Minha cadelinha e eu

Esteban Lopez Moreno

Professor associado na Fundação Cecierj e no Programa HCTE-UFRJ

Todos os dias, pelo menos uma vez, eu a levo para passear na rua. A princípio não estou disposto, chego do trabalho mais tarde do que gostaria e desejo, como a maioria dos mortais, apenas comer algo e descansar. Mas minha cadelinha é impiedosa com meus desejos. Ao abrir a porta, logo faz uma grande algazarra: pula, late, balança o rabo e se contorce em pura alegria, como se eu fosse um deus humano que acabou de aportar no planeta casa. Brinco-lhe um pouco e depois me afasto, em trégua. Não demora muito e ela passa a utilizar uma artimanha ainda mais poderosa: olha-me fundo nos olhos, pacientemente, até conquistar a minha atenção. Suavemente, deslizo minha mão sobre sua mancha branca no pescoço, ela se vira e expõe sua barriguinha com seus quatro pares de mamilos. Meus carinhos, no entanto, não a satisfazem por muito tempo e ela se reergue com aquele olhar de carência inesgotável:

– Quero passear na rua! – “telepateia-me”.

– Hoje não dá, minha preta, já está tarde e estou cansado – respondo-lhe; – além do mais, parece que vai chover.

Ela persiste ainda por algum tempo, faço mais um carinho até que finjo sólida indiferença, então ela se afasta. Enquanto ainda se ajeita em sua cama, vejo o brilhinho de seus olhos perscrutarem-me com um último suspiro de esperança. Persisto em minha dureza e ela finalmente põe-se a descansar.

Acho que ela apenas se faz de vencida, pois todo o seu ser permanece à espreita de meus menores movimentos. Sinto-me acompanhado invisivelmente até o momento em que desperta, em função de algum som que lhe represente uma possível saída para a rua, como o farfalhar de um saco plástico, onde colho as fezes, de um tênis ou de um chinelo arrastando. Basta pouco para ressuscitar-lhe toda a altivez.

– Coquinha, está chuviscando, não é bom sair assim...

Não pense que ela se importa com a chuva, apenas eu me importo.

– Ora, que se dane – ela pensa. Quero sair! Preciso cheirar a grama, procurar os gatos escondidos, ver outros cachorros passeando, fungar-lhes o ânus e as genitais... E eu também gosto de ser cheirada!

– Mas não tem ninguém! – insisto, mirando-lhe firme nos olhos que me miram da mesma forma.

Dizem que os seres humanos domesticaram os cães; enganam-se aqueles que acham que também não fomos domesticados por eles. Mesmo o mais frio dos homens não tem como resistir, ainda que por alguns instantes, à brandura e ao amor incondicional desses seres encantadores que há milhares de anos nos acompanham e protegem.

É assim que, vencido, ela me leva para passear sob uma chuva fina e sob um frio antártico até o final da rua, vazia, íngreme e molhada. Em seu caminho, aqui e acolá, como se espremesse uma laranja já bastante espremida, ela despeja algumas gotas de urina para informar aos outros caninos que passou por ali, triunfante e indômita.

Ao final da ladeira, uma gota d'água pesada cai sobre minha testa, anunciando a já esperada chuva. As folhas das árvores debaixo das quais me abrigava aumentavam o volume das gotas que, sob o efeito de uma lâmpada distante e intensa, caíam como um cravejar cintilante sobre o solo. Sento-me sobre um degrau molhado, admirando a beleza daquele movimento.

Aos poucos, dou-me conta dos cheiros, dos diversos sentidos sutis que inundam tudo ao redor, tantas vezes menosprezados por nós, nem por isso menos necessários. Há tanta beleza em cada instante, muito além do que experimentaria se tivesse permanecido no apartamento.

Respiro, respiro... Minha cadelinha aproxima-se, sempre solta e meiga. Acolho-a entre as minhas pernas e digo-lhe baixinho: “Eu te amo por me fazer vir aqui e por ser quem você é”. Ela não responde; não precisa, pois já sabe. Ela tudo sabe.

Publicado em 18 de abril de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MORENO, Esteban Lopez. Minha cadelinha e eu. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 14, 18 de abril de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/14/minha-cadelinha-e-eu

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.