“Numa Escola de Havana”: inferências para as sociologias da educação

Lorenzo dos Santos Konageski

Graduando em Ciências Sociais (UnB), integrante do Projeto de Extensão Ciências Sociais nas Escolas (CiSo/UnB) e do Programa de Educação Tutorial em Sociologia (PET/SOL/UnB), bolsista de Iniciação Científica (CNPq)

O filme cubano Numa escola de Havana (originalmente, Conducta, em espanhol) foi lançado em 2014; no entanto, no Brasil, seu lançamento ocorreu em 2015. Foi dirigido por Ernesto Daranas e recebeu o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema de Havana de 2014.

A obra mostra a situação de uma sala de aula do Ensino Básico na capital cubana, Havana. Muitos quadros são mostrados nessa turma, entre eles se destaca um: o caso do menino Chala (Armando Valdes Freire). Chala tem onze anos e pertence à periferia havanesa. Sua mãe é viciada; por isso, muitas vezes determinadas responsabilidades de casa são atribuídas ao garoto: ele trabalha cuidando dos cachorros de um homem, que possui envolvimentos sobre sua mãe e existe uma dúvida, colocada no próprio filme: se ele é o pai de Chala ou não. Sendo assim, Chala possui pai ausente e a presença de sua mãe é contraditória.

Chala é aluno de Carmela (Alina Rodriguez), professora antiga em Cuba. Carmela possui preocupação com seus alunos, envolvendo-se até nos problemas pessoais deles. Com Chala, isso é notável.

O menino possui problemas de comportamento em turma. Além disso, sua situação em casa, com a ausência do pai e da mãe, faz com que, como foi dito, ele já trabalhe e tenha que ser o dono de casa. Por isso, o garoto foi muitas vezes impelido a ir para o internato – mas a professora discordava disso. No entanto, na ausência da professora (em decorrência de um problema de saúde), Chala vai para aquela instituição.

Outra aluna, Yeni (Amaly Junco), possui problemas na matrícula no que se refere à parte mais burocrática, porque sua família é de outro local. Ademais, uma situação muito particular acontece na turma: a aluna coloca uma imagem santa no mural da sala – o que é contrário às regras – em homenagem a um colega que havia morrido e que a havia levado à igreja pela primeira vez.

Ao voltar para a escola, Carmela fica ciente de todas as situações. Ela então busca Chala no internato, mesmo isso sendo contrário às decisões dos superiores. A relação dela com o menino é muito íntima; quando a mãe dele é internada na reabilitação, o garoto pede para dormir na casa da professora. Carmela também se nega a retirar a imagem santa do mural da escola. Todavia, Raquel (Silvia Aguila), uma responsável do governo que está intervindo na escola, começa a se incomodar com as atitudes de Carmela, de contrariar as decisões oficiais, e decide aposentar a docente.

Os alunos descobrem a possibilidade de a professora ser aposentada e não gostam da situação. Chala, por sua vez, vai ao internato para tentar evitar a aposentadoria da professora; entretanto o responsável pelo internato não permite a entrada do aluno e diz: “Sabe o que acabou de me provar? Que Carmela tinha razão”. A aluna Yeni também retira a imagem santa do mural. Porém Carmela a coloca novamente; na visão dela, os alunos não deveriam deixar de se expressar por causa da ameaça de sua aposentadoria; dessa maneira (ela colocando a imagem santa no mural), a aluna não precisaria se sentir responsável.

Na reunião, Carmela diz que não se aposentaria e que a única maneira de ela sair da escola seria com sua demissão por parte do governo. O final do filme mostra Chala e Carmela andando; nessa ocasião, Chala chama a professora e ela abre um sorriso.

“Todo ano tenho um ‘Chala’ em minha classe. Nenhum deles era mais forte do que eu, porque, no fundo, todos são crianças. Há quatro coisas necessárias para criar uma criança: casa, escola, rigor e carinho. Mas quando cruzam esta porta, está a rua, e um professor precisa saber o que lhes espera lá fora. Antigamente, a vida era mais clara, e eu sabia para o que preparava um aluno. Mas, atualmente, a única coisa clara para mim é para o que não devo prepará-lo”.

As Sociologias da Educação, que são os estudos da Educação pela Sociologia, podem mostrar um panorama que se aplica ao filme resenhado. Optei pelo uso de “Sociologias da Educação”, porque entendo que o campo é vasto e que essa sociologia pode ser realizada sob várias formas. Como mostraram Bourdieu e Passeron (2014, p. 11), no seu estudo sobre a reprodução das desigualdades sociais nos sistemas de ensino, a escola é a “reprodução das estruturas sociais por meio da produção de estruturas mentais que lhes são correspondentes”. Isso significa que a escola possui o objetivo de promover uma educação que esteja adequada à realidade social dos alunos; entretanto, isso não ocorre para todos, porque os grupos sociais não são representados igualmente. Apesar de estudarem o contexto do ensino superior francês, os autores citados conseguem exprimir uma situação geral de desigualdade que advém da origem social dos estudantes. E o problema está concentrado nisso: a escola não considera o conhecimento escolar com as diferenças de realidade (Bourdieu; Passeron, 2014, p. 37).

Carmela, por sua vez, tenta levar em consideração essas questões. Quando foi buscar Chala no internato, é reportado a ela que ele já havia tentado fugir duas vezes, ela rebate que ele não deixaria sua mãe sozinha, já que ele é responsável pela casa. Em suas palavras: “Onde quer que o coloque, a realidade o aguardará”. Ainda nesse sentido, Carmela conversa com a outra professora da turma e expõe: “Se quiser um delinquente, trate-o como um delinquente”. Carmela está na direção da Pedagogia Racional citada por Bourdieu e Passeron, fundada numa Sociologia das desigualdades culturais. “Toda democratização real supõe, portanto, que se ensine lá onde os mais desfavorecidos podem adquiri-la, isto é, a escola” ((Bourdieu; Passeron, 2014, p. 98).

Quando se fala em desempenho escolar, Bernard Lahire (1997) mostra isso ao analisar perfis familiares de grupos periféricos franceses; somadas ao caráter qualitativo da pesquisa estão as notas das crianças na avaliação nacional. Lahire conclui que os casos de sucesso escolar, ou seja, alunos que se saíram bem na avaliação, são levados por diversos motivos: a presença da cultura escrita, como a família realiza a gestão financeira, a existência de um local bem definido e próprio para estudos e do apoio moral/afetivo por parte da família, a existência de uma autoridade familiar e se existe ou não investimento pedagógico.

Lahire (1997) demonstra casos de famílias pobres e sem acesso ao capital cultural nas quais os filhos estão em situação de “sucesso”. Essa situação pode ser expressada no filme: Carmela entra em confronto com a professora que entrou na turma durante sua ausência acerca de como lidar com as situações dos alunos. A nova professora acha que Carmela intervém demais e diz que Chala precisa de ajuda. Carmela rebate e explica que “Yeni também precisa, e ela é a melhor aluna da classe”. Isso mostra que, apesar das dificuldades passadas por Yeni, a aluna se destaca graças à ação dos responsáveis junto à escola.

A pesquisa de Maria Lígia Barbosa (2011) mostra, nesse sentido, que as meninas possuem desempenho melhor na América Latina e que outras questões, como raça, gênero e classe social, são determinantes para as questões relacionadas ao desempenho escolar. As inferências de Barbosa (2011) mostram que as professoras conhecem o desempenho dos alunos e que aqueles alunos que possuem configurações familiares próximas do que a escola pede podem ter ou não bom desempenho, como mostrou a pesquisa de Lahire (1997). Ainda pode ser explicado o caráter do trabalho das docentes e da adaptação do estilo de ensino à realidade de cada sala, não criando alunos ideais, mas sim alunos que possam se desenvolver de acordo com as condições objetivas. Esse caráter pode ser percebido na pedagogia exercida por Carmela.

A crítica feminista questiona a atribuição do trabalho de cuidado às mulheres, em que o trabalho de cuidado é visto como feminino. Esse é um fenômeno dissidente da divisão sexual do trabalho. Como analisa Flávia Biroli, “a divisão sexual do trabalho é um lócus importante da produção do gênero” (2018, p. 23). Enquanto os homens se dirigem para o trabalho remunerado, as mulheres desempenham, na sociedade patriarcal capitalista, o trabalho doméstico não remunerado. O trabalho de cuidado é, inclusive, muito desvalorizado, como mostra o feminismo-marxista (Fraser, 2013).

A escola é entendida por alguns como feminina, pois “é, primordialmente, um lugar de atuação de mulheres [...]; a atividade escolar é marcada pelo cuidado, pela vigilância e pela educação, tarefas tradicionalmente femininas” (Louro, 1997, p. 88). Para outros, a escola é entendida como masculina, pois o conhecimento havia sido produzido por homens, ou seja, “é possível argumentar que, ainda que as agentes do ensino possam ser mulheres, elas se ocupam de um universo marcadamente masculino” (Louro, 1997, p. 89). Percebe-se, que “a escola é atravessada pelos gêneros” (Louro, 1997, p. 89).

Ao falar do Brasil, a autora mostra uma situação que parece ser presente no filme e na figura de Carmela e que é passível de crítica:

Já que se entende que o casamento e a maternidade, tarefas femininas fundamentais, constituem a verdadeira carreira das mulheres, qualquer atividade profissional será considerada como um desvio dessas funções sociais, a menos que possa ser representada de forma a se ajustar a elas. Em seu processo de feminização, o magistério precisa, pois, tomar de empréstimo atributos que são tradicionalmente associados às mulheres, como o amor, a sensibilidade, o cuidado etc. para que possa ser reconhecido como uma profissão admissível ou conveniente (Louro, 1997, p. 96-97, grifos meus).

Nas palavras de Guacira Louro, as professoras são vistas como “mães espirituais – cada aluno/aluna deve ser percebido/percebida como seu próprio filho ou filha” (Louro, 1997, p. 97).

Nesse sentido, é importante destacar que o papel desempenhado por professores do Ensino Básico não se restringe ao cuidado, mas também a conteúdos das mais diversas áreas do conhecimento. Quando se fala em Educação Infantil, o trabalho de pedagogos é diminuído em detrimento de outras profissões, por causa da desqualificação profissional e dos salários baixos (Araujo; Oliveira; Costa, 2019).

Em realidade, o trabalho de professores do Ensino Básico é visto como fundamentalmente maternal e de cuidado. Sendo assim, configura-se uma maioria de educadores mulheres que se reflete na construção que é feita da figura materna, representada pela mãe, que se envolve nos problemas pessoais das crianças. Muitas vezes, esse cuidado que professoras e professores têm com os alunos é de caráter quase familiar e sobrecarrega-os. Carmela possui ações que a colocam nesse espectro maternal do cuidado. Em diversos momentos ela age como um familiar de Chala, acolhendo-o inclusive em sua casa.

A crítica feminista é importante ao estudar e analisar os papéis que as mulheres desempenham na sociedade; nesse contexto, a baixa remuneração de docentes da Educação Básica – quando eles são, em sua grande maioria, mulheres – pode-se correlacionar ao trabalho de cuidado desenvolvido por mulheres, que não é remunerado. Ou seja, os trabalhos ocupados por mulheres são desvalorizados de forma generalizada.

Em suma, o filme consegue trazer aspectos importantes para as Sociologias da Educação em suas diferentes vertentes, algumas vistas nesta resenha. Ainda nesse sentido, é importante destacar que existem várias dissidências e opiniões entre educadores, o que pode ser notado na própria obra audiovisual acerca de como proceder com as situações de seus alunos.

Referências

ARAUJO, Dhanyele Sousa; OLIVEIRA, Francisca Keila Ribeiro de; COSTA, Inácia Nathalia Oliveira da. O outro lado do paraíso: os desafios da docência na educação infantil. VI JOIN BRASIL - PORTUGAL. Anais... Campina Grande: Realize, 2019. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/57797. Acesso em: 11 jun. 2022.

BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira. Desigualdade e desempenho: uma introdução à Sociologia da escola brasileira. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.

BIROLI, Flávia. Divisão sexual do trabalho. In: BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 21-52.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Trad. Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.

FRASER, Nancy. Feminism, Capitalism, and the Cunning of History. In: FRASER, Nancy. Fortunes of Feminism: From state-managed capitalism to neoliberal crisis. New York: Verso, 2013. p. 209-226.

LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.  

Publicado em 04 de abril de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

KONAGESKI, Lorenzo dos Santos. “Numa Escola de Havana”: inferências para as sociologias da educação. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 12, 4 de abril de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/12/rnuma-escola-de-havanar-inferencias-para-as-sociologias-da-educacao

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