Resenha do artigo “Educação e tecnologia: a crise da inteligência”
Clayton Tôrres Felizardo
Mestrando em Ensino em Educação Básica (PPGEB/UERJ), pós-graduando em Educação a Distância (PPGEaD/IFRO), especialista em Ciências da Natureza e suas Tecnologias (UFPI), licenciado em Ciências Biológicas (UERJ), mediador acadêmico da Pós-Graduação em Ciências da Natureza e suas Tecnologias (UERJ), tutor presencial da graduação em Ciências Biológicas (UERJ/Cederj)
Ingrid Carla Aldicéia Oliveira do Nascimento
Mestranda em Ensino em Educação Básica (PPGEB/UERJ), especialista em Psicopedagogia (UERJ) e em Neurociências (UFRJ), licenciada em Pedagogia (UERJ), mediadora acadêmica da Pós-Graduação em Alfabetização, Leitura e Escrita (UERJ) e professora de atendimento educacional especializado (SME/RJ)
Marcos Pontes Lavrador
Licenciado em Letras - Português/Literatura (Unesa), pós-graduando em Antropologia Brasileira (UCAM)
O artigo aqui resenhado é de autoria de Maurício Rebelo Martins e intitulado Educação e tecnologia: a crise da inteligência. O autor é doutor em Educação e docente da UFPB. O autor vem se dedicando a estudos a respeito da formação pedagógica em sociedades plurais, dado o contexto atual e como as relações humanas são construídas nesse cenário, para a sua subjetivação e a sua socialização.
Martins (2019) inicia o texto falando sobre como a globalização, processo quase inerente a todas as sociedades, tem contribuído para as rápidas transformações ocorridas ao longo das últimas décadas. O autor não separa esse processo (da globalização) do uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC), o que já dá uma primeira ideia para pensar como ambos se influenciam mutuamente. Será que existe atualmente um processo de globalização sem o uso das TIC? Bom, ensaiamos timidamente dizer que não. O fluxo de informações transita quase que mundialmente e, por que não dizer, instantaneamente ao redor do globo. No final da década de 1990, Levy (1999) em sua obra Cibercultura apresentou o conceito que dá nome ao seu livro. Dentre muitas questões que ele aborda, traz a perspectiva do aumento do fluxo de informações entre pessoas mediadas pela tecnologia, que ele chamou de fluxo da inteligência coletiva. Ele trata também de como a noção de cultura vai sendo transformada em decorrência do surgimento das novas tecnologias e sua inserção na vida diária em seus vários contextos.
Em seu trabalho, Canclini (2011) analisa a cultura na Pós-Modernidade, discutindo o fenômeno da globalização sob as perspectivas econômica, política e social. Para o antropólogo, na Pós-Modernidade ocorre a desarticulação cultural com a perda de linearidade histórica e a reorganização cultural do poder. Nesse sentido, Canclini (2011) permite um diálogo com Bourdieu (2012), que explicara que
a cultura da elite é tão próxima à cultura escolar que as crianças originárias de um meio pequeno-burguês (ou, a fortiori, camponês e operário) não podem adquirir, senão penosamente, o que é herdado pelos filhos das classes cultivadas (Bourdieu, 2012, p. 55).
Nesse sentido, Martins chama a atenção para a supervalorização dos avanços da ciência e da tecnologia e seu “descompasso” mediante os avanços da humanidade, pois, como afirmava Adorno (2009, p. 6),
os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados.
Dessa forma, é importante compreendermos que a cultura é subordinada ao mercado econômico, tal qual uma ferramenta a serviço de grupos concentradores de poder. Ou seja, é utilizada para manipular as massas. Principalmente por meio dos meios eletrônicos que, devido aos avanços tecnológicos, têm se tornado cada vez mais atrativos (Canclini, 2011; Bourdieu, 2012).
Estrategicamente, como bem sinaliza Martins, além de entreter, fornecer conforto e eficiência, quanto mais modernos e avançados forem os equipamentos tecnológicos, maior a sensação de poder de seus consumidores, impactando a sociedade de maneira geral, por partir do princípio de que “o progresso da humanidade e a inventividade tecnológica são categoricamente a mesma coisa” (p. 4).
Questionamo-nos então se Levy (1999) previu em seu trabalho que nós, seres humanos, hoje nos relacionaríamos mais por meio de aplicativos do que presencialmente. Será que boa parte da nossa existência estaria cada vez mais caminhando para a virtualização? São questionamentos como esse que podem nos ajudar a tecer uma reflexão sobre a presença das TIC no mundo contemporâneo.
Embora possamos explorar diversos contextos, dada a natureza quase onipresente das tecnologias, vamos nos remeter ao processo educacional que Martins (2019) vem abordando ao longo do seu artigo. O autor deixa claro que não é contra o uso da tecnologia, sobretudo na Educação, pois hoje temos estudantes inseridos num cenário de avanços tecnológicos que promovem novas formas de expressão e comunicação.
O processo de ensino-aprendizagem não está deslocado do restante da sociedade. Logo, ele será atravessado por questões múltiplas que são trazidas para dentro desse espaço-tempo histórico, embora alguns gostem de pensar a educação como processo desconectado do todo do restante do mundo e não se propõem a pensar além muros da escola, não procurando entender o percurso, por exemplo, que é realizado da casa do(a) aluno(a) até a instituição escola.
Por isso, Martins (2019) convida a pensar sobre a geração que temos hoje na escola, que tanto se difere das anteriores, ora visto que ela já nasce imersa em um mundo cada vez mais tecnológico. Hoje observamos crianças ainda de colo que manipulam smartphones e tablets. Crianças que dentro em breve farão parte dos cotidianos escolares. A forma como elas se relacionam com as TIC é bem diferente, muitas vezes como os(as) professores(as) se relacionam.
A fundação da escola como instituição data do século XIX; no século XX, se consolidou e para a época moldou corpos e subjetividades, principalmente atrelados a uma perspectiva do capitalismo fabril (Sibilia, 2012). No século XXI, esses corpos e suas subjetividades nas escolas são outros, muitos nem mesmo pensados, diferentes daquela sua ideia inicial de formar somente um proletariado que atendia a uma produção tecnológica vigente. Ou seja, de um mundo que demandava cada vez mais mão de obra especializada, em um processo de ensino-aprendizagem que privilegiasse o trabalho manual em detrimento do intelectual, pelo menos para as classes menos abastadas.
Mesmo afirmando que a tecnologia pode trazer benefícios para a Educação, Martins (2019) defende que ela não é o único meio para enfrentar os problemas educacionais na atualidade, porque a presença maciça das tecnologias nas escolas tem contribuído para o que o autor chama de crise da inteligência. Aqui destacamos um trecho do artigo resenhado:
no caso da educação, o atropelamento resultante do mau uso das máquinas eletrônicas pode ser verificado na superficialidade e pequenez dos textos produzidos pelos educandos, na resistência a leituras mais profundas e mais complexas, no prejudicado desenvolvimento cerebral e na impaciência e na indisciplina nas salas de aula (Martins, 2019, p. 8).
O uso das tecnologias tem sido constante nas salas de aula brasileiras; no entanto, esse uso parece destituído de sentido pedagógico quando adentrado nesse ambiente.
Outra abordagem de que Martins (2019) se vale no seu texto para explicar o que pode ser a origem da crise da inteligência é recorrer à neurociência; pesquisas têm evidenciado baixa atenção dos discentes, não chegando a uma concentração de pelo menos dez minutos em atenção a um texto lido. Isso pode acabar por ferir a compreensão da leitura, e ser elencado ao fato de que redes sociais como Twitter, Facebook e WhatsApp, por exemplo, exigem menor atenção, sendo veiculados textos curtos. Sobre esse aspecto da comunicação, Zuin e Zuin (2018, p. 421) lembram que “o fato de se comunicar muitas vezes passa a ser mais relevante do que o conteúdo da própria comunicação”.
A qualidade do que se comunica é posta em xeque quando se preza mais a quantidade. E pode ser que os discentes não tenham a percepção da transposição das linguagens usadas em diferentes contextos das redes sociais às salas de aula. Seria esse um dos motivos da crise da inteligência?
Não é uma pergunta fácil de responder. Tampouco podemos incorrer no simplismo de dizer que as TIC por si sós vão engendrar comportamentos nos outros que destoam do que a escola espera desses sujeitos.
A neurociência vai mais fundo ainda quando em pesquisas evidencia transformações de ordem psicológica dos sujeitos, bem como da sua socialização. O uso quase irrestrito das TIC, seja nas casas dos(as) nossos(as) alunos(as), seja nas escolas, tem provocado mudanças de comportamento no que tange à sua sociabilidade. A escola que era vista como locus privilegiado de interação social acaba perdendo a sua legitimidade para as novas tecnologias que se mostram por vezes mais interessantes do que a aula que será ministrada pelo(a) docente. Cabe aqui também um mea-culpa: será que as práticas docentes estão em consonância com o que essa geração espera da instituição escola no mundo contemporâneo?
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que desde a sua promulgação em 2017 veio trazer diretrizes para as escolas, dispõe de dez competências gerais. Essas competências devem ser desenvolvidas ao longo de todas as etapas do processo de ensino-aprendizagem. A presença das tecnologias se dá nas competências gerais 1, 2, 4 e 5. Destacamos a última:
5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva (Brasil, 2017, p. 9).
Ou seja, observa-se a presença das tecnologias na escola de hoje. Não há ruptura entre a instituição e as demandas da sociedade atual. Porém essa competência pensa na inserção de ferramentas tecnológicas para a compreensão do mundo discente, na realidade em que ele(a) está inscrito(a) para que assim possa fazer uma leitura crítica das suas realidades e até mesmo a partir disso criar um movimento, uma ação sobre.
Temos de fazer o exercício de pensar o uso das tecnologias nos espaços escolares, de modo que esses sujeitos se apropriem criticamente quanto aos seus usos e com isso possam ressignificar essas TIC para fins pedagógicos. Acreditamos que caiba uma intervenção pedagógica para esse sentido, em que o(a) docente faça também o papel de mediador das tecnologias para fins educacionais. Não é uma tarefa das mais fáceis, visto que ora o papel dessas ferramentas digitais é superestimado por muitos, quando entendem as tecnologias como um “santo graal” da educação contemporânea, ora essa visão é um pouco borrada por aqueles que se sentem desconfortáveis com um mundo cada vez mais digitalizado, tendo na figura desses atores sociais entraves de várias naturezas, como a falta de preparo para a utilização educacional das tecnologias.
Pudemos observar recentemente naqueles que estão envolvidos em algum nível do processo educacional, a inserção obrigatória e sem uma reflexão crítica maior no contexto pandêmico da covid-19, de uso das tecnologias para fins escolares, que esteve tão em voga, o chamado “ensino remoto”, realizado nas escolas com a presença das TIC. Porém não basta que tecnologias sejam usadas na escola, porque, se elas não tiverem reflexão crítica, acabarão por reproduzir velhas práticas da educação tradicional, que opera por meio de aulas meramente expositivas, em que o(a) discente espera passivamente a transmissão dos conteúdos ministrados pelo(a) docente.
Paulo Freire (2011) tinha elucidado essa concepção de “educação bancária”, não problematizadora, e assim não se fazendo emancipatória dos sujeitos envolvidos. Ou seja, é necessária a reflexão crítica docente/discente quanto ao uso das tecnologias na sala de aula, seja ela presencial ou remota.
A que fins essas tecnologias devem se destinar na escola? Quais as possibilidades de sua inserção em um projeto político-pedagógico que contemple um trabalho dialógico? Quais os limites que devem ser estabelecidos dentro da escola e até mesmo fora dela para que as tecnologias sejam mais um caminho para a qualidade das vidas humanas e não a promotora de um desgaste social e psicológico nunca antes visto na história da humanidade?
Surgem mais perguntas que respostas prontas; observamos que nem todas foram feitas ou mesmo respondidas na sua integralidade – até mesmo de propósito. Dada a complexidade do tema, nos parece satisfatório continuarmos a pensar juntos as possibilidades, os entraves e limites que possam surgir quanto ao uso das tecnologias no nosso dia a dia e na escola pública – instituição que tem como uma de suas premissas a formação de sujeitos críticos em um mundo em constantes mutações permeadas pelas TIC. No mais, sugerimos a leitura do artigo aqui resenhado, para que os(as) professores(as) brasileiros(as) possam elucidar novos questionamentos, diálogos e práticas docentes a respeito das TIC nas escolas de Educação Básica.
Referências
ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Quarta versão. Brasília: MEC/SEB, 2017.
CANCLINI, Nestor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MARTINS, Maurício Rebelo. Educação e tecnologia: a crise da inteligência. Educação, nº 44, 2019.
SIBILIA, Paula. A escola no mundo hiperconectado: redes em vez de muros? Matrizes, v. 5, nº 2, p. 195-211, jan./jun. 2012.
ZUIN, Vânia Gomes; ZUIN, Antônio Álvaro Soares. O celular na escola e o fim pedagógico. Educação & Sociedade, v. 39, p. 419-435, 2018.
Publicado em 02 de maio de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
FELIZARDO, Clayton Tôrres; NASCIMENTO, Ingrid Carla Aldicéia Oliveira do; LAVRADOR, Marcos Pontes. Resenha do artigo “Educação e tecnologia: a crise da inteligência”. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 16, 2 de maio de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/16/resenha-do-artigo-reducacao-e-tecnologia-a-crise-da-inteligenciar
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