A arte como combate à crise de audiência e ao adoecimento mental na escola

Mauro Simões de Sant'Ana

Doutor em Linguística (UFRJ), professor do IFF – Câmpus Cabo Frio

Pela Lei nº 11.892/08 (Brasil, 2008), os institutos federais (IF) foram criados e incorporados à rede federal de educação, constituídos como instituições de Educação Superior, Básica e Profissional, especializadas na oferta de Educação Profissional e Tecnológica nas diferentes modalidades de ensino. Os IF, atualmente, oferecem cursos técnicos integrados ao Ensino Médio, além de diversos cursos técnicos subsequentes e concomitantes ao Ensino Médio, cursos tecnológicos, cursos de graduação e pós-graduação. Nesse contexto pluricurricular, o Ensino Médio, que em qualquer instituição de ensino já está situado em um território de transição entre a Educação Básica e o mundo do trabalho, nas realidades dos IF é concebido de forma que essa característica se intensifica devido à presença de componentes curriculares que compõem o eixo técnico e tecnológico dos cursos e que mobilizam o processo acadêmico para a formação e atuação profissional dos estudantes.

O Plano de Desenvolvimento Institucional do IFFluminense (PDI) para o quadriênio 2018-2022 (Brasil, 2018) contém uma seção intitulada “Juventudes”, em que apresenta a juventude como uma etapa do ciclo da vida de culminância dos processos de socialização. De acordo com o texto, as possibilidades de exercício da cidadania desafiam a instituição a ouvir os jovens, reconhecer suas práticas culturais e aproximá-las da cultura escolar, “a fim de promover o sentimento de pertencimento” (Brasil, 2018, p. 60). Os projetos pedagógicos dos cursos técnicos (PPC) acrescentam ainda a necessidade de promover metodologias problematizadoras e interdisciplinares como forma de romper a fragmentação do conhecimento e a segmentação entre disciplinas e, dessa forma, servir de “instrumento de incentivo à pesquisa, à curiosidade do inusitado e ao desenvolvimento do espírito inventivo, nas práticas diárias” (Brasil, 2013, p. 15).

No Instituto Federal Fluminense (IFF) – câmpus Cabo Frio, uma série de atividades curriculares e extracurriculares são planejadas para conciliar o Ensino Profissional e a formação humana e cidadã. Projetos pedagógicos oferecem liberdade para os docentes construírem planos de ensino com metodologias inovadoras, ativas, que garantam ações interdisciplinares e que prevejam a participação dos alunos no processo de construção de suas subjetividades e do conhecimento. Além disso, projetos de ensino, de extensão e pesquisa estimulam a discussão de temas relevantes, a argumentação em ambiente democrático, a iniciação científica e o intercâmbio com a comunidade externa. Esses projetos contribuem sobremaneira para o círculo virtuoso onde coexistem ensino técnico, propedêutico e formação humanista. É preciso ainda ressaltar a importância do grêmio estudantil como instrumento institucionalizado de participação dos estudantes nas decisões que envolvem a vida acadêmica e na promoção de atividades culturais e recreativas.

Entretanto, mesmo sendo uma instituição bem avaliada por toda a comunidade escolar, percebe-se, nos últimos anos, o aumento de relatos de estudantes que se mostram alheios à rotina escolar; associado ao desinteresse, em muitos casos percebe-se o adoecimento mental (no momento ainda não há estudos com dados estatísticos que consolidem a tendência ao desinteresse dos alunos da rotina escolar). Porém o fenômeno é facilmente percebido empiricamente pelos profissionais da Educação. No dia a dia de sala de aula, professores se deparam com o desafio de lidar com estudantes que apresentam, de um lado, sinais de falta de concentração, não adesão às propostas de atividades em sala de aula, entristecimento, comportamento com tendência ao isolamento ou alheamento; por outro lado, sinais de comportamento hiperativo ou de irritabilidade. Nas reuniões de colegiado de curso, cada vez mais a crise de audiência e o adoecimento mental tomam conta das pautas. O corpo docente se mostra preocupado, tocado, porém inseguro e despreparado diante de uma variedade cada vez maior de alunos que demandam cuidados que ultrapassam os limites da formação acadêmica dos educadores.

Principalmente nas turmas de 1º ano do Ensino Médio, após o clima geral de entusiasmo no primeiro bimestre, geralmente surge uma série de dificuldades dos estudantes em relação à quantidade de disciplinas e à novidade das disciplinas técnicas. A essas dificuldades se somam inseguranças dos alunos quanto ao desempenho, quanto ao convívio com novos círculos de amizades e até quanto à vocação para prosseguir em um curso técnico. Nem sempre a rede de profissionais da Educação que atende aos alunos consegue perceber, desde o início, a transformação dessas dificuldades e inseguranças em um processo de distanciamento da rotina escolar e de adoecimento.

Mesmo reconhecendo que a abordagem do adoecimento mental deve ser realizada por profissionais especializados na área (alguns campi do Instituto Federal Fluminense contam com psicólogos, assistentes sociais e pedagogos), os educadores que convivem diariamente com as diversas demandas dos estudantes relativas ao processo ensino-aprendizagem, à afetividade, à sexualidade, ao convívio social e a questões de cunho familiar são interpelados a agir. Muitas vezes a ação de resgate do interesse do estudante consiste em procedimentos simples, como olhar para ele não como mais um dentro de um grupo, escutá-lo e procurar direcionar minimamente as ações coletivas para demandas específicas e individuais. Outras vezes, a ação exige do educador maior reflexão sobre sua prática, a fim de procurar identificar se há alguma etapa do seu plano de ensino que esteja inibindo o bom convívio dos alunos em sala de aula, a efetiva participação deles no processo de produção do conhecimento ou promovendo o apagamento das particularidades e contradições comuns em coletivos.

Avaliar as diversas etapas de um processo deve constar em todo planejamento, porém nem sempre essa prática é efetivada. A rotina do calendário escolar, os conteúdos previstos, as bibliografias obrigatórias, o regime de avaliações e etapas burocráticas a cumprir afastam o professor da prática saudável de atuar profissionalmente com atenção plena no presente do cotidiano escolar. No entanto, as condições práticas e reais do processo de aprendizagem requisitam um educador atento para produzir discursos e ações que construam pontes com os discursos e as ações produzidas pelos estudantes.

Neste artigo, consideramos importante seguir um pouco mais adiante nessas reflexões sobre como, muitas vezes, mesmo regida por princípios que pregam uma educação democrática e humanizada, a escola não consegue efetivamente se tornar mediadora de uma práxis em que o conhecimento e o bem-estar não sejam perseguidos apenas como ideais, mas que sejam resultados das formações intersubjetivas nos contextos históricos e sociais da comunidade escolar.

Sem desconsiderar o debate que deve ser travado sobre projeto pedagógico, estrutura curricular e formação de professores, nós nos concentraremos um pouco mais em aspectos psicológicos e sociais que podem envolver o que estamos chamando de crise de audiência. Faremos referências a alguns conceitos da teoria psicanalítica freudiana, mais especificamente aos que se referem ao aparelho psíquico delineado na segunda tópica da obra de Freud, para nos ajudar a refletir sobre a opressão do princípio do prazer na tensão entre o regime pulsional humano e a imposição do princípio da realidade. Faremos referência também à interpretação que Marcuse (1956) apresenta a esse aspecto da teoria freudiana, já que esse autor estende ao tecido social as consequências do processo psíquico de opressão do princípio do prazer e vislumbra uma alternativa para vencer a opressão a partir da ação no espaço público. Além disso, faremos referência ao papel atribuído por Marcuse à fantasia no processo de conscientização para fundamentar a proposição de que a arte, potencialmente, pode assumir no processo educativo o papel de firmar em novos termos as contradições entre os princípios de prazer e da realidade.

Com os referenciais apontados antes e com algumas considerações de ordem filosófica sobre o estatuto da razão e da verdade na sociedade contemporânea baseadas na tese da razão cativa de Rouanet (1985) e no estudo sobre a palavra de Garcia-Roza (2001), tentaremos investigar alguns aspectos que podem ser úteis para entender a crise de audiência no Ensino Médio. Sugerimos que a racionalização, a desvalorização dos afetos, a repressão da imaginação e a interpelação dos indivíduos pela sociedade industrial moderna para adequação a uma realidade regida pelo princípio do desempenho permeiam desde cedo o ambiente de uma instituição de ensino profissionalizante.

Tais reflexões tornam-se importantes para nortear debates e ações que procuram enfrentar adequadamente o problema e atendam às diretrizes do PDI e dos PPC referidos. Ficaremos assim: na primeira seção, descreveremos em linhas gerais a concepção e a organização do Ensino Médio integrado ao Técnico no âmbito dos IF, especificamente no âmbito do IFF – câmpus Cabo Frio. Em seguida, faremos um esforço para compreender por que uma instituição de ensino com uma proposta pedagógica moderna, democrática e crítica, com uma equipe de profissionais preparada, competente e disposta a efetivar a proposta pedagógica, muitas vezes, não consegue evitar a crise de audiência. Na terceira seção, teceremos algumas considerações que nos fazem identificar a arte, quando integrada aos componentes curriculares e ao fortalecimento de ações coletivas, como possível resposta ativa para construir novos sentidos e atrativos para o campo do processo de ensino-aprendizagem.

O Ensino Médio nos IF

Nesta seção, examinaremos alguns aspectos de leis, diretrizes, regulamentações e projetos de desenvolvimento e pedagógicos que fundamentam a implantação dos cursos de Ensino Técnico Integrado ao Ensino Médio. O objetivo é encontrar, na concepção, nos princípios, nas finalidades e objetivos dos cursos, o diálogo proposto e possível entre formação humanística, inserção no mundo do trabalho, exercício da cidadania e formação de capacidade crítica sobre as relações trabalhistas travadas na sociedade. Identificar e compreender possíveis limites desse diálogo podem oferecer importantes pistas para avançarmos na reflexão sobre uma possível subordinação do incentivo ao espírito crítico e criativo do aluno a um projeto maior de formação para atender às demandas do mercado de trabalho, o que pode contribuir para a crise de audiência no Ensino Médio.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996), inclui o Ensino Médio dentro da formação básica, cuja finalidade é desenvolver o educando, assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Na seção da lei específica sobre o Ensino Médio, sobressai a associação entre preparação para o mercado de trabalho e formação humana e cidadã entre as finalidades dessa modalidade de ensino: “preparação básica para o trabalho”; “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (Brasil, 1996, Cap. II, seção IV, Art. 35, alínea III).

A associação entre trabalho, prática social e formação humanística também aparece nos princípios norteadores da Educação Profissional Técnica de nível médio, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos técnicos: “Respeito aos valores estéticos, políticos e éticos da educação nacional, na perspectiva do desenvolvimento para a vida social e profissional” (Brasil, 2012, Cap. II, Art. 6º, alínea II). As diretrizes explicitam ser indissociáveis a educação e a prática social, uma vez que o conhecimento é construído por meio da história e da atuação das subjetividades. E vão além, no sentido de que a organização curricular deve proporcionar aos estudantes “elementos para compreender e discutir as relações sociais de produção e de trabalho, bem como as especificidades históricas nas sociedades contemporâneas” (Brasil, 2012, Cap. II, Art. 14, alínea II).

As leis e regulamentações que regem a vida acadêmica e administrativa dos IF também dedicam importância à formação profissional constituída a partir da relação com a formação humana e com atuação coletiva dos estudantes. O PPC do curso técnico em Hospedagem integrado ao Ensino Médio do IFF câmpus Cabo Frio parte do princípio de que o objetivo do câmpus é a formação de indivíduos críticos, capazes de produzir conhecimento e preparados para o mercado de trabalho. Entre as finalidades do curso consta a colaboração para a transformação e crescimento da localidade onde ele está inserido (Brasil, 2013, p. 13).

No dia a dia do ano letivo, no “chão da sala de aula”, observam-se duas perspectivas simbólicas que se manifestam nos discursos dos alunos e dos servidores. De um lado, há uma avaliação positiva sobre a educação oferecida pelos IF. Ingressar nos cursos dos IF representa para a comunidade uma conquista e uma perspectiva de desenvolvimento acadêmico e profissional. É visível para os servidores o entusiasmo dos alunos que entram no 1º ano do Ensino Médio e as boas perspectivas de frequentarem a rotina de uma instituição que conta com ações que envolvem uma dinâmica de ensino, pesquisa e extensão. Por outro lado, porém, quase paralelamente, consolida-se o discurso de que é difícil estudar nos IF, de que a sobrecarga de disciplinas, conteúdos, atividades, trabalhos e avaliações se configura como obstáculo à formação humana.

A matriz curricular do PCC do curso técnico em Hospedagem integrado ao Ensino Médio do IFF câmpus Cabo Frio (Brasil, 2013) prevê para o 1º ano quinze disciplinas; para o 2º ano, catorze disciplinas, e, para o 3º, quinze disciplinas. Já a matriz curricular do PPC do curso técnico em Petróleo e Gás integrado ao Ensino Médio do mesmo câmpus (Brasil, 2010) prevê, para o 1º ano, catorze disciplinas; para o 2º ano, quinze disciplinas; e, para o 3º ano, dezesseis disciplinas.  Não é incomum que muitos alunos se queixem de não ter mais tempo livre para recreação, para atividades artísticas e esportivas, para inserção em projetos de pesquisa, de extensão etc. Casos de adoecimento mental são cada vez mais comuns. Nas reuniões de colegiado ou de núcleo docente estruturante, são constantes pautas que envolvem a dificuldade do professor em lidar com sintomas, entre os alunos, de depressão, ansiedade, medo e alheamento. Tais dificuldades também afetam a saúde mental dos professores.

Além de criar estratégias de acolhimento para abordar, ainda no âmbito escolar, a questão da saúde mental – o que é muito importante de ser feito –, cabe problematizar até que ponto as ações de ensino-aprendizagem estão se distanciando do que é preconizado nos projetos pedagógicos. Seguindo além, cabe investigar possíveis limites para a associação, prevista nas leis e projetos mencionados, entre formação profissional e formação humana no contexto social e econômico engendrado pelo modo de produção capitalista.

Crise de audiência: entre práticas e concepções

A educação brasileira enfrenta há muitos anos o problema do abandono escolar. Indicadores do Censo Escolar de 2018 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP (Brasil, 2018) já apontavam que o número de desistência nas séries finais do Ensino Fundamental (4,3%) mais que dobra no Ensino Médio (9,1%). Porém, além do abandono escolar, há formas alternativas de não participação. Alguns alunos continuam matriculados no curso, mas com pouca frequência, com pouca participação, com pouco empenho e baixo rendimento. Nos IF, o abandono escolar não é tão significativo. O Censo Escolar referente a 2021 (Brasil, 2021) aponta que, mesmo no período da pandemia da covid-19, a evasão escolar na rede federal subiu de 1,8 em 2020 para apenas 1,9% em 2021. Porém, o mesmo não pode ser afirmado em relação às formas alternativas de não participação facilmente percebidas na rotina escolar.

A despeito da histórica precarização da escola pública e do trabalho do professor, a rede federal de ensino consegue manter em quase todas as regiões do país estruturas razoáveis de sala de aula, laboratórios, biblioteca, refeitório, além de professores com tempo e recursos para a formação continuada e com planos de carreira. Os gestores, eleitos pela comunidade escolar, com a participação de colegiados formados por professores, alunos e outros profissionais da Educação, se articulam para a construção de projetos pedagógicos alinhados com os anseios de uma educação democrática.

Diante desse quadro, surgem as perguntas:

  • Por que, mesmo assim, os IF precisam lidar com quantidades preocupantes de estudantes que até se dirigem à escola, mas não assistem às aulas?
  • Por que alguns estudantes só vão à escola para assistir a determinadas disciplinas?
  • Por que alguns estudantes frequentam irregularmente as aulas?
  • Por que, muitas vezes, os estudantes entram em sala, mas não participam ativamente das atividades?

Podemos escolher múltiplas opções para responder a essas questões, mas nenhuma opção opera desarticulada das outras. O combo de fatores que afasta o estudante da escola é a soma da degradação das condições materiais de existência das famílias, que se expressa na violência doméstica e urbana, no alcoolismo, no adoecimento mental, no assedio moral e sexual, com a consagração de uma lógica assentada nas relações de produção capitalista, que atribui ao indivíduo responsabilidades de sucesso e fracasso.

Catini (2019, p. 56) alerta que, pela “mimese da produtividade empresarial”, a gestão educacional “ampliou o domínio dos resultados sobre o processo, reduzindo o trabalho educativo ao produto”.

Para aprofundar um pouco mais essa questão, é conveniente remeter à crítica filosófica e sociológica realizada por Marcuse na época em que viveu nos Estados Unidos. Para ele, a sociedade industrial contemporânea, que ele denomina “sociedade unidimensional”, mesmo reduzindo ou apagando os conflitos de interesses entre as classes por causa de uma distribuição de renda que minimamente atende às necessidades básicas da classe trabalhadora, continua exibindo suas contradições. Valores como democracia, felicidade e prosperidade são alcançados, de acordo com Marcuse (1973), mediante a homogeneização ideológica das subjetividades e da introjeção, pelos sujeitos, de uma repressão de desejos em nome da possibilidade de viver dentro das regras da sociedade.

Fazendo uso dessas considerações, parece-nos legítimo supor que mesmo uma instituição de ensino reconhecida e valorizada socialmente, capaz de oferecer educação de qualidade e formar mão de obra qualificada para pronta inserção no mercado de trabalho, não está imune às contradições que se estabelecem por imposições inevitáveis de uma sociedade que precisa formar trabalhadores que ocupem lugares na linha de produção e atendam expectativas preestabelecidas. As imposições introjetadas muitas vezes passam despercebidas e, pior, não são associadas a um crescente sentimento de irrealização ou incompletude do sujeito, o que favorece o desinteresse do estudante, que não encontra sentido entre os símbolos que lhe são disponibilizados e oferecidos.

Marcuse (1973) considera que a sociedade industrial desenvolvida tende a apagar ou minimizar as contradições entre as classes sociais. As aspirações coletivas por transformação social ou por novas alternativas que não podem ser alcançadas dentro do modo de produção capitalista cedem espaço para as aspirações individuais por segurança, por acesso à propriedade, por ascensão social e por aumento do poder de consumo. Marcuse (1973, p. 23) afirma que “independência de pensamento, autonomia e direito à oposição política estão perdendo sua função crítica básica numa sociedade que parece cada vez mais capaz de atender às necessidades individuais”.

Em uma sociedade cujos princípios prezam pouco o compartilhamento, a solidariedade e a colaboração, não pode ser considerada neutra, por exemplo, a escolha por prédios escolares retangulares, com longos corredores, sem espaços circulares. A sala de aula se torna o espaço coletivo por excelência, valorizado como o lugar da produção do conhecimento. Os espaços externos afunilados e pouco atrativos desmobilizam o interesse pelo ócio, pela brincadeira, pela conversa. O espaço do intervalo perde sentido: torna-se um espaço que enfraquece a participação em coletivos, em redes de acolhimento e até mesmo em rodas de conversa. Porém, mesmo assim, serve como refúgio para a audiência em crise que, dominada pela incompletude, tenta enfrentar algo a que não se ajusta ao matar uma aula.

Junto e na mesma direção, outra peça importante desse tabuleiro, que se refere mais especificamente ao processo de ensino-aprendizagem, é a dificuldade de construir efetivamente, seguindo as propostas pedagógicas dos cursos, projetos com sequências de atividades interdisciplinares que articulem os componentes curriculares. Com exceção de algumas iniciativas importantes e bem-sucedidas, porém isoladas, a regra ainda é: estudantes separados por séries, em uma sala durante cinco ou seis horas por dia, com professores saindo e entrando da sala, cada qual circunscrevendo conteúdos a suas respectivas disciplinas. Uma estrutura de poder que pode ainda ser associada à que Foucault (2009) apresenta como disciplinadora dos corpos para torná-los “dóceis”. Para esse autor, as referências fundamentais de um sonho militar de sociedade são as engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina; as coerções permanentes; os treinamentos indefinidamente progressivos e a docilidade automática (Foucault, 2009, p. 162).

Como ponto de inflexão para uma postura crítica sobre o processo educativo, acreditamos que é primordial um debate mais qualificado sobre que tipo de conhecimento a escola defende e persegue. Quando, em uma semana de provas, um aluno sai de sala tremendo e chorando e outros ficam ansiosos e depressivos, provavelmente esse conhecimento não está dialogando com as condições de existência materiais e psíquicas dos alunos, com seus afetos e sentimentos.

A ideia defendida por filósofos empiristas e racionalistas desde o século XVII, de que desejos e paixões atuam na consciência no sentido de limitá-la, perdura nas sociedades orientadas pelo modo de produção capitalista e orienta até hoje o discurso que associa conhecimento à intelecção e à objetividade para a produção de mercadorias com cada vez mais valor de troca. Mas nem sempre esse foi o discurso predominante. É o que mostra Garcia-Roza (2001) em seu estudo sobre a relação entre palavra e a verdade na Filosofia arcaica e na Psicanálise, ao criar contrapontos com a Filosofia platônica e com a iluminista. Segundo o autor, uma característica que aproxima a palavra arcaica da palavra psicanalítica é o seu caráter simbólico. É uma palavra que não se esgota no que se explicita, uma palavra cujos sentidos são encontrados no que se revela, mas também no que se oculta e no que se cala. É a palavra do oráculo e dos profetas e a palavra da Psicanálise, uma vez que, de acordo com Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

No entanto, a palavra da sociedade industrial moderna enraizada na Filosofia clássica parte de um sujeito considerado centrado em sua consciência, capaz de produzir discursos que pretendem atingir uma suposta essência referencial, um discurso que se qualifica à medida que esclarece e não oculta: “a adequação entre o discurso e as coisas se dá não pelo fato de ele ser significativo, mas pelo fato de ele ser verdadeiro. Decorre do fato de ele expressar vinculações entre as coisas enquanto existentes” (Garcia-Roza, 2001, p. 75), um conhecimento pautado nas categorias de sujeito e objeto como instâncias preestabelecidas que, ao se relacionarem, fundam a submissão do objeto ao sujeito em sua dimensão racional: esse seria o conhecimento valorizado como científico.

Palmer (1977, p. 102), ao relacionar a concepção lacaniana do desejo à dialética do senhor e do escravo de Hegel, diz: “É no puro gozo dos objetos sensíveis, na sua destruição, que essa consciência procura primeiramente sua verdade”. Mas esse empreendimento está fadado ao fracasso. Segundo Palmer, somente o surgimento de uma nova consciência pode inserir a consciência na verdadeira dialética sujeito-objeto. A senhora consciência que pretende se apropriar do objeto torna-se prisioneira de um falso reconhecimento. Palmer (1977), tendo como apoio a análise do desejo proposta por Lacan (2003a), afirma que não há objeto que se constitua para o sujeito sem a mediação do desejo: “O desejo do homem é o desejo de um outro desejo, o desejo de fazer com que seu desejo seja reconhecido pelo outro” (Palmer, 1977, p. 103).

Associar o conhecimento a um discurso do desejo e orientado para uma prática política e ideológica em um contexto histórico e social contribui com novas dimensões para um debate que costuma ser enfrentado dentro de certos limites que estabelecem “cativeiros para a razão”, para usar o termo proposto por Rouanet (1985). Para o autor, esses cativeiros se constituem a partir de categorias cognitivas e perceptivas que são estabelecidas como inerentes à razão e que servem como régua para estabelecer e afastar o que seria a falsa consciência. Em uma sociedade em que princípios como desempenho, produção e lucro organizam o mundo do trabalho e as relações sociais, parece mais conveniente manter a razão cativa de categorias lógicas e tratar afetos e paixões como contingentes, restritos a um campo domado onde elas podem ser apreciadas como peças figurativas, ficcionais e recreativas. Mais ainda: é conveniente tratar a subjetividade como uma instância centrada na consciência (o ideal para a conformação a uma linha de produção), apesar de construtos teóricos da Filosofia contemporânea e da Psicanálise apontarem na direção da hipótese de um sujeito cindido e interpelado por conteúdos do inconsciente.

Freud (1974) considera, com base em suas experiências clínicas com pacientes, que o ego não é totalmente consciente. Recalque de conteúdos seria uma função do ego, porém performada de forma inconsciente. Tal conjectura enfraquece a oposição consciente e inconsciente presente em seus primeiros escritos. Freud propõe uma configuração de aparelho psíquico em que o ego é “disputado”, grosso modo, pela lei e pelo desejo (id e superego). Lacan (2003b), por sua vez, aponta que a representação do olhar do outro tem função simbólica na fundação da subjetividade.

É sabido que muitas escolas públicas brasileiras enfrentam ainda hoje dificuldades primárias que vão desde salas de aulas precárias, falta de equipamentos e materiais à falta de luz e água. Atacar a precarização do espaço escolar é urgente, como também é urgente debater as possibilidades de a escola se constituir concretamente como espaço de resistência às opressões inerentes à sociedade contemporânea. Como vimos antes, os projetos pedagógicos dos cursos dos IF preveem a formação de alunos críticos e preparados para o mercado de trabalho. É preciso considerar até que ponto essa formação crítica considera os afetos e a fantasia como partes do processo cognitivo ou, ao contrário, até que ponto está se estabelecendo por meio da mera condenação da razão (sem distinguir entre razão científica e razão dialética, deixando intacta a polarização com o reino da sensibilidade).  É preciso considerar também que mercado de trabalho é esse para o qual o aluno está se formando, de modo a verificar se é compatível ou não com a construção de um espírito crítico e, mais ainda, com uma mente saudável. É possível o aluno se constituir subjetiva e socialmente em um processo de formação e treinamento para um trabalho em que ele não reconheça a sua humanidade, embora seja, nos termos de Marx (1983), supostamente livre para vender sua mão de obra em condições um pouco mais vantajosas, posto que com formação técnica? Parece-nos que, no debate dessas questões, encontraremos caminhos para enfrentar a crise de audiência.

Arte como resistência

Em O mal-estar da civilização, Freud atribui a uma característica fundamental do aparelho psíquico humano a possibilidade da existência da civilização. O regime instintivo que combina busca pelo prazer e agressividade como reação ao que impede a gratificação e o gozo deve ser inibido pelo princípio da realidade. A civilização que nasce dessa renúncia instintiva, segundo Freud, serve a dois princípios: “o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos” (Freud, 1974, p. 109).

Dessa forma, a civilização exige sacrifícios psíquicos ao indivíduo. A vida social surge estabelecendo um conjunto de leis que, de acordo com a configuração do aparelho psíquico da segunda tópica de Freud, são introjetadas no ego pelo superego. O indivíduo não pode dar vazão a seus impulsos de prazer o tempo todo em nome da civilização, assim como não pode dar vazão à agressividade proveniente da repressão dos instintos. Prazer e agressividade são canalizados para o trabalho, que se torna, para Freud, uma prática alienante em sua origem.

Não é difícil concordar com essa posição se imaginarmos o trabalho de um operário em uma linha de produção de fábrica, de um profissional liberal em um escritório ou de um atendente em uma loja de roupas. A personagem Macabéa, da obra de Clarice Lispector, é um bom exemplo de mulher operária que é objetivada pelo trabalho. Até o seu tempo subjetivo se sujeita ao tempo cronológico e se torna fragmentado como os segundos soltos em intervalos que compõem cada minuto do tempo da produção: “[Macabéa] ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava a ‘hora certa e cultura’, e nenhuma música, só pingava em som as gotas que caem – cada gota de minuto que passava” (Lispector, 1988, p. 45).

Quanto mais desenvolvida for a sociedade centrada na troca de mercadorias, torna-se também mais difícil evitar o trabalho aborrecedor e opressor, assim como o consequente empobrecimento das relações intersubjetivas, principalmente nas dimensões do sensível e da criatividade. O princípio do prazer é canalizado para o princípio da produtividade não sem efeitos que favorecem a reprodução do sistema opressor, como a fetichização da mercadoria  que, através do consumismo, reproduz o trabalho sob o capital. Marx (1983)nota que, em um modo de produção centrado na troca de mercadorias, o valor de troca delas encobre o trabalho socialmente necessário para produzi-las e o tempo a mais que a força de trabalho fica à disposição do capitalista sem remuneração. O mundo, portanto, aparece como um grande mercado autônomo das relações sociais subjacentes.

Marcuse (1956), seguindo a orientação da escola de Frankfurt, cujos cientistas sociais e filósofos criticavam a cultura ocidental e o modo de produção capitalista, possui uma visão mais positiva que a de Freud. Ele acredita que, em uma sociedade socialista, o trabalho possa proporcionar realização subjetiva e prazer. Para Marcuse, o trabalho é uma categoria histórica e determinada pelas formações sociais. Pode gerar sofrimento caso o homem não se reconheça nele, caso seja uma ação que contribua para a alienação do indivíduo.

Em Eros e civilização, Marcuse (1956)  divide a categoria “repressão” de Freud em dois tipos: a mais-repressão e a repressão. O primeiro tipo é de natureza histórica e social, gerada pela exploração do modo de produção capitalista, que produz, pela exploração do trabalho assalariado, um princípio de realidade caracterizada pelo desempenho e pelo individualismo. A mais-repressão pode ser combatida com a busca consciente por uma sociedade mais justa, possível de ser alcançada por transformações revolucionárias operadas na natureza do modo de produção. “Sendo interrompida a produção de bens supérfluos e destrutivos, as mutilações somáticas e mentais infligidas ao homem por essa produção seriam eliminadas” (Marcuse, 1956, p. 12).

O segundo tipo de repressão listado por Marcuse corresponde ao de Freud. Marcuse defende a tese de que certo grau de repressão e uma renúncia mínima ao princípio do prazer são necessários para provocar a ação do homem no sentido de transformar natureza em cultura. Para Marcuse (1956), essa repressão não impede a realização humana e o prazer, se a sociedade não for opressiva e não inibir a autodeterminação dos povos.

Um debate consequente da possibilidade do convívio em sociedades sem a mais-repressão do princípio do prazer é o do papel da fantasia ou da imaginação. Ao se referir ao modelo “freudo-marxista”, fruto do esforço de alguns autores em integrar Marx e Freud, Rouanet (1985) apresenta como ponto de convergência desse modelo a afirmação de que a repressão sexual acarreta um represamento da libido. Essa libido represada provoca a necessidade de gratificações substitutivas ou “cenários subjetivos que não correspondem à realidade e apresentam os desejos como realizados” (Rouanet, 1985, p. 119).

Dentro desse modelo, a fantasia é considerada fruto da repressão. Ela enfraquece o ego porque, à medida que lhe confere sensação de satisfação, constitui uma estrutura psíquica propensa a aceitar a dominação ideológica. Rouanet, entretanto, considera esse ponto de convergência no modelo freudo-marxista um falseamento da teoria psicanalítica freudiana, já que desconsidera que a libido, ligada ao princípio do prazer, se infiltra na percepção e no pensamento, sabotando a objetividade da consciência, tornando-se um agente subversivo.

Mais uma vez adotando um ponto de vista positivo no debate, Marcuse (1956) recupera o conceito de fantasia presente na teoria freudiana para, a partir dele, argumentar a favor da possibilidade, prevista no próprio aparelho psíquico, de sobreposição do princípio do prazer, mesmo diante das imposições do princípio da realidade. Segundo o autor, a fantasia nasce com o princípio do prazer dentro do id, porém tende a ser eliminada rapidamente com a imposição do princípio da realidade de uma sociedade mais- repressiva. Poucos indivíduos conseguem se conscientizar da repressão do princípio da realidade, geralmente artistas, outsiders, alguns intelectuais. Para eles, a fantasia perdura e pode tornar-se uma arma criativa de luta por transformações. Porém, em alguns casos, a fantasia liberada no universo subjetivo, quando confrontada com a ação repressiva dos aparelhos ideológicos da sociedade da mercadoria e do consumo, pode ser frustrada e também desencadear o adoecimento mental. Em uma sociedade sem a mais-repressão, como visto antes, a fantasia será liberada do princípio da realidade.

Segundo Marcuse (1956), a expressão artística possui papel decisivo como forma de reequilibrar a tensão entre o princípio do prazer e o principio da realidade, resguardando a fantasia para a ação criativa, que é um motor importante de impulsão da subjetividade e de sua ação em uma sociedade em que o trabalho não é emancipador.

Não pretendemos aqui explorar mais esse enorme campo que se constitui com a aproximação entre Psicanálise, Sociologia e Filosofia. As referências aos autores nos servem mais para encontrar caminhos que podem ser trilhados para compreender a crise de audiência no Ensino Médio. Como educadores, somos esperançosos em uma educação efetivamente libertadora e crítica do modo de produção baseado no valor de troca das mercadorias e na exploração da força de trabalho. Por isso, somos levados a aderir à posição de Marcuse (1956). Nela, a fantasia cumpre papel fundamental para o equilíbrio psíquico e social, para a libertação de uma razão que se constitui pelos afetos e pelos territórios traçados pelas intersubjetividades. Como consequência, acreditamos que a arte cumpre papel estruturante em ações educativas que mobilizem os/as estudantes para um horizonte de conhecimento que concilie prazer e perspectiva de luta por emancipação social.

Considerações finais

Neste artigo, procuramos compreender por que cada vez mais se torna comum o desinteresse acadêmico demonstrado pelos estudantes no decorrer dos anos letivos do Ensino Médio, especificamente no âmbito dos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio oferecidos pelos IF. Procuramos tratar a questão relacionando-a ao conflito que se estabelece entre formação integral e formação profissional em uma sociedade dominada pelo princípio do desempenho. Vários fatores podem levar à crise de audiência no Ensino Médio – alguns de ordem didático-pedagógica e outros de organização curricular. Porém parece determinante que o modo de produção que domina a sociedade capitalista engendra um trabalho explorado e alienado que tolda a perspectiva do/a discente sobre seu futuro como profissional. Subjetividades unidimensionais centradas na racionalidade para a reprodução modo de produção se revelam estéreis. O desinteresse dos/as alunos/as pelo cotidiano escolar simboliza, mesmo que de forma pouco consciente, a negação ao enquadramento nessas subjetividades. O enfrentamento da crise de audiência no Ensino Médio deve passar pela arte, pela fantasia, pela imaginação com vistas à possibilidade concreta de uma sociedade mais justa e equânime, em que a teleologia do trabalho reencontre o prazer como objeto.

Referências

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Publicado em 18 de abril de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SANT'ANA, Mauro Simões de. A arte como combate à crise de audiência e ao adoecimento mental na escola. Revista Educação Pública, v. 23, nº 14, 18 de abril de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/14/a-arte-como-combate-a-crise-de-audiencia-e-ao-adoecimento-mental-na-escola

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