Trabalho colaborativo e acessibilidade: a labuta dos profissionais da educação de surdos

Artur Maciel de Oliveira Neto

Mestrando profissional em Educação Especial (Unesp), especialista em Tradução e Interpretação (FAHE), em Docência no Ensino Superior de Libras (Funip), em Neuropsicopedagogia e Educação Especial e Inclusiva (Funip), em Atendimento Educacional Especializado (Funip), em Pedagogia, Gestão, Supervisão e Coordenação Escolar (Facol), bacharel em Administração de Empresas (FSH), licenciado em Letras Português e Inglês e literaturas (UPE), tradutor intérprete de Libras, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Inclusão Social (Gepis/Unesp), professor TILSP da rede de ensino do Rio Grande do Norte, no CAS Mossoró/RN

Daniela de Fátima Barbosa Gonzales

Mestranda profissional em Educação Especial (Profei/Unesp), especialista em em Docência do Ensino Superior, Educação Especial: Ensino do Aluno com Deficiência Auditiva, em Língua Brasileira de Sinais – Libras, graduada em História e Pedagogia, professora da rede municipal de ensino de São Paulo em escola bilíngue para surdos, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Inclusão Social (Gepis/Unesp) e do Grupo de Estudos Trabalho Pedagógico Bilíngue com Alunos Surdos (TraBiS/Unifesp)

Michelle de Souza Simone

Mestranda do Mestrado Profissional em Educação Especial (Profei/Unesp), especialista em Educação Especial, Orientação Educacional e Supervisão Escolar (UCM), licenciada em Pedagogia (Umesp), orientadora pedagógica e professora especialista em Educação Especial da Prefeitura Municipal de Duque de Caxias/RJ

Rosecleide Orozimbo Harada

Licenciada em Letras - Português e Literaturas (Faculdade Luterana), em Letras - Libras (Faculdade Eficaz), bacharel em Libras (Faculdade Eficaz), especialista em Educação Inclusiva (Faculdade Eficaz), em Tradução e Interpretação de Libras (Facel) e em Libras (Faculdade de Educação São Luís), professora tradutora/intérprete de Libras na UEMS e professora especialista em Sala de Recursos Multifuncionais para deficientes auditivos ou com surdez, mestranda profissional em Educação Inclusiva (Profei/Unesp – câmpus Presidente Prudente)

A primeira tentativa de favorecer a todos na área educacional foi em 1824, na Constituição Política do Império do Brazil, no seu Art. 179:

Inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte [...]

XXXII. A Instrucção primaria e gratuita a todos os Cidadãos. (Brasil, 1824).

Historicamente, as pessoas com deficiências foram temas centrais de várias alianças internacionais com foco na integração social. Vistos apenas pela perspectiva clínico-terapêutica, os surdos foram rotulados e vivenciaram experiências alicerçadas no assistencialismo e no capacitismo. Sua trajetória foi marcada por muitas mortes, rejeições e traumas, e é possível perceber que todas as intervenções na história dos surdos foram intencionais: ora a família queria normalizar o filho, ora prepará-lo para atuar ativamente em casos de patrimônios e heranças, isso nos leva a entender que toda acolhida dos surdos pelos monges e médicos da Idade Média foi cheia de intencionalidades

Como já dizia o grande cantor e compositor John Lennon (1971), “Imagine todas as pessoas compartilhando o mundo inteiro” (“Imagine all the people sharing all the world”); talvez, assim como o cantor, nós também possamos ser vistos como sonhadores, mas sonhos são trilhas que levam às realizações.

Imagine se todos pudéssemos usufruir dos saberes com igualdade e justiça? O que nos impede de viver tal utopia? Talvez nós sejamos considerados sonhadores, mas sonhamos, sim, com uma escola para todos. Assim, diante do sonho de uma escola para todos, cabe perguntar qual vem sendo o papel dos profissionais da Educação de Surdos, ou seja, que trabalho colaborativo vem sendo desenvolvido de forma a contribuir efetivamente com o processo de ensino-aprendizagem do estudante surdo?

Esta pesquisa justifica-se por a atuação dos profissionais da Educação de Surdos ter se apresentado como desafio diante a falta de colaboração e de parcerias entre os atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

Para Costa (2016), a promoção de políticas públicas em prol da Educação Inclusiva não garante sua efetividade dentro das instituições de ensino; é necessário um trabalho colaborativo entre docentes do ensino comum e do ensino especial.

Na nossa concepção, não basta implementar políticas que preconizam a Educação Inclusiva sem oferecer aos docentes condições pedagógicas como: atendimento educacional especializado, parcerias institucionais, trabalho colaborativo, cooperação entre docentes do ensino comum e docentes do ensino especial e formação inicial e continuada, para que, ao se deparar na sala de aula com estudantes deficientes, os docentes possam se sentir desafiados frente às ações inclusivas (Costa, 2016, p. 12).

De acordo com Lacerda (2010), várias diretrizes e leis orientam as políticas públicas para a Educação de Surdos; elas devem orientar as ações governamentais no atendimento à pessoa surda, principalmente no que se refere à sua educação. Para Quadros (2004), à medida que a língua de sinais do país passou a ser reconhecida como língua de fato, os surdos passaram a ter garantia de acesso a ela como direito linguístico. Consequentemente, as instituições se viram obrigadas a garantir acessibilidade comunicacional a essas pessoas por meio da contratação do tradutor intérprete de Libras.

Diante disso, este artigo traz discussões acerca do trabalho colaborativo (ou a falta dele) entre professores e o intérprete de Libras nas salas de aula comuns com estudantes surdos e o trabalho colaborativo dentro das escolas bilíngues de dois estados brasileiros, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Objetivamos apresentar experiências exitosas do trabalho colaborativo na Educação de Surdos tanto na perspectiva bilíngue quanto inclusiva.

Pensar o real da utopia, pensar o ensino colaborativo na Educação de Surdos

O ensino colaborativo ou coensino surgiu na década de 1980 nos Estados Unidos, conforme apontam Capellini e Zerbato (2019), trazendo possibilidades de atendimento aos estudantes público-alvo da Educação Especial (PAEE) como modelo de prestação de serviço de apoio no qual o professor do ensino comum e um professor especializado dividem a responsabilidade de planejar, instruir e avaliar o ensino dado a um grupo heterogêneo de estudantes.

Nesse sentido, trabalhar colaborativamente parte do pressuposto de proporcionar um currículo acessível a todos os alunos (com e sem deficiência) como alternativa para a implementação de um ambiente educacional verdadeiramente inclusivo. Essa tem sido uma proposta inclusiva bem significativa em outros países, porém no Brasil ainda é desconhecida por muitos profissionais da Educação ou não é colocada em prática (Mendes; Vilaronga; Zerbato, 2014).

Para Capellini e Zerbato (2019), a efetivação do trabalho colaborativo é bastante desafiadora, pois comumente os professores de ensino comum e especializado realizam suas funções de forma individualizada, algo que já é constituído culturalmente dentro das escolas.

Visando superar a cultura do trabalho isolado, o ensino colaborativo traz como proposta que os professores da sala comum e da Educação Especial compartilhem o espaço e construam o planejamento das suas ações conjuntamente:

A força da colaboração encontra-se na capacidade de unir habilidades individuais dos educadores para promover sentimentos de interdependência positiva, desenvolver habilidades criativas de resolução de problemas e apoiar um ao outro, de forma que todos assumam as responsabilidades educacionais (Mendes; Vilaronga; Zerbato, 2014, p. 65).

É importante compreender que, conforme elucidam as autoras Capelline e Zerbato (2019, p. 43), no ensino colaborativo não existe um modelo único para organização do ensino; o sucesso da sua implementação se constitui no engajamento de todos os envolvidos, clareza na definição dos papéis e responsabilidades e, consequentemente, uma gestão que tenha comprometimento com essa proposta e a sua articulação dentro da escola.

Considerando a ideia central da proposta do ensino colaborativo, que é aperfeiçoar o ensino de modo que todos os estudantes sejam beneficiados no processo de aprendizagem, torna-se fundamental refletir acerca do trabalho pedagógico desenvolvido dentro do espaço da sala de aula comum (Mendes; Vilaronga; Zerbato, 2014).

Diante do mencionado, podemos perceber a importância do avanço nas discussões, na implementação e formação docente frente às propostas de organização de ensino pautadas no ensino colaborativo e suas possibilidades no atendimento a estudantes surdos e dos demais. O que se busca neste trabalho é a reflexão sobre se a atual configuração do atendimento educacional especializado (AEE) que é realizado majoritariamente nas SRM, que surgiu como serviço de apoio para atender às especificidades desses estudantes PAEE e eliminar as barreiras que impedem os estudantes com deficiências, transtorno global do desenvolvimento, altas habilidades e superdotação acessem o currículo proposto na sala regular, tem favorecido de fato esses estudantes surdos.

Entre as principais discussões sobre esse formato de atendimento realizado nas SRM está aquela sobre sua realização no contraturno do estudante, o que dificulta que o professor do atendimento especializado, o intérprete e o professor do ensino comum analisem as propostas desenvolvidas para aquele estudante – no caso deste trabalho, o estudante surdo.

Considere-se também que os recursos que podem favorecer o processo de aprendizado e participação desses estudantes deveriam estar em sua classe comum, ou seja, no contexto de sua sala de aula, incluindo assim, o professor especializado. Podemos observar que o ensino colaborativo pode favorecer o aprimoramento das práticas pedagógicas na inclusão escolar dos estudantes surdos, rompendo com alguns entraves e favorecendo-os com práticas articuladas e dialogadas entre esses professores e demais profissionais envolvidos nesse processo de ensino-aprendizagem.

Este trabalho busca fomentar, por meio dos registros de relatos de práticas colaborativas exitosas que foram realizadas nos municípios já mencionados, para avançar no atendimento a estudantes surdos dentro perspectivas mais alinhadas à Educação Inclusiva.

Materiais e métodos

Em função do objetivo desta investigação, a abordagem de pesquisa deste trabalho foi do tipo qualitativa. De acordo com Creswell (2014, p. 49),

a pesquisa qualitativa começa com pressupostos e o uso de estruturas interpretativas/teóricas que informam o estudo dos problemas da pesquisa, abordando os significados que os indivíduos ou grupos atribuem a um problema social ou humano. O relatório final ou a apresentação incluem as vozes dos participantes, a reflexão do pesquisador, uma descrição complexa e interpretação do problema e a sua contribuição para a literatura ou um chamado à mudança.

A abordagem metodológica utilizada foi relato de experiência, uma vez que buscamos dar voz aos sujeitos pesquisados, apresentando o ponto de vista dos que atuam diretamente na Educação de Surdos na rede pública de ensino em dois estados brasileiros, São Paulo e Mato Grosso do Sul.

O relato de experiência é um texto que descreve precisamente uma dada experiência que possa contribuir de forma relevante para sua área de atuação. É a descrição que um autor ou uma equipe fazem de uma vivência profissional tida como exitosa ou não, mas que contribua com a discussão, a troca e a proposição de ideias (UFJF, 2017, p. 1).

Como instrumentos para a coleta de dados utilizamos o relato de experiência; a observação foi realizada nas aulas presenciais e remotas que ocorriam por meio do aplicativo Google Meet em diversas disciplinas.

Os sujeitos da pesquisa foram dois profissionais que atuam diretamente na Educação de Surdos, uma intérprete de Libras do Estado do Mato Grosso do Sul e uma professora pedagoga bilíngue do Estado de São Paulo.

A escola como ela é…

Hoje nas escolas comuns com estudantes surdos temos o apoio do intérprete de Língua Brasileira de Sinais - Libras, o professor interlocutor e/ou instrutor mediador modalidade sinalizada (cada estado utiliza uma nomenclatura para a mesma função, embora elas tenham significados diferentes), que é responsável por fazer a mediação entre a língua portuguesa e a Libras dentro do contexto escolar, conforme garantido na Lei nº 10.436/02 em seu Art. 1º:

É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.

Parágrafo único: Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 5.626:

Art. 14. As instituições federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a Educação Infantil até à Superior.

Mas apenas essa mediação é suficiente para que o ensino-aprendizagem do estudante surdo ocorra de forma plena e ele tenha seus direitos garantidos conforme prevê a legislação?

É sabido que os estudantes surdos deparam-se com inúmeros prejuízos desde sua tenra idade pela falta de comunicação e inexistência do input linguístico adequado (Quadros, 1997), quando ele faz parte de famílias ouvintes que não utilizam Libras. As marcas e os atrasos são significativos e perceptíveis quando atingem idade escolar. Apesar de adquirir linguagem, ainda não se apropriou de uma língua para se comunicar; diante disso, como incluir esse estudante em um ambiente escolar? Qual o papel do intérprete de Libras e do professor regente de sala de aula no processo de ensino-aprendizagem desse estudante?

Deparamo-nos com um cenário corriqueiro dentro das escolas e, infelizmente, com pouca orientação pedagógica para que esse estudante realmente avance em conhecimento.

O educador realiza sua aula focando nos 30, 35 estudantes de sua sala de aula e deixa a cargo do intérprete de Libras a responsabilidade de traduzir as aulas; o intérprete, por sua vez, muitas vezes não tendo formação adequada (alguns estados exigem somente o Ensino Médio e um curso de Libras com carga horária em torno de 100 horas e então ele já pode ser considerado um intérprete dentro do ambiente escolar), não sabe como auxiliar aquele estudante nas atividades propostas, tornando esse ensino “sem” aprendizado significativo, em que o estudante simplesmente “passa” pela escola mas sem pertencer a ela de fato.

Quem devemos culpar por essa cruel realidade? O professor que enfrenta jornadas exaustivas de trabalho, sem formação continuada para melhor desenvolver seu ofício? O tradutor intérprete de Libras que foi contratado para trabalhar como um canal de comunicação em que apenas realizará a transferência do que está sendo ensinado para outra língua, a Libras? Ou devemos fazer uma reflexão sobre as políticas públicas que são impostas cada vez mais com jargões de políticas inovadoras, mas que em suas entrelinhas nos deixam cada vez mais impotentes para alcançar o real objetivo da escola, o de ensinar?

A realidade atual das escolas inclusivas apresenta diversos dificultadores do ensino-aprendizagem dos estudantes surdos; um deles refere-se ao atendimento educacional especializado nas salas de recursos multifuncionais que ocorre no contraturno escolar do estudante, que não vem ao encontro da real necessidade de aprendizagem do aluno dentro do contexto escolar; outro dificultador é a falta de diálogo entre professores e intérprete de Libras, não existe um planejamento realizado por esses dois profissionais de forma a contemplar as reais necessidades do estudante surdo, o que traz inúmeros prejuízos ao estudante, dificulta o trabalho do intérprete e não traz resultados satisfatórios ao professor em seu ofício.

Nas escolas bilíngues para surdos contamos com professores bilíngues, o que apresenta uma “certa” tranquilidade, já que teoricamente esse profissional deve possuir proficiência em língua de sinais – pelo menos é o que diz o Decreto nº 5.626/05:

Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela Educação Básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de:

I - Escolas e classes de educação bilíngue abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental (Brasil, 2005).

Mas não é essa a realidade das escolas bilíngues do município de São Paulo; embora tenhamos profissionais engajados no ensino-aprendizagem dos estudantes surdos, a exigência de que esses profissionais ministrem aulas nas escolas bilíngues refere-se apenas à formação em pós-graduação (lato sensu) em Educação Especial com ênfase em Educação de Surdos; infelizmente não existe um exame de proficiência em língua de sinais, resultando em profissionais com pouco ou nenhum conhecimento em Libras, prejudicando o ensino-aprendizagem dos estudantes com surdez nos espaços bilíngues.

A família é a preceptora dos conhecimentos preliminares, porém o diagnóstico de surdez é um paralisante; o medo, a falta de conhecimento e a marginalização histórica que apresenta a surdez estereotipada como quebradura que precisa ser corrigida traz aos familiares a busca incessante por uma “correção” aparente, o que não poderia ser diferente, já que a área da Saúde não oferece informações acerca de cultura e identidade surda, levando a família a acreditar que a única alternativa para uma “normalização” do sujeito é a busca por tratamentos fonoaudiológicos e adereços compensatórios, acarretando atraso significativo em desenvolvimento linguístico do estudante.

Acessibilidade e oportunidade: relato de experiência em uma escola bilíngue de São Paulo

No ano de 2021 deparamo-nos com inúmeras situações causadas pelo isolamento social que os estudantes e toda a população obrigatoriamente vivenciaram. Diante desse isolamento, os estudantes tiveram inúmeros prejuízos de aprendizagens, e para os estudantes surdos esses prejuízos foram acentuados devido à falta de comunicação em Libras no âmbito familiar.

Em maio de 2021 iniciou-se a campanha Importância da Vacinação, realizada pelo Instituto e Fundação Butantan em parceria com a Sanofi Pasteur (maior empresa do mundo inteiramente voltada para a produção de vacinas), a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e os Estúdios Maurício de Souza; essa campanha propôs a todas as escolas da rede municipal um concurso para desenvolvimento de um slogan para a campanha conscientizando sobre a vacinação. Nesse período já estávamos retornando gradativamente ao ensino presencial, com alguns estudantes ainda em ensino remoto.

É importante salientar que nossa escola teve dificuldade para realizar a inscrição no concurso, haja vista que só constavam os nomes das escolas comuns para a participação; diante disso, a gestão da escola entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação solicitando o direito a participar do concurso (um direito que é de todos, porém sempre deparamo-nos com esse tipo de barreira nas inscrições, por tratar-se de escola bilíngue - EMEBS); após alguns dias, finalmente fomos autorizados a participar do concurso e então anunciamos aos estudantes do 6º e 7º anos.

Os estudantes sentiram-se muito entusiasmados, embora estivessem apreensivos com o desenvolvimento do slogan, por ser em língua portuguesa, segunda língua dos estudantes surdos; alguns não acreditavam que conseguiriam competir em igualdade com os estudantes ouvintes, já que esses utilizam a língua portuguesa como sua primeira língua.

Eu, como professora das disciplinas de História e Geografia, em conjunto com as professoras de Língua Portuguesa e Libras, optamos por realizar um trabalho interdisciplinar, atrelando a temática às disciplinas, utilizando imagens, textos, mapas e contextualizando os períodos históricos referentes à evolução das vacinas até os dias atuais. Realizamos também um trabalho árduo de adequação dos materiais disponibilizados pelos organizadores da campanha, traduzimos o Gibi da Turma da Mônica em Libras e todos os vídeos disponibilizados no site da campanha, realizamos adequações do conteúdo com imagens e sinais em Libras, além de apresentar aos estudantes diversos slogans de outras campanhas para elucidar aos estudantes como deveriam desenvolver o slogan do concurso.

            Além da adequação dos materiais, foi necessário apresentar aos estudantes documentos de vacinação para que eles entendessem claramente o conceito de vacina, já que, diferentemente dos estudantes ouvintes que já constituem conceitos por meio social, os estudantes surdos muitas vezes não entendem o conceito do documento e sua importância.

            Após todas as apresentações, percebemos que a construção do slogan em língua portuguesa configurava-se um grande desafio aos estudantes que possuem como primeira língua a Libras; diante disso, decidimos partir da construção do slogan visual: os estudantes foram desafiados a desenhar um fôlder com a campanha, de forma que eles pudessem representar em imagem seu pensamento de slogan.

            Após a produção dos desenhos, os estudantes, com auxílio dos professores, apresentaram em Libras o seu slogan e iniciaram então as produções escritas em língua portuguesa, tendo suas produções artísticas como base. Foi um trabalho muito produtivo e de muito significado para os estudantes e resultou em muito aprendizado e conscientização de toda a unidade escolar.

            O concurso teve 33.113 estudantes inscritos e resultou em cinco estudantes ganhadores com os slogans selecionados pelos organizadores; um dos slogans contemplados, “Pequenas doses de vida, vacine-se!”, foi criado por um estudante surdo do 7º ano de nossa escola.

            Este relato vem apresentar não somente o fato de um estudante surdo ter alcançado o mérito de melhor slogan, mas também mostrar que todos são capazes; esse concurso foi muito importante para os estudantes entenderem seu potencial e que podem ocupar todos os espaços na sociedade; basta terem acessibilidade e oportunidade.

Trabalho colaborativo: a atuação do intérprete de Libras no Estado do Mato Grosso do Sul

Na capital do Estado do Mato Grosso do Sul temos o Centro de Apoio ao Surdo e aos Profissionais da Educação de Surdos (CAS), que oferece capacitação aos profissionais tradutores/intérpretes e oferta a avaliação de proficiência em Libras que certifica tais profissionais para atuar no âmbito educacional desde a Educação Infantil até o Ensino Superior. Além disso, no estado há instituições de Ensino Superior que estão em concordância com o Decreto nº 5.626/05, no que diz respeito a formação desse profissional.

Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa deve efetivar-se por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras - Língua Portuguesa.

Essas instituições ofertam o curso superior para tradutores/intérpretes, o bacharelado em Letras - Libras. Para atuar nas escolas sul-mato-grossenses, o tradutor intérprete precisa ser aprovado por concurso público ou ser aceito através de processo seletivo simplificado (PSS) no qual a critério de classificação fica elencado nos títulos, prova teórica e proficiência.

Após contratado, o professor tradutor intérprete atua em sala de aula juntamente com o professor regente e desempenha a função de interpretar toda a mediação do processo de ensino-aprendizagem e a socialização entre professores e estudantes surdos e ouvintes, transitando entre a língua portuguesa e língua de sinais.

A Educação de Surdos dentro da escola comum ainda é uma incógnita, e por isso é relevante compartilhar experiências exitosas.

O ano era 2018, na cidade de Maracaju, no Mato Grosso do Sul, na Escola Estadual Manoel Ferreira de Lima, onde atuei como instrutora mediadora modalidade sinalizada; de natureza semelhante às responsabilidades do professor tradutor intérprete, o instrutor atua no Ensino Fundamental e por isso atua lado a lado em trabalho colaborativo com o professor regente. Para agregar possibilidades, no contraturno eu atendia alunos com surdez na sala de recursos multifuncionais – SRM.

Desde que iniciamos o ano letivo, a professora regente, uma profissional de excelência, me procurou para que pensássemos como juntar práticas que permitissem acolher o estudante com surdez nas aulas de Literatura; realizamos um planejamento colaborativo em que foi possível adequar as estratégias de ensino para todos os estudantes contemplando o estudante com surdez e os estudantes ouvintes. Nas aulas de Literatura, era proposto que os estudantes fizessem leitura audível na sala de aula, às vezes com o uso do microfone e caixa de som; aliás, as crianças ouvintes se divertiam. As provocações da professora regente iam além, pois ela sempre trazia os personagens em pelúcia para que os “aluninhos” pudessem apreciar, tatear e materializar a literatura lida. Diante desse cenário, enquanto os estudantes ouvintes levavam seus livros para ler em casa junto com a família, as leituras com o estudante com surdez aconteciam na SEM no contraturno, a fim de construir junto com o estudante os novos conceitos, fazer a pesquisa dos sinais em Libras, explorar a sequência de fatos da literatura e a escrita da língua portuguesa. Após o tempo para a leitura, todos os estudantes preparavam-se para fazer a explanação de sua leitura e compreensão da literatura na sala de aula.

Enquanto os alunos ouvintes faziam suas colocações em voz, a interpretação em língua de sinais era simultânea, realizada por mim para atender às peculiaridades do estudante surdo; posteriormente quando era a vez do estudante surdo, ele sinalizava sua leitura e compreensão da história; nesse momento eu realizava o trabalho inverso, de tradução oral em Língua Portuguesa do que estava sendo sinalizado para os estudantes ouvintes. Seguidamente, o próprio estudante surdo ensinava aos colegas os sinais dos personagens principais em Libras, utilizava as próprias pelúcias da professora regente para explicar a sinalização e, junto com os ouvintes, refletir sobre os classificadores (um recurso próprio da língua de sinais), como os voos dos pássaros, os galopes de cavalos e até os ataques de felinos.

Esse trabalho colaborativo com a professora proporcionou protagonismo ao estudante surdo, aprendizado da língua portuguesa e da língua de sinais para todos, interação entre os estudantes, responsabilidades e satisfação à professora regente e a mim, pois presenciamos a efetivação da proposta de Salamanca (1994) quanto à oportunização de o estudante “atingir e manter o nível adequado de aprendizagem”, inclusive favorecendo o combate à discriminação e à segregação.

Considerações finais

É incontestável que um trabalho realizado de forma colaborativa e acessível traz aprendizado para todos, independentemente do público-alvo, mas infelizmente ainda encontramos barreiras de diversas instâncias, sejam elas legislacionais, burocráticas ou atitudinais.

O trabalho colaborativo, embora não seja novo, ainda é pouco utilizado nas unidades escolares; falta orientação e formação dos profissionais, é percebido que muitos não entendem qual é o papel do profissional tradutor intérprete de Libras, do profissional do atendimento educacional especializado (AEE) e qual é a sua própria atribuição como regente de sala com o estudante surdo; evidenciamos com esta pesquisa que falta orientação e formação continuada desses profissionais para que o trabalho colaborativo ocorra efetivamente e com qualidade.

A acessibilidade, embora seja um direito garantido por lei aos estudantes surdos, não é uma realidade vivenciada por eles; ainda há a necessidade de muita luta para que se faça valer seus direitos de participação e igualdade, como explanado no relato dos estudantes de escolas bilíngues da cidade de São Paulo, que, mesmo tendo seus direitos “garantidos por lei”, encontraram barreiras para realizar a inscrição no concurso e não tiveram nenhum material disponibilizado em Libras, sendo necessária a adequação desses materiais pelos educadores.

O relato da profissional sul-mato-grossense vem evidenciar que é possível realizar um trabalho colaborativo qualitativo, mas ele precisa ter planejamento e engajamento de todos os atores. A experiência evidenciou também o quão rica foi a troca de saberes das duas culturas, trazendo protagonismo a todos os estudantes.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Brasília, 2002.

______. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o Art.18 da Lei nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000. Brasília, 2005.

CAPELLINI, V. L. M. F.; MENDES, E. G. Avaliação das possibilidades do ensino colaborativo no processo de inclusão escolar do aluno com deficiência mental. In: ALMEIDA, M. A.; HAYASHI, M. C. P. I.; MENDES, E. G. Temas em Educação Especial: múltiplos olhares. Araraquara: Junqueira & Martins, 2008.

______; ZERBATO, Ana Paula. O que é o ensino colaborativo? São Paulo: Edicon, 2019.

COSTA, Vanderlei Balbino. Reflexão docente sobre avaliação dos estudantes com deficiência no Ensino Superior. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, 7., ENCONTRO NACIONAL DOS PESQUISADORES DA EDUCAÇÃO ESPECIAL, 10., 2016, São Carlos. Anais... São Carlos: UFSCar, 2016.

CRESWELL, J. W. Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: escolhendo entre cinco abordagens. 3ª ed. Porto Alegre: Penso, 2014.

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA sobre Princípios, políticas e prática em educação especial. 1994. Disponível em: http://uniapae.apaebrasil.org.br/wpcontent/uploads/2019/10/DECLARA%C3%87%C3%83O-DE-SALAMANCA-E-LINHA-DAA%C3%87%C3%83O-SOBRE-NECESSIDADES-EDUCATIVAS-ESPECIAIS.pdf. Acesso em: 2 out. 2021.

LACERDA, Cristina Broglia Feitosa. Intérprete de Libras: em atuação na Educação Infantil e Ensino Fundamental. Porto Alegre: Mediação, 2009.

MENDES, E. G.; VILARONGA, C. A. R.; ZERBATO, A. P. Ensino colaborativo como apoio à inclusão escolar – unindo esforços entre educação comum e especial. São Carlos: Edufscar, 2014.

QUADROS, Ronice Muller de. Educação de Surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.

______. O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e língua portuguesa: Programa de Apoio à Educação de Surdos. Brasília: MEC, 2004.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (UFJF). Instrutivo para elaboração de relato de experiência. Governador Valadares: UFJF, 2017. Disponível em: https://www.ufjf.br/nutricaogv/files/2016/03/Orienta%C3%A7%C3%B5es-Elabora%C3%A7%C3%A3o-de-Relato-de-Experi%C3%AAncia.pdf. Acesso em: 26 nov. 2021.

Publicado em 04 de abril de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA NETO, Artur Maciel de; GONZALES, Daniela de Fátima Barbosa; SIMONE, Michelle de Souza; HARADA, Rosecleide Orozimbo. Trabalho colaborativo e acessibilidade: a labuta dos profissionais da educação de surdos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 12, 4 de abril de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/12/trabalho-colaborativo-e-acessibilidade-a-labuta-dos-profissionais-da-educacao-de-surdos

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