processo que se inicia na infância como um estágio de integração à sociedade. A criança encontraria um mundo pronto, delineado, cabendo-lhe apenas ajustar-se às normas pré-estabelecidas. Esse desenvolvimento seria propiciado, sobretudo, por sua participação na escola, responsável por oferecer as oportunidades de socialização com outras crianças.
Socialização é um conceito intimamente relacionado aos sentimentos de infância e de família, desenvolvidos a partir do século XVIII, em consequência da estruturação da sociedade industrial e do modelo de produção capitalista, onde a instituição escolar se desenvolveu. Até esse período, de acordo com Ariès (1981), o processo de socialização das crianças, se realizava por meio do convívio direto com os adultos, cabendo-lhes uma condição social específica, já que participavam ativamente na sociedade, compartilhando dos jogos, das brincadeiras, dos festejos e até mesmo do trabalho. A aprendizagem de valores e costumes ocorria intermediada por esse contato, sobretudo quando as crianças aprendiam ajudando os mais velhos. Portanto, conforme Miranda (2012), “a socialização acontecia no convívio com a sociedade, não sendo determinada ou controlada pela unidade familiar”.
Com a destruição das formas comunitárias, reorganizadas em função das necessidades de ordem capitalista, desenvolveu-se a ideia moderna de família, que se instaurou, na vida privada, na intimidade e no “sentimento de união afetiva entre o casal e entre pais e filhos” (Miranda, 2012, p. 126). Esse novo sentimento de família, associado às ideias das reformas moralistas (cabendo apenas à família a formação moral e espiritual dos filhos), reforçou o papel da escola como responsável pela aprendizagem social da criança.
Em decorrência desses fatores, surge uma nova concepção de infância. Por não ter meios próprios de enfrentar o mundo, a criança é naturalmente inocente e naturalmente má, estando em firme relação de dependência com os modelos apresentados nas atitudes dos adultos. Atribuir uma dependência das crianças em relação aos adultos como fator natural é, como afirma Miranda (1995), utilizar-se ideologicamente da ideia de infância para dissimular as diferentes condições às quais as crianças são submetidas em uma sociedade de classes antagônicas, implicando no falseamento das variantes que realmente interferem em sua socialização, fazendo com que a sua não integração seja explicada apenas com base nos fatores endógenos (conhecimentos, habilidades e competências do indivíduo, dentre outros), desobrigando, assim, as instituições das suas responsabilidades.
A criança não deve ser vista como um adulto em miniatura, como ser que simplesmente se ajusta a modelos pré-estabelecidos, como defendem as abordagens tradicionais da Psicologia e da Pedagogia. Ao contrário, a criança deve ser considerada em sua condição de sujeito da história, capaz de recriar seu processo de socialização e de interferir na realidade, à medida em que interage com o meio, modificando-o e modificando-se.
Apresentamos a seguir os conceitos de desenvolvimento e de interação social difundidos pelas abordagens interacionistas, com base nos estudos de Piaget, Vygotsky e Wallon, a fim de demonstrar as considerações realizadas sobre a evolução da criança, observando-se a importância da qualidade das trocas que ela faz com o meio para favorecer o seu desenvolvimento. Destacamos que a socialização é um processo evolutivo que parte da indiferenciação para a individuação.
Para Piaget, o desenvolvimento se dá a partir da estruturação cognitiva do indivíduo em uma sequência contínua e evolutiva, envolvendo processos de assimilação e acomodação dos objetos do meio social, levando o indivíduo a adaptar-se, a atingir estágios de equilibração, gradualmente mais complexos, possibilitando-o a interagir com o meio em níveis de ação e subjetivação, qualitativamente mais avançados. A partir da interação com o meio social, a criança “começa” a estruturar-se cognitivamente. Piaget (2011) nos explica que a interação entre os fatores externos e internos é fundamental.
Toda conduta é uma assimilação do dado a esquemas anteriores (assimilação a esquemas hereditários em graus diversos de profundidade) e toda conduta é, ao mesmo tempo, acomodação destes esquemas a situação atual. Daí resulta que a teoria do desenvolvimento apela, necessariamente, para a noção de equilíbrio entre os fatores internos e externos ou, mais em geral, entre a assimilação e a acomodação (Piaget, 2011, p. 89).
Piaget compreendia o processo de interação social como um processo de mudança do estágio de egocentrismo para o estágio em que a criança consegue distinguir o seu “eu” do “outro social”. Cabe ressaltar que, na teoria piagetiana, o egocentrismo deve ser compreendido como uma forma de organização do mundo, apoiado em um estado de confusão entre o “eu” e o mundo externo e não como uma atitude de submeter a realidade aos desejos da criança.
Preocupado com uma Psicologia fundamentada nos processos de mudança na história do sujeito, Vygotsky procurou compreender como a natureza sociocultural torna-se natureza psicológica. Para o teórico, o desenvolvimento ocorre a partir de mudanças progressivas/descontínuas, levando o indivíduo de um estado de indiferenciação para um estado de individuação, permeado pelo contexto sociocultural e histórico. Tais mudanças ocorrem a partir das interações simbólicas com outros sujeitos sociais, mais maduros, e de fenômenos intrapsíquicos.
Vygotsky definia a interação social como um processo que conduz o indivíduo à ação/subjetivação, uma relação dialógica entre a criança e o meio, partindo-se do pressuposto de que as relações do sujeito com o mundo físico não ocorrem isoladas, mas nas interações mediadas pelos signos culturalmente construídos nessas interações sociais.
Para Henri Wallon, o desenvolvimento humano é um processo dialético que envolve toda a personalidade do indivíduo, levando-o a diferenciar-se do mundo social, mediado pela emoção e a partir da imitação dos “outros sociais”.
Considerando a criança como ser social, desde o nascimento, Wallon define a interação social como um processo mediado pela emoção, concebendo-a como responsável pelo estabelecimento do vínculo entre o humano e o seu meio. Tal mediação concorre para respostas desse indivíduo, em consonância ou em oposição ao conjunto simbólico socialmente construído.
A partir de uma tentativa de síntese dos pressupostos teóricos de Piaget, Vygotsky e Wallon (Vasconcellos; Valsiner, 1995), assinalamos a importância de considerar seus conceitos para a construção de uma vertente de análise, tanto psicológica quanto pedagógica, sobre a evolução social da infância, focada sobre a criança socialmente determinada, cujas trocas dependem de modelos adultos em uma relação de dependência social e não natural. Afinal, o desenvolvimento é um processo dialético, fortemente marcado pelo tipo de adulto que cada sociedade deseja formar.
Quanto à escola, não cabe socializar a criança como se seu processo de socialização se iniciasse apenas nos ambientes escolares. Cabe à educação escolar trabalhar a partir do campo conceitual, reconhecendo a legitimidade dos conteúdos e dos valores já internalizados, assim como das condições sociais específicas de cada criança. Se a escola é um espaço de disseminação da ideologia dominante, também é palco para o reconhecimento do conflito entre as classes sociais.
Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
MIRANDA, M. Gouvea de. O processo de socialização na escola: evolução social da criança. In: LANE, Sílvia T. M.; CODO, Wanderley (orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. 14ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 125-135.
PIAGET, Jean. Seis estudos de Piaget. Trad. Maria Alice Magalhães D’Amorim e Paulo Sérgio Lima Silva. 25ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
RAMOZI-CHIAROTTINO, Zélia. O conhecimento como resultado da interação entre o organismo e o meio. In: ______. Psicologia e Epistemologia Genética de Jean Piaget. São Paulo: EPU, 1988. Capítulo 1. p. 3-11.
VASCONCELLOS, Vera M. R. de; VALSINER, Jean. O processo de desenvolvimento da criança: noções fundamentais presentes nas teorias de Vygotsky, Wallon e Piaget. In: ______. Perspectiva coconstrutivista na Psicologia e na Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Capítulo 3. p. 34-48.
Publicado em 21 de março de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
OLIVEIRA, Denise Claudete Bezerra de. Reflexões sobre a evolução social da criança. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 10, 21 de março de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/10/reflexoes-sobre-a-evolucao-social-da-crianca
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