Abordagem da variação linguística em livro didático da 6ª série do Ensino Fundamental

Adriano Menino de Macêdo Júnior

Licenciado em Letras - Língua Portuguesa (UERN), cientista e bolsista do Pibic/UERN, pesquisador no Grupo de Pesquisa em Linguística e Literatura (GPELL)

Gostaríamos de iniciar esta seção com uma declaração dos pesquisadores Dourado e Oliveira (2014, p. 38):

No Brasil, sobretudo a partir do impeachment de Dilma Rousseff, aconteceram importantes retrocessos nas políticas sociais e educacionais, mediante adoção de novas práticas, programas e ações do Governo Federal. Além disso, essas medidas passaram a ser tomadas de forma mais centralizada e sem a participação mais ampla da sociedade civil organizada. Além disso, passaram a ser permeadas por concepções privatistas, desconsiderando os acúmulos produzidos pelas entidades e instituições do campo educacional comprometidas com a educação pública de qualidade socialmente referenciada. [...] Nesse contexto, destaca-se também a Reforma do Ensino Médio - Lei nº 13.415, de 2017 [...] – enviada ao Congresso por meio de medida provisória – e o encaminhamento e aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, excluindo, na versão encaminhada e aprovada pelo CNE, o Ensino Médio.

Assim, iniciamos nossas considerações iniciais acerca do livro didático (doravante LD) amparado desde então pela Base Comum Curricular (BNCC). Trata-se de um documento de caráter normativo estruturalista, ou seja, um agrupamento orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais, que todos os estudantes devem desenvolver ao longo dos estágios e modalidades da Educação Básica. A BNCC assegura os direitos de aprendizagem e desenvolvimentos dos alunos. Uma dessas aprendizagens é a variação linguística, obrigatória nas matrizes curriculares escolares, exigida pela BNCC.

Diante do explanado, o LD que selecionamos para a análise crítica que se sucederá aborda a variação linguística já imposta pela BNCC, a qual pode ser encontrada nos seguintes parâmetros:

  • A etapa do Ensino Fundamental;
  • A área de linguagens;
  • Língua Portuguesa;
  • Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – anos iniciais: práticas de linguagem, objetos de conhecimento e habilidades;
  • Oralidade: variação linguística, visando o objetivo de ouvir gravações, canções, textos falados em diferentes variedades linguísticas, identificando características regionais, urbanas e rurais da fala e respeitando as diversas variedades linguísticas como características do uso da língua por diferentes grupos regionais ou diferentes culturas locais, rejeitando preconceitos linguísticos.

Diante disso, o objetivo deste trabalho é fazer uma análise crítica do tratamento dado à temática da variação linguística pelo livro didático, em específico observando a citada questão, tomando como corpus de investigação a obra Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem, organizada pelos professores Wilton Ormundo e Cristiane Siniscalchi.

Metodologia

Para desenvolvermos o objetivo geral deste trabalho, mencionado nas considerações iniciais, embasamo-nos na compreensão metodológica da pesquisa descritiva para a análise dos LD, suscitando o pesquisador Gil (2002, p. 41), que conceitua:

As pesquisas descritivas têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações entre variáveis. São inúmeros os estudos que podem ser classificados sob este título e uma de suas características mais significativas está na utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados, tais como o questionário e a observação sistemática. [...] As pesquisas descritivas são, juntamente com as exploratórias, as que habitualmente realizam os pesquisadores sociais preocupados com a atuação prática. São também as mais solicitadas por organizações como instituições educacionais, empresas comerciais, partidos políticos etc. (Gil, 2002, p. 42).

Consoante supracitado, pretendemos descrever como é abordada a temática da variação linguística no LD selecionado para compor nosso corpus. A presente metodologia também conta em seu arcabouço com abordagens qualitativas, quando iremos elencar referenciais teóricos importantes para corroborar o pensamento proposto nas considerações iniciais. Vale ressaltar que a abordagem qualitativa “não é traduzida em números, na qual pretende verificar a relação da realidade com o objeto de estudo, obtendo várias interpretações de uma análise indutiva por parte do pesquisador” (Dalfovo; Lana; Silveira, 2008, p. 7).

Ademais, o presente trabalho também dialoga com a metodologia bibliográfica, sob a luz de Marconi e Lakatos (2003, p. 183) quando falam que

a pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias, abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico etc., até meios de comunicação orais: rádio, gravações em fita magnética e audiovisuais: filmes e televisão. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto, inclusive conferências seguidas de debates que tenham sido transcritos por alguma forma, quer publicadas, quer gravadas.

Sendo assim, selecionamos o quantitativo de um LD que será analisado, qualitativamente, destacando como é abordado o assunto da variação linguística para alunos da 6ª série do Ensino Fundamental (dados disponíveis no Quadro 1). Depois disso, ainda na pesquisa bibliográfica, discutiremos e corroboraremos os achados com teóricos importantes: Travaglia (2009); Coelho et al. (2012), Labov (2008), Alkmim (2001), Bagno (2007), Macêdo Júnior (2021).

Quadro 1: Livro didático utilizado

Livro analisado

Escritores responsáveis

Editora

Ano

Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem

Wilton Ormundo e Cristiane Siniscalchi

Moderna

2018

O LD que aqui tomaremos como corpus de análise foi utilizado para o ensino dos alunos da Escola Municipal Professor Zuza, localizado na cidade de Natal e no Colégio Marista Natal, instituição privada, também localizado em Natal/RN.

Análise do livro didático sobre a variação linguística

Para iniciarmos a discussão acerca da problemática a ser trabalhada, chamamos a atenção para o titulo da obra: Se liga na língua, uma forma que Ormundo e Siniscalchi (2018), talvez de forma proposital, encontraram de iniciar um tema tão polêmico e que causa estranheza na população até os dias atuais. O LD já tem no título do livro uma frase que contraria a norma padrão do português, pois o emprego pronome “se” pode ser uma forma de chamar a atenção para seus alunos. Essa tática também poderia ser considerada uma mensagem subliminar de que na língua portuguesa, de acordo com a Sociolinguística, é possível haver inúmeras formas fazer de sentenças e mesmo assim manter o canal de comunicação aberto a compreensões.

A variação linguística está inserida no “Capítulo 2 – Verbete: palavra que explica palavra”, nas subseções: “Mais da língua: a língua varia”, localizada na página 63, e “Preconceito linguístico”, na página 65; (Ormundo; Siniscalchi, 2018). Observamos nas figuras, em sua totalidade, a seguir o material recortado a respeito da temática da variação linguística.

Figura 1: Seção sobre variação linguística

Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 63).

Ormundo e Siniscalchi (2018) iniciam a seção discutindo e ensinando para alunos do Ensino Fundamental que a linguagem nos gêneros textuais pode ser formal e coloquial para se adequar a diferentes tipos de públicos, como podemos ver na citação a seguir:

Os verbetes são textos que divulgam conhecimento e quase sempre sua linguagem é formal. Entretanto, podemos encontrar alguns verbetes e outros gêneros com o mesmo objetivo que optam por uma linguagem mais descontraída, como alguns podcasts com conteúdo, por exemplo, que se comunicam com o público mais jovem (Ormundo; Siniscalchi, 2018, p. 63).

Assim, a discussão é iniciada no LD com o conhecimento de que a língua é multifacetada e heterogênea. Os pesquisadores elencam na sua obra que a linguagem varia de acordo com o contexto e com o público que se quer alcançar; essa variação é um dos grandes aspectos da Sociolinguística. Para desenvolver a discussão, os professores trazem uma peça publicitária veiculada em Moçambique, onde também se fala a língua portuguesa, conforme podemos ver na Figura 2.

Figura 2: Publicidade em Moçambique

Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 63).

A peça publicitária é ilustrada no LD de Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 64) com o objetivo de tornar lúcido à comunidade escolar, que faz o uso do LD, que, “apesar de falarmos a mesma língua, percebemos que o português do Brasil e o de Moçambique diferem entre si pelas palavras usadas, pelos sentidos que damos a elas, pela maneira como as pronunciamos (sotaque) e pela própria construção das frases”. O objetivo dos organizadores do LD é chamar a atenção para o uso dos pronomes tu e você. No texto publicitário, lemos “isto e muito mais tu encontras no Verão Amarelo”. Ao contrário do que ocorre no anúncio, os professores destacam que as propagandas dirigidas aos brasileiros costumam usar você, muito mais comum em nosso contexto (Ormundo; Siniscalchi, 2018, p. 64).

Na sequência da subseção, Ormundo e Siniscalchi (2018) deixam claro para os usuários do LD como se dá o processo da variação linguística:

Moçambique é um país da África que, como o Brasil, foi colonizado por Portugal. Todavia, nossos falares se diferenciam porque, quando os portugueses chegaram lá e aqui, já havia outros povos nativos em ambos os territórios, e as línguas faladas por eles interagiram com o português, criando variações dele. Além disso, ao longo dos anos, ocorreram contatos com outras línguas, pela presença de estrangeiros ou pelos meios de comunicação, e elas também influenciaram o português local (Ormundo; Siniscalchi, 2018, p. 64).

Ou seja, o encontro de diferentes línguas, aliado a uma série de outros fatores, acaba dando origem às chamadas variações linguísticas. Esse fenômeno da variação linguística não ocorre somente entre falantes de diferentes países que usam a mesma língua. Esse processo se dá também no contexto interno de um país. Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 64) deixam claro que, num mesmo país – o Brasil, por exemplo –, a variação linguística pode ser motivada por outros fatores: “as várias regiões, áreas urbanas e rurais, idade do falante, escolaridade, situações em que emprega a língua”. 

O exemplo utilizado por Ormundo e Siniscalchi (2018), relacionado ao uso do tu e você, também é citado por Coelho et al. (2012, p. 24) de forma bastante similar, quando dizem: “um fenômeno variável bastante perceptível em nosso dia a dia de falantes do português é o da alternância entre os pronomes pessoais tu e você para a expressão da segunda pessoa do singular”. Só que, para Coelho et al. (2012), essa alternância no uso desses pronomes se dá pela relação de formalidade da comunicação entre os interlocutores bem como pela origem do sujeito: “quando alguém de outra região do país é entrevistado na TV, ou mesmo quando você (tu) conversa on-line com tutores de uma disciplina ou com colegas de curso” (Coelho et al., 2012, p. 25). Diante disso, é que temos a variação, formas diferentes; entretanto ambas são utilizadas com o mesmo valor ou propósito de referir a segunda pessoa do singular. Só pra recordar, “variação é o processo pelo qual duas formas podem ocorrer no mesmo contexto linguístico com o mesmo valor referencial ou com o mesmo valor de verdade, i.e., com o mesmo significado. Dois requisitos devem, pois, ser cumpridos para que ocorra variação: as formas envolvidas precisam (i) ser intercambiáveis no mesmo contexto e (ii) manter o mesmo significado” (Coelho et al., 2012, p. 23). Diante do exposto, consideramos essa abordagem da variação linguística mínima, se realizando apenas sob o viés do uso de pronomes.

Ainda que os organizadores do LD mencionem a questão da variação linguística decorrente do aspecto regional e da miscigenação, o que podemos ver no conteúdo de Ormundo e Siniscalchi (2018) é um apagamento da problematização dos conceitos de variação diatópica ou regional e de variação estilística, que muito poderiam dizer ao leitor sobre variação linguística. Conforme pode-se ver, os professores apenas aludem a essas questões, quando falam das regiões, da faixa etária do falante, grau de instrução, contexto de uso da língua.

Conforme Bagno (2007, p. 46) e Alkmim (2001, p. 34), “regiões, áreas urbanas e rurais” fazem parte da variação diatópica, que pode ser conceituada como a que está relacionada às múltiplas diferenças linguísticas da comunidade da fala em determinado território, em comparação com outras comunidades distintas. Os modos de falares são observados e comparados com outros lugares diferentes. Esse processo ocorre em “grandes regiões, os estados, as zonas rural e urbana, as áreas socialmente demarcadas nas grandes cidades etc.” (Bagno, 2007, p. 46).

Por sua vez, os fatores abordados por Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 64), “idade do falante, escolaridade” são conceituados por Alkmim (2001, p. 35) como variação social ou diastrática, que é “um conjunto de fatores que têm a ver com a identidade dos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade da fala”. Para Bagno (2007), a “idade do falante, escolaridade” fazem parte dos fatores extralinguísticos que podem auxiliar na identificação dos fenômenos de variação linguística. Bagno (2007), considerando a faixa etária, observa que “os adolescentes não falam do mesmo modo como seus pais, nem esses pais falam do mesmo modo como as pessoas das gerações anteriores”; já o “grau de escolarização: as pessoas que tem um nível de renda muito baixo não falam do mesmo modo das que têm um nível de renda médio ou muito alto, e vice-versa”.

Mais adiante, temos “situações em que emprega a língua”, em que Bagno (2007, p. 44) insere essa citação na categoria variação estilística:

Essa situação pode ser de maior ou menor formalidade, de maior ou menor tensão psicológica, de maior ou menor pressão da parte do(s) interlocutor(es) e do ambiente, de maior ou menor insegurança ou autoconfiança, de maior ou menor intimidade com a tarefa comunicativa que temos a desempenhar etc. Cada um desses tipos de situação vai exigir do falante um controle, uma atenção e um planejamento maior ou menor do seu comportamento em geral, das suas atitudes e, evidentemente, do seu comportamento verbal.

Com base no supracitado, temos o que Bagno (2007, p. 45) chama de “monitoramento estilístico”, que vai do grau mínimo ao grau máximo, em consonância com os fatores elencados na citação. Sendo assim, esse monitoramento é utilizado na língua falada e na língua escrita, pois “não escrevemos um bilhete para o namorado da mesma maneira como escrevemos uma carta de apresentação a uma empresa onde estamos tentando obter uma vaga para trabalhar” (Bagno, 2007, p. 45). Coelho et al. (2012, p. 81) também vão dialogar com Bagno (2007) quando dizem: “um mesmo falante pode usar diferentes formas linguísticas, dependendo da situação em que se encontra. Basta pensarmos que a maneira como falamos em casa, com nossa família, não é a mesma como falamos em nosso emprego, com nosso chefe”.

A Sociolinguística discorda, veementemente, de que existam falantes de estilos únicos. Todo sujeito, integrante de qualquer comunidade de fala, varia sua maneira de falar, monitorando, mais ou menos, seu comportamento verbal, independente dos fatores extralinguísticos, “grau de instrução, classe social, faixa etária etc.” (Bagno, 2007, p. 45). Coelho et al. (2012, p. 82) ainda afirmam o seguinte, sobre a colocação de Ormundo e Siniscalchi (2018): “situações em que emprega a língua”, “o que está em jogo aí são os diferentes “papéis sociais” que as pessoas desempenham nas interações que se estabelecem em diferentes “domínios sociais”: na escola, na igreja, no trabalho, em casa, com os amigos etc.”. Ou seja, a cada situação comunicativa os papéis sociais que exercemos vão se alterando: professor x aluno, patrão x empregado, pai e filho etc.

O LD demonstra diversas situações em que a linguagem se comporta de maneira particular em suas mais variadas situações de comunicação, conforme verificamos na Figura 3:

Figura 3: Várias situações de comunicação

Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 63).

Para iniciar a discussão, recorremos em primeiro lugar a Travaglia (2009, p. 17) para problematizar as ocorrências da Figura 3, que trata da “competência comunicativa dos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor), isto é, a capacidade do usuário de empregar adequadamente a língua nas diversas situações de comunicação”. Diante disso, cada pessoa vai adequar seu ato verbal aos mais diversos contextos de comunicação; esse processo é desenvolvido e entendido de forma progressiva.

Ormundo e Siniscalchi (2008, p. 65) também abordam em seu LD o conceito propriamente dito a respeito da variação linguística:

A variação linguística é um fenômeno que ocorre em todas as línguas. A língua sofre mudanças conforme o tempo passa e em razão do contato com outras línguas. As particularidades de cada falante, como sua idade e nível de escolaridade, também fazem com que a língua não seja sempre a mesma. Além disso, a língua também é empregada de modo diferente em situações que exigem maior ou menor formalidade.

O mesmo conceito de variação linguística de Ormundo e Siniscalchi (2008, p. 65) dialoga com o de Lucchesi e Araújo (2021), quando afirmam que a variação linguística são formas linguísticas existentes, frequentemente, nas comunidades da fala, “formas que estão em concorrência (quando duas formas são mais usadas ao mesmo tempo) e em concorrência (quando duas formas concorrem). Daí ser a Sociolinguística Variacionista também denominada Teoria da Variação”. Logicamente, é possível ver-se que o LD não adentra no assunto como um todo, a variação linguística é apenas abordada de maneira muito superficial.

Ainda que as intenções de Ormundo e Siniscalchi (2018) tenham sido as melhores possíveis, no que tange ao letramento das variações linguísticas, sua abordagem no LD é muito mal discutida e não existe a pragmática de teóricos importantes para discutir com mais fervor o assunto. Labov (2008, p. 215) afirma:

A língua é uma forma de comportamento social: declarações nesse sentido podem ser encontradas em qualquer texto introdutório. Crianças mantidas em isolamento não usam a língua; ela é usada por seres humanos num contexto social, comunicando suas necessidades, ideias e emoções uns aos outros.

Com base no dito antes, afirmamos que a intenção de Ormundo e Siniscalchi (2018) é transmitir a língua como fenômeno social, em contexto de uso; retomando Travaglia (2009), a língua, a partir da “competência comunicativa” de cada ser humano, vai se adaptar a qualquer contexto e situação de uso. Ainda que esse tema não seja aprofundado no LD, somente na ilustração da Figura 3 é possível que o professor passe para seu aluno que ele nem sempre precisa estar no formalismo da língua, o alunado pode transitar entre o coloquial também, dependendo de seu contexto de uso da fala.

Ormundo e Siniscalchi (2018) e o preconceito linguístico

Partindo para a análise do preconceito linguístico e como esse tema é abordado no LD de Ormundo e Siniscalchi (2018), ainda que de maneira ilustrativa e divertida, como se pode ver na Figura 4, destacamos que o assunto é discutido de maneiro objetiva, porém muito superficial e rasa.

Figura 4: Preconceito linguístico

Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 65).

Ormundo e Siniscalchi (2018) realçam em sua obra, a partir da ilustração, que o personagem de paletó, além da indumentária inapropriada para o ambiente praiano, fala também de maneira imprópria ao contexto no qual está inserido. Isso faz com que o personagem de terno e gravata entre em desacordo com a linguagem normalmente usada pelo surfista. A respeito da situação, os professores afirmam que “a língua apresenta variações. Todos falam diversas ‘línguas’ dentro de sua língua, escolhendo a variedade linguística mais adequada para cada situação comunicativa”. Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 65) enfatizam ainda o papel da escola para “ampliar esse uso da linguagem, criando oportunidade para que conheçamos a fala e a escrita de maior prestigio social”. Portanto, “as variedades linguísticas empregadas pelas pessoas que usufruem de maior prestigio cultural e social são chamadas variedades urbanas de prestígio” (Ormundo; Siniscalchi, 2018, p. 65). Observemos a citação a seguir:

Você já ouviu falar de norma-padrão? Essa expressão significa um modelo de uso da língua descrito nas gramáticas e nos dicionários. Ela é apenas uma referência, já que, no uso cotidiano da língua, ninguém segue rigorosamente todas as orientações gramaticais. Até mesmo os falantes das variedades urbanas de prestígio, que têm mais contato com essa norma, optam por outras construções em situações de informações (Ormundo; Siniscalchi, 2018, p. 65).

O LD enfatiza a existência da norma-padrão que até mesmo falantes usuários das variedades de prestigio podem deixá-la de lado, a depender do contexto de uso. Ormundo e Siniscalchi (2018) justificam a importância de dominar as variedades urbanas de prestígio, empregadas em “livros, jornais, revistas, entrevistas de empregos e discursos políticos, entre outras situações de comunicação importantes para a nossa prática social”, para a participação de cada pessoa nas atividades interacionais da sociedade. Os pesquisadores deixam claro no LD que não existe o falar certo ou errado, que não se deve desconsiderar ou desvalorizar as formas de falar de outros grupos sociais; ao fazer isso se desencadeia o preconceito linguístico.

A respeito do preconceito linguístico, Bagno (2007, p. 13) observa que em diferentes situações de comunicação propaga-se a ideia do falar “certo” e “errado”, privilegiando uma variante em detrimento de outra:

O que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: a gramática normativa e os livros didáticos.

A fim de evitar a perpetuação do referido preconceito, o estudioso ressalta o papel da escola e das demais instituições de ensino, que devem pensar a língua na sua pluralidade e não como uma coisa única e estática:

É preciso, portanto, que a escola e todas as demais instituições voltadas para a educação e a cultura abandonem esse mito da “unidade” do português no Brasil e passem a reconhecer a verdadeira diversidade linguística de nosso país para melhor planejarem suas políticas de ação junto à população amplamente marginalizada dos falantes das variedades não padrão (Bagno, 2007, p. 18).

Uma reportagem veiculada no Portal Aprendiz, redigida pela jornalista Raiana Ribeiro, traz à tona a seguinte problemática acerca do preconceito linguístico no LD:

Nos últimos dias, a polêmica em torno do livro didático Por uma vida melhor, destinado à Educação de Jovens e Adultos (EJA), reacendeu o debate sobre o preconceito linguístico ainda presente no país. Em um capítulo sobre as diferenças entre a norma culta e a popular da língua portuguesa, a obra afirma que a expressão “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” pode ser usada em determinadas situações. O texto adverte, no entanto, que ao adotar esta formulação “corre-se o risco de ser vítima de preconceito linguístico” e finaliza afirmando que o falante “tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião” (Ribeiro, 2011).

A partir da disseminação dessa informação e sem a contextualização sobre a variação linguística, o livro passou a ser alvo de represálias por parte da imprensa, com os dizeres de que o LD estava ensinando os estudantes a falar errado. Ribeiro (2011) ainda afirma que “o livro foi selecionado pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Por meio dele, o Ministério da Educação (MEC) avalia obras apresentadas por editoras, submete-as à avaliação de especialistas e depois oferece as aprovadas para que secretarias e professores façam suas escolhas”.

O Portal Aprendiz entrevistou o linguista Marcos Bagno para se pronunciar sobre a polêmica em torno do LD Por uma vida melhor. Em entrevista, o pragmático da Sociolinguística rebate as acusações investidas contra o LD:

Portal Aprendiz – A que o senhor atribui tamanha polêmica em torno do capítulo que trata da variação linguística no livro didático Por uma vida melhor?

Marcos Bagno – Atribuo a nada mais nada menos do que à ignorância generalizada na nossa “grande imprensa” acerca do que é uma língua e do que significa ensiná-la. Nossos jornalistas ainda acreditam numa concepção arcaica, pré-científica de língua como “gramática normativa” e, quando topam com uma concepção avançada, contemporânea, levam um susto.

Portal Aprendiz – Alguns críticos do livro alegam que o material estaria “ensinando” os estudantes a falar errado, o que representaria um retrocesso para a educação brasileira. Como o senhor encara essas afirmações?

Bagno – Encaro, novamente, como ignorância de quem as pronuncia. Parece que 101% dos que criticaram o livro simplesmente não o leram ou, pior, se leram, não entenderam. Em momento algum o livro quer “ensinar” a falar errado, simplesmente porque não é preciso. Todos os brasileiros (inclusive os que se acham muito letrados) usam regras gramaticais que contrariam as prescrições tradicionais. Não é preciso ensinar ninguém a dizer “os livro”, porque já é assim que todos nós falamos (inclusive os que se acham muito cultos, porque temos um grande acervo de língua falada gravada em que esses falantes exibem precisamente os usos do tipo “os livro”). O livro da professora Heloísa Ramos quer ensinar, isso sim, as formas prestigiadas de falar e de escrever, ou seja, quer ampliar o repertório linguístico dos aprendizes.

Portal Aprendiz – Como o senhor acredita que este tema pode ser abordado em sala de aula?

Bagno – Como já vem sendo abordado há cerca de 20 anos. Demonstrar a lógica das variedades não padrão já faz parte do conteúdo curricular de língua portuguesa há um bom tempo. Só mesmo os que não sabem nada de ensino podem se espantar. Para quem trabalha com educação e linguagem, já se trata de ponto pacífico.

Portal Aprendiz – Como o preconceito linguístico afeta os estudantes nos dias de hoje, sobretudo jovens e adultos (público-alvo do livro em questão)?

Bagno – O preconceito linguístico afeta a todos nós, mas evidentemente é mais pesado sobre as pessoas que usam variedades linguísticas mais distantes dos falares urbanos de prestígio. Justamente para combater o preconceito linguístico é que temos de dizer a todo mundo que é impossível falar sem seguir regras, mas que um conjunto muito restrito dessas regras foi eleito (por razões meramente políticas e sociais) para se tornar o padrão. E uma vez que esse padrão é cobrado em instâncias importantes da vida social, temos que ensiná-lo explicitamente aos nossos alunos.

Portal Aprendiz – Qual o saldo desse debate? Houve algum avanço a partir dos questionamentos levantados?

Bagno – Infelizmente não. A grande mídia, como é de seu costume, não dá espaço para quem discorda dela. E quando dá espaço é sob a hipocrisia da “imparcialidade”, sempre colocando ao lado da opinião dos verdadeiros especialistas a opinião de quem não entende nada da matéria.

Sendo assim, retomemos a obra Preconceito linguístico: o que é, como se faz?, de Bagno (2007, p. 18), que enfatiza a obrigação da escola, bem como das demais intuições de ensino de educação e cultura, de desconstruir o conceito da unidade do português do Brasil e reconhecer a grande pluralidade que ela abarca, ou seja, a “verdadeira diversidade linguística de nosso país”.

Bagno (2007, p. 19) ainda declara em sua obra:

A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em “língua portuguesa” está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. [...] A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua.

Analisando os exercícios propostos no LD por Ormundo e Siniscalchi

Ao final do capitulo, por meio dos exercícios propostos, o LD de Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 69), fala vagamente sobre as gírias, que são “vocabulário momentâneo e novo, ou antigo que passa a possuir novos sentidos, usado por grupos específicos; dialeto peculiar de um grupo, profissão, classe social etc.; linguagem grosseira, rude; calão; maneira de falar repleta de expressões próprias, gírias, palavras de uso restrito a grupos sociais; modo de falar marginal, praticamente impossível de ser entendido por outras pessoas, que estabelece uma relação de pertencimento com o grupo” (Dicio, 2018):

As gírias pertencem ao vocabulário típico de certos grupos, como os surfistas ou os roqueiros. Como ocorre com as demais palavras, o conjunto de gírias se altera com o passar do tempo. Nos anos 1960, por exemplo, uma turma era chamada de patota, e um sujeito legal, de batuta, termos que hoje provocariam nosso riso.

Figura 5: Sobre gírias

Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 65).

Esse é um assunto que deveria ser mais bem aprofundado no LD, tendo em vista a existência de muitos grupos sociais, que, por conseguinte, farão uso de diferentes signos para sua comunicação, signos esses que podem ser muito específicos de grupo para grupo. Suscitamos em nossa discussão Macêdo Júnior et al. (2021), que alertam para a importância de os alunos, principalmente nas séries de Ensino Fundamental, terem conhecimento sobre esse tema com intuito de vencer também os paradigmas do preconceito linguístico.

De acordo com Macêdo Júnior et al. (2021, p. 5), a decorrência dinâmica da interação social e linguística inerente à língua desencadeia o surgimento da gíria; assim, poder-se-ia dizer que toda gíria é uma variação linguística, mas a variação linguística nem sempre pode ser uma gíria. A gíria é uma expressão do vocabulário especial que muitas vezes é utilizada em particular como signo de um grupo seleto de falantes (Macêdo Júnior et al., 2021). Diante disso, tornar o aluno lúcido sobre a existência do dialeto das gírias que são utilizadas por muitas pessoas de várias classes sociais, faixas etárias, sexo, raça etc. é fazer com que o estudante crie um senso de aceitação sem estereotipar nem caracterizar os demais colegas no contexto da sala de aula e nos demais.

Os conceitos das gírias, assim como melhor abordagem sobre o assunto, não ficam explícitos na obra de Ormundo e Siniscalchi (2018), o que torna uma tarefa difícil para um docente que utiliza LD em sala de aula. O aluno não terá em seu aprendizado a teoria de que o fenômeno da gíria tem origem na formação de grupos sociais, “pois é comum que pessoas que partilham atitudes, opiniões e posturas análogas às demais estabeleçam comunicação e convivência. É nesse contexto que surge a formação de grupos sociais, pois [...] os integrantes de uma determinada sociedade buscam se relacionar com semelhantes, ainda que sejam de raças ou culturas diferentes, sendo comum que cada grupo crie ou fale suas próprias gírias internas” (Macêdo Júnior et al., 2021, p. 6); sem apresentar esse tema tão importante, como alunos do Ensino Fundamental vão aceitar falantes advindos de outras culturas?

Considerações finais

Consideramos que, ainda que o LD aborde a temática da variação linguística, e que esse seja um tema que deve ser abordado em sala de aula, de acordo com o Ministério da Educação, o assunto é abordado de maneira bastante superficial e sem aprofundamento. Para se ter uma ideia, a temática é explorada apenas em três páginas. A estratégia de ensino a partir do LD não é suficiente para o processo de aprendizagem do aluno acerca do que é o preconceito linguístico, de como não o fazer, de que a língua varia de acordo com muitos fatores intra e extralinguísticos, que não existe somente uma forma correta de se falar e que o falar do próximo não pode ser rejeitado ou discriminado nos mais diversos contextos de uso, e sim respeitado, cabendo ao professor trazer mais conteúdo para suas aulas e dinamizar esse processo.

Referências bibliográficas

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Publicado em 18 de abril de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MACÊDO JÚNIOR, Adriano Menino de. Abordagem da variação linguística em livro didático da 6ª série do Ensino Fundamental. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 14, 18 de abril de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/14/abordagem-da-variacao-linguistica-em-livro-didatico-da-6-serie-do-ensino-fundamental

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