O resgate da mulher no cenário de guerra no romance "As meninas do Belo Monte"
Elzafran Santos Sousa Lourenço
Mestra em Educação Profissional e Tecnológica (IFSP), especialista em Língua, Linguística e Literatura (FIP), licenciada em Letras UFPB (2012), graduada em História FIP (1999), técnica em assuntos educacionais do IFSP
O objetivo deste texto é observar, na obra As meninas do Belo Monte, de Júlio José Chiavenato, o resgate do papel da mulher no cenário de guerra, sendo essa uma das poucas obras literárias a tratar de uma matéria de extração histórica sobre conflitos armados, no caso da Guerra de Canudos, que traz a atuação feminina e a importância da participação das mulheres nesse acontecimento histórico, ocorrido na Bahia nos finais do século XIX.
As narrativas oficiais sobre guerras trazidas pela História, pela imprensa e pela Literatura são marcadas por vozes masculinas. Há nelas, ainda, muita omissão e injustiça no que diz respeito à participação da mulher nesses contextos, confirmando que as mulheres costumam ser ignoradas como agentes históricos, tendo seus papéis injustamente minimizados ou simplesmente apagados dos discursos históricos e literários. A figura feminina, que comumente aparece nos discursos oficiais sobre guerras, está ligada à enfermeira que atende os soldados feridos, à mãe e à esposa que cuida da família enquanto os homens estão em combate nas guerras e, por algumas vezes, às mulheres, não muito comuns, que atuaram como coadjuvantes nos episódios de guerra. De acordo com estudos sobre a presença das mulheres nas guerras feito por Panos Institute, em 1995, “as mulheres têm sido pouco ou mal representadas nas histórias de guerra e somente são retratadas como vítimas tristes e desamparadas" (Panos Institute, 1995, p. 9).
Felizmente, algumas obras contemporâneas buscam resgatar a atuação feminina em situações de guerra, não mais sob o ponto de vista predominantemente masculino, a exemplo de A guerra não tem rosto de mulher, da ucraniana Svetlana Aleksiévitch, baseado em memórias de mulheres combatentes atuantes na segunda Guerra Mundial (antiga União Soviética), para impedir o avanço nazista. De acordo com Aleksiévitch (2016), tudo o que conhecemos da guerra é a partir do ponto de vista masculino. As mulheres sempre estão caladas.
Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram. Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra “feminina” tem suas próprias cores, seus cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana (Aleksiévitch, 2016, p. 12).
A historiadora norte-americana Joan Scott, em seus ensaios sobre história e gênero, vai além ao questionar a invisibilidade da mulher na História. Em seu ensaio, Gênero como categoria útil de análise, Scott sinaliza que à História cabe o dever de investigar a fundo como se dá esse processo de invisibilidade da mulher dentro do discurso histórico tradicional, oferecendo novas perspectivas que garantam igualdade política e social a homens e mulheres. Para Scott (1992), é o historiador que, diante dos diversos materiais deixados pelo passado, testemunhos que procuraram guardar o sentido de cada momento e de cada experiência vivenciada pelos sujeitos históricos, escolhe aqueles que terão direito a aparecer. O discurso histórico, por exemplo, quando nega visibilidade às mulheres perpetua também sua subordinação e sua imagem de receptora passiva da ação dos demais sujeitos da História (Scott, 1994, p. 50).
Sobre o conflito de Canudos (1896/1897) entre as tropas do governo federal e o grupo de sertanejos liderados por Antônio Conselheiro, apesar da extensa literatura a respeito dessa matéria, a representação feminina é ínfima e injusta. As histórias sobre as mulheres que viveram os confrontos daquela guerra encontram-se escondidas ou omitidas, mantendo-se a mesma tradição das narrativas sobre as guerras nacionais. A obra de maior repercussão e reconhecimento da Guerra de Canudos, Os sertões, de Euclides da Cunha, comprova a omissão da participação das mulheres na luta por Canudos.
Segundo Oliveira (2002), nos textos jornalísticos e nas narrativas da consagrada obra de Euclides, as mulheres são descritas como jagunças de aparência horrenda, de caráter matreiro, violentas e ignorantes, chegando a ser denominadas como bruxas ou harpias. A propósito da obra de Cunha, José Calasans (2001) esclarece que o autor refere-se às mulheres de forma duramente estigmatizada, negando a elas qualquer importância em um dos acontecimentos mais marcantes. Nas raras referências feitas às mulheres de Canudos, Euclides se restringe a seus aspectos físicos e a características erroneamente relacionadas ao gênero.
Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas – êmulas das bruxas das igrejas – revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e desejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas... Faces murchas de velhas... rostos austeros de matronas simples; fisionomia ingênuas de raparigas crédulas...Grenhas maltratadas de crioulas retintas (Cunha, 2000, p. 165).
Os estudiosos que se aplicam a estudar o autor, Euclides da Cunha, a exemplo de Afrânio Peixoto, já alertam que ele não se dedicava em seus escritos às mulheres. Segundo Peixoto (1947), em declarações informais, Euclides chegou a se vangloriar de não haver, em todos os seus livros, nada sobre elas. O motivo desse desprezo pelo sexo oposto talvez estivesse ligado a fatos de sua vida pessoal. Sua biografia traz um homem que perdeu a mãe muito cedo e nunca encontrou o amor em uma mulher, como afirma Silvio Rabelo (1948). Rabelo é considerado o mais importante de seus biógrafos e afirma sobre Cunha que “o amor de mulher, que não encontrou na mãe, morta quando pequenino, não encontrou em ninguém – nem naquela a quem se ligara por toda vida, nem em amante ou simples namorada” (Rabelo, 1948, p. 453).Por outro lado, José Calasans, ainda em seu ensaio As mulheres de “Os Sertões”, questiona as afirmativas dos críticos e biógrafos de Euclides da Cunha que insistem na indisposição do mesmo em escrever sobre as mulheres.
A respeito do comentário de Afrânio Peixoto, Calasans (2001) indaga:
teria mesmo Euclides da Cunha afirmado que o elemento feminino não figurava nos trabalhos de sua autoria? Por que o teria dito com jactância? Desagradaria, porventura, ao notável escritor, a presença das filhas de Eva no bojo dos seus livros? Ou teria Afrânio Peixoto, em vista de certas premissas, concluído que deveria ser aquele o pensamento do vigoroso publicista brasileiro?
Sobre Silvio Rabelo, Calasans (2001) esclarece que, “em que pese a autoridade desse mestre, parece-nos que não devemos continuar colocando em termos tão negativos as relações de Euclides com o belo sexo e que mesmo é possível respigar, aqui e ali, alguma coisa no sentido de modificar o rigorismo do seu comportamento”. Calasans (2001) também defende que o fato de Euclides não se prender ao elemento feminino, pois seus temas versavam, em maioria, sobre problemas políticos, assuntos geográficos, questões internacionais e aspectos econômicos. Desse modo, na visão do ensaísta, assuntos propícios à presença de representação feminina não seriam assuntos próprios de Cunha. Calasans (2001) ainda ressalta a importância de que seja sugerido aos intérpretes da vida e da obra de Euclides da Cunha, uma revisão no estudo do seu comportamento diante da mulher, a fim de que não se generalize sobre o autor e se suponha que fosse absolutamente incapaz de admirar as mulheres.
Sendo verdadeiras ou não essas assertivas, o que parece suscitar a discussão é o fato de que, em Os sertões, Euclides da Cunha fala muito pouco sobre as mulheres sertanejas que viveram no arraial de Canudos e, de maneira geral, as descreve com vocábulos e expressões negativas. Chega, contudo, a enxergar de forma parcial e distante, três mulheres que fizeram parte diretamente da vida de Antônio Conselheiro, a saber, Helena Maciel (tia do beato), a mãe Maria Joaquina de Jesus e a mulher com quem Conselheiro contraiu matrimônio (supõe-se ser sua prima). Entretanto, a presença dessas mulheres na obra de Euclides passa longe do enaltecimento. Ao contrário disso, a impressão causada é de que a ligação do líder de Canudos com o sexo oposto sempre lhe causou sofrimento e decepção, o que poderia justificar a misoginia do beato, “mulher foi carga adicionada à tremenda tara hereditária, que desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios” (Cunha, 2000, p. 160).
“A Beleza” era-lhes a face tentadora de Satã. O conselheiro extremou-se mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas mesmo às beatas, feitas para amansarem sátiro (Cunha, 2000, p. 70).
Teoricamente, o contato real que o autor de Os sertões teve com as mulheres de Canudos, de acordo com seus próprios escritos, deu-se com um grupo de prisioneiras, após a queda do Arraial. Assim, ele as descreve como “monstros envoltos em trapo, repugnantes, fisionomias duras de viragos de olhos zanagos ou traiçoeiros” (Cunha, 2000, p. 69).
O objetivo deste texto, contudo, não é investigar as relações de Euclides com as mulheres em suas obras ou em sua vida pessoal, mas observar a participação da mulher na guerra, a partir da leitura do romance As meninas do Belo Monte, o que nos propomos a fazer.
Para Alcmeno Bastos (2010), As meninas do Belo Monte constitui uma das muitas obras assumidamente ficcionais que tratam da guerra de Canudos e dialogam com Os sertões, porém, diferentemente das tantas outras, empenha-se a falar das vítimas posteriores à queda do arraial.
As meninas do Belo Monte (1993), de Júlio José Chiavenato, segundo o que nos assegura o próprio autor da obra em uma nota de esclarecimento que antecede a narrativa, é um romance baseado em fatos reais. De acordo com ele, não saberia contar a tragédia de milhares de crianças, escravizadas ou prostituídas, sem paixão, “paixão” no seu significado hegeliano, submetida ao domínio da razão. Ainda nesta nota, Chiavenato esclarece que se valeu das próprias palavras daqueles que viveram a Guerra de Canudos para escrever a sua obra, tais como, relatos deixados em inúmeros documentos, registrando o acontecimento histórico ocorrido no interior da Bahia. “A Lua brilhava como sempre, mas não podia ser a mesma Lua que presenciou tamanha desgraça. Suas manchas respingavam maldade. Nenhuma luz passa incólume por tanta miséria” (Chiavenato, 1993, p. 2).
A proposta de Chiavenato em As meninas do Belo Monte é, antes de tudo, denunciar um dos crimes mais cruéis da república recém-criada, que foi a venda e a comercialização de meninos e meninas, sobreviventes ao extermínio de Canudos, escravizados e prostituídos pela negligência do governo. “O sequestro de crianças, repartição e venda, acontecia tão a miúdo que todos fingiam não ver. O general só se interessava pelas estatísticas. Quantas morriam, quantas partiam. Em pouco tempo se livrariam desses estranhos prisioneiros de guerra” (Chiavenato, 1993, p. 120).
A história de Josefa, personagem presumivelmente ficcional, começa quando sua família se junta ao grupo de sertanejos que habitavam Belo Monte, povoado de Canudos liderado por Antônio Conselheiro. O pai de Josefa havia cometido um crime necessário, segundo suas convicções para lavar a honra de sua família, e procurou a remissão para seus pecados em Canudos. Deixou o Cocorobó, com mulher, mãe, filhos e as cabras que possuía e partiu cheio de esperança de uma vida melhor e mais justa. “No Belo Monte eram acolhidos todos os que sofreram injustiças e renegavam as maldades do mundo e buscavam a paz” (Chiavenato, 1993, p. 6). Lá, todos ganhavam um pedaço de chão, onde construíam casas para viverem comunitariamente, sob a proteção de Deus e guiados pelo Bom Jesus do Belo Monte, o Conselheiro. Chiavenato desenha um retrato bastante favorável do líder da comunidade canudense, mas sem exagero místico: “não fazia milagres. Não curava doentes. Não prometia o céu. Dava a segurança da terra em liberdade. Não era santo, mas domava o vento ou ele se encantava nele” (Chiavenato, 1993, p. 7).
Na narrativa, Josefa, uma menina loira de olhos azuis e nariz afilado, com os traços físicos da herança galega, representa a história de praticamente todas as crianças que sobreviveram à queda do Arraial de Canudos. Durante os vários confrontos com as tropas do Governo, as crianças perderam seus pais, pelas adversidades que enfrentaram no sertão, vivendo em uma comunidade que se opunha às leis vigentes. As poucas mães sobreviventes da batalha foram feitas prisioneiras de guerra, forçadas a entregarem seus filhos aos oficiais do exército.
Havia um curral de prisioneiras, mulheres e crianças, a maioria morrendo de fome e doença. Senhores e senhoras analisavam as presas, confabulavam com o oficial encarregado. Eram comerciantes e latifundiários do sertão, escolhendo mão de obra que sobrou do Belo Monte. Eram mulheres que se diziam donas de casa mas administravam bordéis, recrutando carne fresca. Era o comércio da escravidão para as sobreviventes do massacre. [...] soldados formavam quadrilhas e percorriam a caatinga, caçando escravos e futuras putas (Chiavenato, 1993, p. 102).
Cumprindo a triste trajetória das crianças de Canudos, Josefa e Maria José, outra menina que aparece na narrativa de Chiavenato, são vendidas e exploradas, passando por diversas situações de maus tratos, humilhações, abusos e conflitos interiores, pois aprenderam com o Bom Jesus do Belo Monte que a desonra é o maior dos pecados. Sendo assim, sabiam que putas não entravam no céu, pois até o pecado de matar, o Bom Jesus perdoava, mas a fornicação jamais, conforme traz o texto: “Já não vamos para o céu. O Bom Jesus não nos receberá, mas antes tem o purgatório, quem sabe escapamos do inferno” (Chiavenato, 1993, p. 180). Por outro lado, havia escutado das pregações do Conselheiro que não deviam desesperar nunca e sempre aceitar a vida como ela vinha. Se era da vontade de Deus, assim teria de ser, viver naquele mundo depravado, como uma Babilônia, com nojo daquilo que faziam, pois para isso eram as meninas do Belo Monte.
Lavando os copos na água quente que lhes franzia as mãos, Josefa e Maria José pensavam o mesmo: até quando?, e depois?, ser puta? O sabão de soda gretava a pele, na borda das unhas porejava uma pasta esbranquiçada. Nada doía, era a vontade de Deus. A vontade de Deus, até quando? E por quê? (Chiavenato, 1993, p. 150).
O autor de As meninas do Belo Monte tece várias críticas aos jornalistas e personalidades importantes que, conhecendo os crimes cometidos contra as sobreviventes de Canudos, nada ou muito pouco fizeram. Chiavenato traz para dentro de sua narrativa a figura do jornalista, contudo o narrador está a todo momento condenando a postura daqueles que escreveram sobre o episódio e se calaram diante dos fatos. A respeito da figura de Euclides da Cunha, que supostamente aparece no romance como o jornalista que encontra a menina Josefa e cogita levá-la com ele para o Rio de Janeiro, também relata-se que não teve energia para exigir do comando a sua permissão, decidindo abandoná-la à própria sorte. Sobre isso, Chiavenato escreve:
Não era um homem mau. Apenas um republicano como milhares, ofuscado pelas luzes do positivismo, alheio ao sertão. Não denegriria o exército, denunciando o estupro como prêmio da vitória. Lastimava, mas não causaria escândalo informando que os generais fechavam os olhos à caça de crianças para satisfazer a lubricidade da tropa (Chiavenato, 1993, p. 89-90).
Em outra passagem do livro, o autor apresenta Rui Barbosa como outra personalidade que não teve vigor para denunciar as barbaridades republicanas. “Rui é outro frouxo. Ameaçaram-lhe, deram uns berros e ele engavetou seus discursos. Rui... Rui agora é advogado de estrangeiros” (Chiavenato, 1993, p. 141).
Com relação ao comitê patriótico criado pelo governo para proteger e resgatar as sobreviventes de Canudos, Chiavenato é taxativo em evidenciar que se tratava de um movimento fraco e ineficaz, criado por causa da grande repercussão que foi a comercialização das crianças de Canudos e, assim, mascarar o descaso do governo com as vítimas. Apenas mais uma maneira de abafar o escândalo:
Vejam os senhores: a República quis acabar com os coronéis como Trazíbulo, que descabaçavam, matavam e roubavam terras, mas honravam as vítimas. E o que fez? Matou, estuprou, exterminou, tudo mil vezes pior, com requintes sádicos, e não honra ninguém. Manda três patetas ao sertão recolher as putinhas que não servem aos patifes que as compraram e contenta-se com um relatório para os jornais (Chiavenato, 1993, p. 163).
Não restam dúvidas de que o foco do romance As meninas do Belo Monte é exatamente a questão das meninas que foram vendidas para a prostituição, com o encerramento da Campanha. Em consequência disso, Chiavenato revela em suas estratégias de escrita, a participação ativa das mulheres na Guerra de Canudos, resgatando a figura feminina como sujeito histórico, participante ativa dos movimentos sociais e políticos.
De acordo com Dantas (1922), as mulheres constituíam a parte mais numerosa dos seguidores de Antônio Conselheiro, formando aproximadamente dois terços dos habitantes de Belo Monte. Contudo é tarefa difícil encontrar a origem dessas mulheres e o papel que desempenharam nesse movimento político do século XIX, devido à escassez de matéria sobre elas. “A escassa produção acadêmica encontrada que abrangem todo território nacional confirma que, no Brasil, a mulher costuma ser ignorada enquanto sujeito histórico...” (Almeida, 1998, p. 51).
Percorremos a obra de Chiavenato buscando esse resgate do feminino na guerra, observando a participação ativa e atuante das mulheres que viveram no Arraial liderado por Antônio Conselheiro, enfrentando as expedições oficiais encarregadas de pôr um fim ao movimento que ameaçava a ordem e o progresso da nação.
As meninas do Belo Monte mostra como era a vida cotidiana da comunidade que se opunha à República, evidenciando a pregação igualitarista do Conselheiro. O pai de Josefa já é informado, ao chegar a Belo Monte, com a família, que as cabras que levaram agora seria propriedade de todos e a todos serviriam, pois na comunidade não havia posse privada de bens:
O senhor não tem mais cabras, mestre Fabrício. Agora elas são do Belo Monte, os meninos cuidam delas. O senhor não tem cabras, nem mais nada. Ninguém possui um til. Mas o Belo Monte inteiro é seu. Terras pro senhor plantar. Igreja pra rezar. Casa pra morar. Comida dos filhos. Tudo é seu, nada é de sua propriedade (Chiavenato, 1993, p. 12).
As cabras eram a principal fonte de renda da comunidade e delas praticamente tudo era aproveitado: leite, ossos, carne e chifre. As crianças tinham atividades atribuídas e divididas entre meninos e meninas. As meninas tiravam o leite das cabras e apartavam os cabritos e os meninos se encarregavam das tarefas que exigiam maior força física, como carregar latões cheios de leite.
Chiavenato narra a primeira expedição, enviada pelo Conselheiro a Juazeiro, por ocasião de não receberem a madeira comprada e paga para construção da igreja, como uma tentativa pacífica de resolver o problema, enviando um grupo de mulheres, velhos e crianças cantando rezas: “Andaram léguas. Josefa, sua mãe e seu pai entre eles. Mas não chegaram ao Juazeiro. Às portas da vila do Uauá, a tropa atacou. Mulheres e crianças morreram louvando o Bom Jesus” (Chiavenato, 1993, p. 22).
A partir de então, os conselheiristas entendem que a guerra seria inevitável e se preparam para a resistência. As mulheres aparecem como espiãs disfarçadas, que se infiltraram entre as tropas para colherem informações sobre as invasões a Canudos, assim, a comunidade canudense se articulava para defender o Belo Monte. Essas informações eram cruciais aos jagunços que faziam seus planos certeiros de defesa e ataque, não sendo pegos de surpresa. Portanto, as mulheres espiãs desempenharam um papel importante e de muita coragem.
Em outra passagem do livro, quando os conselheiristas se articulavam para enfrentarem os soldados da República, na luta armada, Chiavenato registra que entre os escolhidos para o combate havia várias mulheres:
E mulheres como Maria Rita, Maria das cobras, Pedrinha Baguê, Zefa Nega, Rosário de Cristo [...] Você, Maria Rita, não lutará mais com a guiada. Será sempre com o clavinote, pois não erra tiro. Se você morre no corpo-a-corpo com sua guinada, não é um guerreiro que Belo Monte perde, mas dois: um, o que briga na cara do cão, o outro, o que não vai mais atirar de cima dos montes. [...] Na luta recente, Maria Rita, com seus dezoito anos, vestida de homem, enfrentou os republicanos, estocando com a guiada, terminando o serviço com o punhal no pescoço inimigo. Agora seria atiradora de elite. Não porque afamou-se como a Virgem da caatinga, nem por ser sobrinha de Macambira, mas para guerrear no grupo de atiradores treinados para matar o chefe mais alto do Cão (Chiavenato, 1993, p. 49).
Outras mulheres aparecem na narrativa como organizadoras de grupos de guerreiras, e de grupos que, após as batalhas, recolhiam os corpos dos jagunços para os enterrarem dignamente ou recolhiam armas que ficavam junto aos corpos dos inimigos republicanos. Outras ainda deixaram suas casas e vieram ao Belo Monte fundar escolas para alfabetizar aquele povo.
Santinha organizou um piquete feminino, que corria os campos de batalha recolhendo os feridos e sepultando os mortos. Maria das cobras convocou as crianças, para espantar com sua louca audácia os soldados republicanos. E era luta também o que faziam Maria de Vasconcelos e Maria Figueira, que vieram da Bahia onde eram professoras, para fundar escolas no Belo Monte (Chiavenato, 1993, p. 49).
Entre as várias mulheres citadas no livro, ganha destaque a mãe de Josefa, que compreendeu o significado do que seria aquela guerra, quando perdeu o marido na primeira batalha, da ida ao Juazeiro, para reivindicarem a madeira. A partir de então, tomada pelo ódio e pela vingança, Maria das Cobras (como passou a ser chamada), empenhou-se ativamente no combate, participando das reuniões informais dos jagunços e os convencendo da necessidade de planejar a luta, com o aproveitamento de mulheres e crianças nos enfrentamentos. “De tanto ouvi-la, os homens resolveram planejar a luta, concordaram que mulher e criança também seriam úteis” (Chiavenato, 1993, p. 27). Maria das Cobras formou um verdadeiro exército de crianças que, sob sua orientação, percorriam a caatinga após os combates, procurando os corpos dos oficiais da república para lhes arrancarem as armas e assim munir a jagunçada. Ela e seu exército “lutaram de forma especial, impondo o terror aos soldados e um certo medo aos companheiros” (Chiavenato, 1993, p. 60).
Acerca do combate final que destruiu Belo Monte, Chiavenato não deixa de registrar a situação das mulheres, pontuando que não foram poupadas da prática da degola, chamada de “gravata vermelha”, prática usada pelo exército republicano para dizimar Canudos e, também, da condição das mulheres que conseguiram sobreviver ao massacre, sendo feitas prisioneiras de guerra, junto com crianças. “No curral de arame farpado, vigiadas por sentinelas, as sobreviventes do Belo Monte ouviam os risos da vitória. Eram mulheres e crianças. Magras, doentes e feridas (Chiavenato, 1993, p. 88-85), “acostumadas à solidariedade, organizaram-se em silêncio. Mulheres e meninas rastejavam entre os restos do seu povo” (Chiavenato, 1993, p. 87). Completando esse quadro de horror, essas mulheres tiveram que entregar seus filhos aos oficiais republicanos, iniciando a comercialização de suas crianças.
em Queimadas vimos dezenas de crianças que vinham de carroça porque, de tão fracas, não mais podiam andar. Muitas estropiadas pelos soldados: o estupro foi norma. [...] Mais de cem crianças estavam presas em pequenas celas, morrendo à míngua. Mercadoria à venda, esperando compradores (Chiavenato, 1993, p. 163).
Considerações finais
O fazer histórico sobre a questão feminina carece de historiadores que interpretem a importância da atuação da mulher no cenário de guerra, por isso na Literatura não é diferente. Obras como As meninas do Belo Monte são de extrema importância na desconstrução de imagens tradicionais de guerra, apresentadas pelas narrativas históricas e literárias, marcadas por vozes masculinas. Pautadas no discurso patriarcal, construíram a História por homens e para homens, cabendo sempre a eles o protagonismo e o merecimento. As meninas do Belo Monte é uma obra em defesa da história das mulheres nos conflitos de guerra, histórias omitidas e escondidas que não figuram nos discursos oficiais.
O compromisso da História em responder a incômoda invisibilidade da mulher, como sujeito histórico, comprovada nas narrativas oficiais e também o compromisso em acolher as mulheres como objetos de estudo, dando a elas o mesmo valor político e social, parece apontar o caminho para uma História que ofereça novas perspectivas para a construção de uma sociedade que enxergue mulheres e homens como sujeitos históricos de igual valor.
Referências
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BASTOS, Alcmeno. Os sertões, a História, a ficção. In: MONTECHIARI, Anélia (org.). Euclides da Cunha presente e plural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
CALASANS, José. As mulheres de “Os Sertões”. Salvador: Centros de Estudos Baianos, 2001.
CHIAVENATO, José Júlio. As meninas do Belo Monte. São Paulo: Página Aberta, 1993.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2000.
DANTAS, S. de Souza. Aspectos e contrastes: ligeiro estudo sobre o sertão da Bahia. Rio de Janeiro. Tip. Rev. dos Tribunais, 1922.
MANGABEIRA, Francisco. Tragédia épica: Guerra de Canudos. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010.
OLIVEIRA, Walner da Costa. Entre bruxas e princesas: a construção de identidades femininas ente as prisioneiras de canudos. In: COSTA, Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Feminismo, ciência e tecnologia. Salvador: Redor/Neim-FFCH/UFBA, 2002.
PANOS INSTITUTE. Armas para luchar, brazos para proteger. Barcelona: Icaria, 1995.
PEIXOTO, Afrânio. Poeira da estrada. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1947.
RABELO, Sílvio. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: CEE, 1948.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, 1992.
Publicado em 28 de março de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
LOURENÇO, Elzafran Santos Sousa. O resgate da mulher no cenário de guerra no romance "As meninas do Belo Monte". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 11, 28 de março de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/9/o-resgate-da-mulher-no-cenario-de-guerra-no-romance-as-meninas-do-belo-monte
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