O desafio de conviver com a diferença: um estudo sobre o multiculturalismo e a escola pública na tríplice fronteira amazônica
Liliane Paiva Machado
Pedagoga (UEA)
Luiz Felipe Lacerda
Psicólogo, doutor em Ciências Sociais, docente da Universidade Católica de Pernambuco
O multiculturalismo, dentro das instituições de ensino, ganha cada vez mais enfoque na medida em que se almeja a edificação de uma educação engajada e libertadora. Ademais, a diversidade cultural assenta-se na gênese da caracterização da população brasileira como povo constituído a partir de ampla miscigenação cultural.
No Brasil, a questão da diversidade cultural, tratada atualmente pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, não é um tema recente, porque já vinha sendo problematizada pelos movimentos sociais indígenas e de negros, bem como os movimentos de educação popular (Oliveira, 2012, p. 1).
O Brasil é um país construído na heterogeneidade dos processos sociais; essa diversidade representa uma riqueza cultural de alto valor para a construção da identidade nacional. A cidade de Tabatinga, localizada na região do Alto Solimões (extremo oeste do Estado do Amazonas), a 1.110km da capital Manaus, tem população de 52.272 pessoas; é exemplo expoente desse contexto, sendo constituída a partir da cultura brasileira, peruana, colombiana, haitiana, indígena e ribeirinha, além de significativa população rotativa composta por funcionários públicos e militares provenientes de outros estados da federação (IBGE, 2010).
Observando essas premissas e esse contexto, a presente pesquisa teve como objetivo compreender as manifestações desse multiculturalismo no ambiente escolar, com especial atenção em uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal. O objetivo central foi compreender como os educadores articulam metodologicamente as diferenças culturais nos processos de ensino-aprendizagem e quais efeitos dessas práticas na formação dos educandos da tríplice fronteira.
Na busca por tais objetivos, foram realizadas pesquisas documentais, observações, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Os resultados obtidos nessa coleta de dados foram interpretados a partir da técnica de análise do discurso e as teorizações de autores como Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Anete Abramowicz e Moacir Gadotti, que nos auxiliam na compreensão das narrativas coletadas.
Todos temos o direito de sermos iguais quando a diferença nos discrimina
e todos temos o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos diminui
(Santos, 2007).
Fundamentação teórica
No Brasil, com sua vasta dimensão territorial e diversificada população, a heterogeneidade, além de representar a verdadeira riqueza cultural, reflete também os amplos desafios da nossa sociedade. Conviver com sujeitos culturalmente distintos é um exercício de alteridade constante que, em uma população muitas vezes carente de educação crítica de qualidade, pode tomar contornos de radicalismo e intolerância.
Da história colonial ainda trazemos vestígios de tal intolerância e racismo manifestados no velado preconceito e no machismo que o povo brasileiro carrega. Na história atual, temos inúmeros exemplos de ações que buscam a harmonia e a complementaridade entre essas diferenças culturais. É curioso perceber, no contexto social e político atual, por exemplo, que, na mesma época em que logramos algum equilíbrio ou alguma justiça socioeconômica com programas sociais, acirram-se os ânimos entre populações estereotipadas com enfoques políticos polarizados nas diversas regiões do país.
A escola é um espaço de expressão, criação e reflexão da sociedade como um todo; nesse sentido, o desafio de conviver com o multiculturalismo está no cerne dos processos educacionais. Para ser efetiva na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, a escola deve propiciar entre seus educandos a criação de laços afetivos, de reconhecimento e respeito às diferenças. Contudo, se não for efetiva nesse intento, pode exacerbar ainda mais preconceitos, conflitos e negações que embasam os processos sociais de exclusão. Daí a importância basal da prática docente na construção de uma sociedade humanizada.
Freire (1996) menciona que pensar hoje uma educação de qualidade é pensar em ignorar qualquer tipo de preconceito, é proporcionar uma educação de braços abertos para a diversidade cultural, provocando espaços de encontro entre culturas; é aprimorar o ambiente educacional para que todos possam exercer o direito de ter uma cultura distinta, de pensar diferente. Dessa forma é que se pode ofertar aos educandos uma consciência sobre o seu lugar cidadão dentro da sociedade, assim como a importância fundamental do lugar do outro.
Tendo em vista tais premissas, buscamos organizar nosso aprofundamento teórico em três dimensões, que abordam: a sociedade heterogênea, retratando sucintamente a diversificação constitutiva da sociedade brasileira; a escola e o multiculturalismo, apresentando a visão institucional sobre os aspectos positivos e os desafios no trato pedagógico com diferentes identidades culturais; e, por fim, inspirados em Paulo Freire, a dialogicidade como metodologia de inclusão multicultural, percebendo que o diálogo é uma ferramenta basilar para edificação da autonomia, alteridade e do respeito.
Sociedade heterogênea
Segundo Pasquale (2009, p. 303), heterogeneidade define-se como a “qualidade de uma população cujos integrantes revelam características diferentes e acentuadas do ponto de vista biológico e cultural”.
O censo de 2010 calcula a população total brasileira em 190.755.799 habitantes. Esse universo responde a inúmeras culturas que partilham o território, construindo ou reconstruindo cotidianamente tradições, costumes, ideias e valores. Especificamente sobre a população indígena, os dados apontam para 817.963 pessoas (0,43% da população brasileira), estando o maior contingente concentrado Região Norte do país – 305.873 indígenas (IBGE, 2010).
Na Pedagogia da Tolerância, ao discutir o respeito à cultura indígena, Freire coloca que o problema não é o de preservar a cultura indígena, mas o de respeitá-la, o que implica em não conservá-la em ilhas, em guetos histórico-culturais e sim reconhecer as idas e vindas do movimento interno da própria cultura. A cultura indígena não é estática e histórica, mas dinâmica e social (Oliveira, 2010, p. 14).
No município de Tabatinga, a população total de 52.272 habitantes é composta por 29.574 indígenas pertencentes a cinco etnias, além de 1.181 colombianos e 913 peruanos (IBGE, 2010). É importante frisar que, por representarem um fenômeno migratório recente, os haitianos não aparecem contabilizados nas estatísticas nacionais; é indício de que nem mesmo os indicadores mais apurados conseguem dar conta da profunda e dinâmica cultural brasileira. De acordo com os dados da Policia Federal em Tabatinga (2015), aproximadamente cem mil haitianos adentraram o território brasileiro através da fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru entre os anos de 2012 e 2015.
O multiculturalismo na tríplice fronteira designa a maneira de viver, de ser, de sentir, de pensar, designa a forma de se organizar socialmente como povo. Como no contexto nacional, representa a maior riqueza e o maior desafio na construção de uma sociedade harmônica e justa. Pasquale (2009, p. 406), define multiculturalismo como “prática de acomodar qualquer número de culturas distintas numa sociedade, sem preconceito ou discriminação”.
Segundo Santos (2003, p. 24) a “cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza sociamente um povo, nação ou grupos no interior de uma sociedade”. É, portanto, um conjunto de conhecimentos e costumes que representam valores e coadunam-se em atitudes e características únicas.
Em Tabatinga, na sociedade que compõe a tríplice fronteira amazônica, o encontro entre distintas culturas é constante e a partir dele se arquitetam o próprio tecido social e suas dinâmicas cotidianas. Nas palavras de Albuquerque (2010, p. 5), “as fronteiras são fluxos, mas também obstáculos, tendo em vista suas misturas e separações, integrações e conflitos, domínios e subordinações”.
Na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru percebemos duas distintas dimensões dos processos multiculturais: por um lado, a garantia de direitos constitucionais que objetivam harmonia e igualdade e promovem um discurso harmônico e integrativo; por outro, uma dimensão subjetiva e cotidiana com escala de valores e estereótipos predefinidos, que formatam uma influente hierarquia nas relações sociais.
Lacerda (2012) apresenta aprofundado estudo sobre o imaginário social dos moradores desse território e a forma como percebem e constroem as hierarquias sociais. Levando em consideração qualidade de moradia, acesso à saúde, educação, cultura, segurança pública, perspectivas de trabalho e futuro, o estudo propõe a construção da pirâmide hierárquica do imaginário social pertencente às populações que vivem na tríplice fronteira.
Os resultados apresentam a população colombiana no topo dessa estrutura, como aquela que possui melhores condições de vida, seguida dos migrantes brasileiros, que geralmente direcionam-se à fronteira em busca de trabalho e boa remuneração. Na base da estrutura estão as populações mais vulneráveis: peruanos, indígenas e, por fim, haitianos. O estudo ainda indica como tal escala de valores afeta as dinâmicas cotidianas sociais, políticas e econômicas na tríplice fronteira.
Essa escala de valores arraigada no imaginário social da tríplice fronteira permeia as relações humanas e, sem dúvida, adentra o universo da sala de aula, geralmente definindo, etnocentricamente, crianças e jovens de origem peruana, indígena ou haitiana como vítimas, menos capazes e/ou inferiores. Nas palavras de Rocha (1986, p. 7), “etnocentrismo é uma visão de mundo, em que nosso próprio grupo é tomado com centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”.
A escola e o multiculturalismo
A escola produz e reproduz a sociedade que a cerca e, junto com a família, é o principal agente de influência na formação humana ao longo dos primeiros anos de vida. Nesse sentido, possui responsabilidade direta com as formas, construtivas ou destrutivas, com que as pessoas lidam com o multiculturalismo inerente à nossa sociedade (Adorno, 2012; Freire, 2000). Stecanella e Sayão (2006, p. 164) dizem que
sempre tentamos enquadrar, definir, delimitar a diferença. Sempre colocamos rótulos naquilo que não compreendemos, a fim de melhor lidar com o que difere de nós. Antes de ouvirmos, antes de abrirmo-nos e acolhermos o que está diante de nós, partimos na frente, afirmamos e determinamos categorias e adjetivos. Esse é o nosso maior erro, a maior violência que cometemos. Partimos de nossos referenciais, de nossas certezas centradas em nós mesmos e julgamos, condenamos e preconceituamos. A escola atualmente e os conteúdos curriculares por ela desenvolvidos possuem significativas responsabilidades sobre esses processos.
As escolas atualmente encontram dificuldades em observar as diferenças culturais como possibilidade positiva para o processo de ensino-aprendizagem. Na maior parte das vezes, nos deparamos com uma instituição glorificante da cultura dominante, sem levar em consideração que existem diversos tipos de saberes construídos fora dos seus muros e fora dos parâmetros hegemônicos convencionados pela sociedade.
Por outro lado, cada vez fica mais difícil acreditar que todos os educandos são iguais, que aprendem da mesma forma, que possuem as mesmas expectativas diante da vida ou que possuem a mesma origem cultural. Pelo contrário: é evidente que a escola e as salas de aula são espaços potencialmente multiculturais, que o educador não deve ser senão um articulador de culturas e que suas práticas devem não apenas respeitar, mas investir sobre a diversidade que se apresenta (Adorno, 2012; Freire, 2000, 1996).
Bernestein (1996, p. 2) nos permite refletir sobre a atuação da escola e do educador a esse respeito: “para que a criança possa assimilar a cultura da escola, é necessário que a escola consiga assimilar a cultura da criança”. Sendo assim, o educador assume a missão de ser o agente construtor do multiculturalismo no universo da escola, aquele que abre espaço e valoriza a diferença, que constrói uma educação realmente crítica, complementar e libertadora. É imperativo, para a solidificação de um aprendizado significativo, a valorização pedagógica da cultura do educando.
As dificuldades da escola e dos educadores em assimilar essa postura holística e complementar frente às diversidades culturais surgem nas bases da formação docente, assim como na opção política sobre os conteúdos trabalhados. No primeiro caso, está claro que a formação dos professores é absolutamente falha no que concerne ao trato com as diferenças culturais, os saberes populares e as expressões cotidianas da sociedade que a cercam. O multiculturalismo mostra-se como um desafio pedagógico a ser evitado pela insegurança formativa do docente, que não faz porque realmente não apreendeu a fazer.
Segundo, os currículos – tanto aqueles que compõem a formação dos professores quanto aqueles aplicados de maneira homogenia ao longo do Ensino Fundamental e Médio – estão atrelados em relação servil aos chamados conhecimentos universais em prol dos conhecimentos culturais. Isso gera desconhecimento e depreciação das culturas locais, assim como a exaltação de formas únicas de saber, que, por sua vez, geram a exclusão do multiculturalismo e a intolerância a diversidade.
Peroza, Silva e Akkari (2013) incitam a reflexão de que deveríamos inclusive superar o termo multiculturalismo em direção a um transculturalismo nos processos educativos. De acordo com os autores, a adoção desse conceito garantiria um contato mais equânime e respeitoso entre as diversas culturas que compõem o universo escolar.
Percebe-se que o conceito de transculturalidade amplia os horizontes de sentido no que se refere a uma prática pedagógica politicamente coerente com os princípios de uma “unidade plural”, pois enfatiza com mais força (em relação ao inter e ao multiculturalismo) os mecanismos de “interpenetração” das culturas, de modo que não somente a harmonia, mas também o confronto propiciem as bases para um encontro significativo e respeitoso entre os indivíduos que partilham suas diferenças culturais num mesmo ambiente em vista de um projeto comum (p. 476).
Os autores afirmam que é o embasado exercício dialético sobre a transculturalidade que pode ofertar amplitude da consciência individual e coletiva aos educandos, ofertando ao processo educativo o deslocamento de perspectivas autocentradas em direção à percepção da importância do outro e de sua cultura.
Com base nas observações realizadas ao longo deste trabalho, somos levados a afirmar que é de menos importância a conceituação pela qual definiremos essa inclinação pedagógica – se multiculturalismo ou transculturalismo; importa mais a prática pedagógica realmente efetiva na valorização desses diversos saberes.
Frente a isso, é no berço da própria cultural educacional democrática brasileira que nascem as alternativas práticas e pedagógicas para a valorização do multiculturalismo; sugerimos que, para tornarem-se realmente efetivas, podem se apoiar no conceito de dialogicidade, cunhado por Paulo Freire, assim como encontrar reforços no conceito de tradução apresentado por Boaventura de Sousa Santos.
Dialogicidade como metodologia de inclusão multicultural
Frente aos reptos que o multiculturalismo apresenta ao campo educativo, sugerimos uma metodologia diferenciada para processo ensino-aprendizagem. Apesar de popular entre os discursos dos educadores, a dialogicidade pouco se percebe na prática docente e nos métodos pedagógicos dos dias atuais. Freire (1996, p. 41) menciona:
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito contra a ideia de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outridade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.
A hipótese freiriana assume o diálogo como instrumento fundante para desenvolvimento intelectual, moral, ético e social do educando, em que as relações do ambiente educativo devem apoiar-se na escuta sensível dos anseios do outro e, assim, promover uma revolução contra a opressão da negligencia cultural.
Na questão da educação, ou melhor, da escola, a opção pelo conteúdo programático deve dar-se no diálogo, o qual se insere em todos os segmentos sociais. O contexto social-político-econômico-cultural do educando deve ser bem considerado ao se pensar em traçar os conteúdos. Sendo assim, numa relação horizontal, a educação terá sentido, pois prolongará o projeto de cada um, encharcando-os de manifestações extraclasse e extraescolar (Almeida, 2010, p. 3).
Para Freire é necessário aprendemos a ouvir o outro; isso consiste em dar voz para quem vem à escola; esse diálogo necessita confiança entre os sujeitos e, principalmente, por parte do educador, a assunção da verdade de que não existem saberes inferiores e superiores, mas sim saberes complementares. A dialogicidade não se refere a qualquer tipo de escuta e comunicação, mas sim a um processo de interação pautada por princípios fundamentais, como a democracia, o respeito e a valorização dos diversos saberes e formas de expressão.
Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me a escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível (Freire, 1996, p. 120).
Primordialmente, a dialogicidade parte de um combate efetivo contra uma perspectiva generalizada na sociedade moderna em compreender o diferente enquanto ameaçador. Não é novo na história da humanidade certa competição entre culturas; na busca de dominância da verdade sobre os melhores estilos de vida, fomos levados a crer que as culturas competem entre si, aniquilando qualquer processo de complementaridade, assim como tantas experiências periféricas que fogem às lógicas dominantes.
Ao estudarmos de maneira minuciosa o método empregado por Freire, encontra-se esse respeito pela cultura do outro, assim como a inclinação para a complementaridade e a construção do processo educativo de maneira participativa. Um primeiro momento desse método, geralmente denominado Leitura do Mundo, produz um levantamento dos saberes culturais dos educandos; eximindo-se o educador de impor inicialmente algum conhecimento geral e externo, ocorre a escuta sensível sobre a realidade local. No segundo momento, após a eleição das principais palavras utilizadas nos relatos sobre a vida local, realiza-se o Compartilhamento do mundo lido, em que se aprofundam, por meio do debate participativo, o significado e o contexto social de cada expressão. Uma etapa interativa, dialógica e interpretativa que busca manifestar os conteúdos e sentimento latentes em cada expressão selecionada. Por fim, a terceira etapa refere-se à Problematização, em que se provoca uma releitura do universo relatado. Essa etapa promove a identificação entre a vida do educando e os conteúdos trabalhados de maneira crítica, politizada e com enfoque libertador. É o momento privilegiado da conscientização, da problematização (Almeida, 2010).
“Isso é radicalmente contrário à visão tradicional de conhecimento, que era só você enriquecer-se de conhecimento para vender-se no mercado de trabalho. Você tem um diploma melhor do que o outro; essa lógica da competição capitalista não é de Paulo Freire” (Almeida, 2010, p. 22). É nesse sentido que Santos (2007) defende uma Sociologia das ausências e das emergências, fazendo uso de inúmeras ferramentas sociologicamente estratégicas para dar visibilidade a tudo aquilo colocado à margem social pelo saber contemporâneo dominante. Entre essas ferramentas encontra-se o procedimento de tradução, que se refere à capacidade de criar inteligibilidade entre diferentes saberes e culturas, convicto da impossibilidade em cunharmos uma perspectiva geral e hegemônica de conhecimento frente a uma sociedade tão diversa.
Defendemos o procedimento de tradução como ferramenta operante dos processos dialógicos frente ao multiculturalismo do ambiente escolar; nesse movimento, o educador torna-se o principal operador da ferramenta. Seu trabalho está em evidenciar as diferenças, construir o respeito, evidenciar as complementaridades e, por fim, alinhavar elementos comuns entre as diferentes culturas presentes, isso tudo sempre partindo dos saberes e dos relatos dos próprios educandos.
É preciso trabalhar a discussão da diversidade já na infância. Se a criança não for preparada desde cedo, dificilmente romperá com os preconceitos possivelmente presentes em seu meio e tenderá a repetir os padrões de discriminação que aprender (Santos; Costa, 2003, p. 1).
Um dos grandes desafios da escola e do educador hoje é contribuir para uma educação que consinta a formação de cidadãos críticos, conscientes e atuantes. Esse é um trabalho árduo e complexo; mesmo que a cada dia o multiculturalismo ganhe espaço nos debates acadêmicos, exige uma atuação emancipadora e inclusiva diante da diversidade de valores e identidades culturais existentes no ambiente educacional. Exige do educador, especificamente, a capacidade de construir pontes inclusivas de interlocuções possíveis e viáveis entre diferentes perspectivas culturais.
Em uma sociedade cada dia mais austera com as diferenças, em que se percebem consecutivas manifestações de intolerância entre culturas distintas, a escola torna-se a salvaguarda de uma educação verdadeiramente emancipatória. Mas isso não pode ocorrer na escola que temos hoje; é necessário mudar o enfoque, reinventar a formação de professores, os currículos e as metodologias e, assim, reinventar as relações entre educadores e educandos, tudo isso em prol de um verdadeiro multiculturalismo.
Metodologia
Para verificar as formas como o multiculturalismo é trabalhado no contexto da sala de aula e quais desafios os processos de ensino-aprendizagem enfrentam frente à diversidade cultural, se fez necessário um expressivo trabalho de coleta de dados. A pesquisa foi realizada em uma turma do 5º ano de uma escola da rede municipal de Tabatinga/AM, dividindo a coleta de informações em quatro fases: análise documental, observação direta, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. A seguir conceituamos de maneira sucinta cada uma dessas fases.
A análise documental e teórica é a leitura de bibliografia a respeito de multiculturalismo e educação e os documentos de matrícula na secretaria da referida escola, além dos dados estatísticos sobre a formação da população do Brasil, especificamente do município de Tabatinga/AM.
Posteriormente, a observação buscou conhecer a realidade estudada, adentrando o universo cotidiano da escola. A observação possibilita maior familiaridade com os fatos a serem investigados e auxilia o(a) pesquisador(a) a buscar informações concretas preliminares diretamente sobre seu objeto de pesquisa.
Na terceira fase, após apreensão teórica e prática, construíram-se as entrevistas semiestruturadas a serem aplicadas junto ao educador da turma e o apoio pedagógico da escola, direcionando assim a coleta de dados aos objetivos centrais e específicos da pesquisa.
Por fim, o grupo focal colocou-se a serviço de aprofundar junto aos estudantes as percepções construídas por meio das observações e entrevistas realizadas nas etapas anteriores. Buscou criar ambiente específico de reprodução das dinâmicas internas da sala de aula frente ao multiculturalismo; nesse sentido, foram convidados a participar educandos afrodescendentes, indígenas, haitianos, brasileiros, peruanos e, entre eles, aqueles que foram observados enquanto opressores e oprimidos nas relações cotidianas, totalizando, assim, cinco participantes.
A principal característica da técnica de grupos focais reside no fato de ela trabalhar com a reflexão expressa através da “fala” dos participantes, permitindo que eles apresentem, simultaneamente, seus conceitos, impressões e concepções sobre determinado tema. Em decorrência, as interações grupais são reflexos e seguem o padrão das interações no cotidiano pesquisado (Cruz Neto; Moreira; Sucena, 2002, p. 5).
É valido destacar que a utilização dos relatos dos participantes para fins desta pesquisa foi autorizada por eles e/ou seus responsáveis mediante concordância ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e que, para fins de sigilo, seus nomes verdadeiros foram preservados. Da mesma forma, tal processo foi também registrado e aprovado pelo comitê de ética da Universidade do Estado do Amazonas.
Observações e entrevistas
A turma do 5º ano estudada conta com 28 educandos matriculados, 26 frequentes e dois desistentes. Dentre o universo de 26 educandos, 17 são meninos e 8 são meninas. Logo que entramos na escola, nos deparamos com um banner: “Transculturalidade e ensino: relação entre fronteiras e línguas, a dialética entre identidade, igualdade e diferença”.
Ao longo da entrevista, a educadora responsável pelo apoio pedagógico da escola comentou que estão trabalhando o tema da interculturalidade, uma vez que a instituição recebe educandos de diferentes culturas e países da tríplice fronteira. Segundo a secretaria da escola, 30% do total de educandos são estrangeiros e/ou indígenas.
Tendo esse universo plural, a instituição busca implantar projetos de valorização cultural, principalmente sobre a diversidade de línguas que existe dentro da escola. Com esses trabalhos, em parceria com o Ministério da Educação, educadores receberam capacitação do Programa Escolas Interculturais de Fronteiras (PEIF), que prepara profissionais da Educação para lidar com a diversidade cultural de maneira pedagógica no ambiente escolar. Esse projeto justifica o grande cartaz exposto na entrada da escola.
Durante as observações em sala de aula, verificamos a existência de conflitos entre alguns educandos, destacando-se o menino Lucas, que constantemente protagonizava ações de bullying com os colegas de outras nacionalidades ou etnias. Nota-se que, no universo de educandos, os estrangeiros e os indígenas participam da aula com certa timidez, mostram-se inseguros em manifestar dúvidas ou realizar exposições. O educador e a referente para apoio pedagógico afirmam que isso ocorre por dificuldade e consequente insegurança desses educandos no trato com a língua portuguesa.
O educador relatou ainda que os educandos de nacionalidade colombiana são aqueles que demonstram mais esforços em aprender e que seus pais são, entre os responsáveis, aqueles que acompanham com maior empenho os estudos dos filhos. Esse posicionamento individual e familiar, somado ao fato de que a cidade colombiana vizinha, Letícia, apresenta melhores sinais de qualidade de vida no imaginário dos povos que habitam a fronteira, faz com que tais educandos, mesmo com suas dificuldades de manejo com a língua portuguesa, sejam respeitados e raramente alvo de atitudes preconceituosas nas relações entre os pares.
Sobre os educandos indígenas, o educador informou que logo no começo são mais quietos e calados, ficam mais distantes dos outros, não perguntam muito sobre o conteúdo das aulas. O educador com frequência se dirige a suas carteiras para conversar e tirar dúvidas. Tanto educador quanto apoio pedagógico afirmam que tais educandos sofrem, por algumas vezes, atitudes discriminatórias, principalmente quanto à sua capacidade de compreensão dos conteúdos, sendo alvo, por parte de outros educandos, de expressões como “índio é burro, índio não entende nada”. Porém o educador afirma que esse tipo de comportamento é fácil de ser destruído e isso ocorre no momento em que as exposições e os conteúdos passam a valorizar os saberes indígenas, sua cultura e a importância desses povos para o Brasil.
De fato, parece que eles sofrem menos preconceito, ou por menos tempo, e isso por vezes parece acontecer porque os outros alunos logo se dão conta de que eles são parte importante da cultura brasileira e que, ao final das contas, aqui na tríplice fronteira amazônica todos temos descendentes indígenas (Educador de Sala de Aula do 5º ano).
As conclusões do educador coadunam-se com as observações realizadas por nós no ambiente da sala de aula: são os peruanos aqueles que mais sofrem com a discriminação e a intolerância cultural.
Como já frisamos, existe uma hierarquia populacional, social e cultural no imaginário das pessoas da tríplice fronteira, e os peruanos ocupam os patamares mais vulneráveis dessas percepções. Crianças e jovens brasileiros já chegam à escola imbuídos de um preconceito doméstico e social frente aos peruanos, reproduzindo no ambiente escolar os discursos e as práticas estereotipadas e discriminatórias protagonizadas nos mais diferentes espaços da tríplice fronteira.
É muito difícil tirarmos das crianças essa ideia que elas trazem de casa, da boca dos irmãos, dos pais, da rua, de que o peruano é menos, é sujo, é ladrão. Por vezes penso que a raiva de um monte de coisas de uma vida inteira é depositada inconscientemente naquele aluno com determinada nacionalidade (Educadora do Apoio Pedagógico).
O educador informa que faltam metodologias e materiais específicos para trabalhar a valorização da cultura peruana. Informa que atualmente a maneira mais corrente de abordar a diversidade cultural em sala de aula é pela produção textual, em que os educandos são convidados à leitura e à produção de textos em línguas diferentes. Após a produção, compartilham com os outros colegas, e o educador por sua vez traz a compreensão de termos específicos de cada língua, explicitando e valorizando a riqueza da diversidade cultural existente na sala de aula.
Apesar de efetiva para os aspectos gerais, observamos que a técnica de trabalho relatada não produz efeitos específicos no combate à discriminação da cultura peruana, deixando margens para os processos de preconceito entre determinados educandos.
Somam-se a esses trabalhos as ações desenvolvidas com as verbas do PEIF, que buscam mostrar publicamente, mediante eventos específicos, a cultura colombiana, peruana, brasileira e indígena e não indígena, suas danças, artesanatos, músicas e língua, entre outros elementos.
Mesmo assim, o educador afirma que o maior desafio educacional ainda é a linguagem, principalmente com aqueles alunos estrangeiros ou indígenas, pois os educadores não possuem formação específica para entender e se comunicar de maneira adequada com eles. Além disso, o educador menciona que “é principalmente a partir dos processos de comunicação, da fala, que desencadeiam-se os preconceitos e agressões”.
Como afirma Gadotti (1992, p. 4), a educação multicultural é uma ponte para auxiliar o educador a aprender a se comunicar com as diferenças, sendo também um dos alicerces da educação o aprender a conviver, ou seja, aprender a viver em meio às diferenças, respeitando e valorizando suas peculiaridades e contribuições no processo educativo.
Na prática, geralmente o educador faz a intervenção explicando que o educando estrangeiro não fala errado, que ele sabe, sim, falar; porém, por ele pertencer a outro país, não consegue falar o português como os brasileiros. Com aqueles educandos mais enfáticos nas perseguições aos estrangeiros, o professor diz que geralmente passa um longo trabalho para eles pesquisarem sobre o outro país e sua cultura. O educador acredita que, de alguma forma, o significativo índice de fracasso escolar entre essas populações específicas recebe influência dessa intolerância cultural.
Não é um fator principal, mas tem uma parcela de ajuda, visto que os alunos estrangeiros e indígenas têm mais dificuldade nos processos de aprendizagem, a começar pela própria integração social. Mas, antes da intolerância, acredito que isso recebe mais influência por conta da língua e dos processos de comunicação. às vezes, na aula, temos que falar espanhol ou até mesmo uma ou outra palavra em língua indígena para poder ajudá-los.
Por fim, o educador informa que a escola não tem preocupação particular em desenvolver um planejamento diferenciado para essa clientela de educandos, mas menciona com esperança as capacitações do PEIF, que buscam auxiliar os educadores na efetivação de uma educação multicultural e inclusiva.
A educadora responsável pelo Apoio Pedagógico também se refere com expectativas positivas às ações que futuramente serão desencadeadas pelo PEIF. Diz perceber de maneira muito valorosa a diversidade cultural dentro da escola; contudo, com frequência enfrenta resistência nas necessárias adaptações de metodologias e avaliações por parte dos docentes.
A tarefa principal da escola não é fazer o aluno abandonar sua cultura de origem entrando na cultura do outro, mas sim aprender e equilibrar as duas coisas, fortalecendo sua identidade cultural com convivência e respeito à diferença (Educadora de Apoio Pedagógico).
Para que isso ocorra, a educadora afirma ser necessário garantir que todos possam se expressar de maneira oral e escrita dentro dos parâmetros da sua cultura; cabe ao educador ressaltar, encorajar e destacar quando esses movimentos acontecem em sala de aula. Se, por um lado, é um erro criar espaços específicos ou atividades e momentos determinados para fazer a integração entre as diversas culturas presentes, pois isto deve ser transversal, cotidiano e microdinâmico, por outro é uma ilusão pensar que isso ocorrerá de maneira espontânea e natural; o educador deve estar imbuído da missão de incentivar o multiculturalismo nos processos educativos.
O diálogo acontece quando educadores garantem espaços para os educandos exporem suas ideias. Nas palavras de Freire (1996, p. 120), o diálogo só pode existir mediante a virtude de aprender a escutar o outro, sem isso não existe diálogo coerente. Somente por meio da escuta é que podemos compreender e entender o que o outro pensa, sente e o que ele quer fazer; sem isso não existem mudanças na educação, sem essa sensibilidade de ouvir o diferente as relações se tornam frustrantes.
Nesse sentido, a pergunta central é: quanto, de fato, os educadores são capazes de escutar seus educandos? Se o educador não escuta realmente seus educandos, é muito difícil que eles se escutem entre si também.
Perguntada sobre a existência de diferenças na metodologia com os alunos estrangeiros e indígenas, a educadora do Apoio Pedagógico reafirma as falas do educador da turma, respondendo que a metodologia é mesma para todos, não existe uma metodologia específica para cada cultura; o que muda são as atitudes, pois elas são diferentes em relação ao educando estrangeiro e indígena.
Não podemos cobrar de um aluno estrangeiro ou indígena que faça corretamente a leitura de um texto na língua portuguesa como se fosse nativo dessa língua, a mesma coisa na escrita no espanhol, por exemplo, tem letras com sons que se confundem com sons de outras letras no português. É impossível cobrar de todos educandos as mesmas eficiências e qualidades, seria uma injustiça, pois todos os educandos e principalmente os estrangeiros e indígenas fazem esforços redobrados para conseguir se adaptar a uma cultura e a uma língua que não são suas, complicado demais (Educadora do Apoio Pedagógico).
A educadora enfatiza ainda que o aluno indígena, por exemplo, tem dificuldades em ler, mas “ele tem um capricho na letra e uma habilidade para arte não vistas em outros educandos”.
Apoiados nas observações e entrevistas, afirmamos que a falta de preparo na formação básica dos docentes mostra-se entre os principais entraves para efetivações de práticas educacionais multiculturais no contexto da tríplice fronteira amazônica. De maneira geral, os professores esquivam-se desses esforços adaptativos afirmando indisponibilidade de tempo para mais trabalho, falta de valorização profissional e falta de materiais adequados. Como ouvimos no relato de uma educadora daquela escola: “a educação mostra mais trabalho e nunca mais dinheiro”.
De fato, percebemos que a falta de valorização e qualificação dos educadores e das educadoras e o sucateamento das estruturas de educação pública inibem iniciativas que poderiam tornar os processos pedagógicos mais humanos, emancipadores, inclusivos, dialógicos e multiculturais. A sobrecarga dos professores, que geralmente trabalham em duas ou três escolas distintas para conseguir compor mensalmente uma renda mínima suficiente para sobreviver, acaba por provocar a homogeneização dos processos de ensino-aprendizagem, reduzindo as experiências de valorização da multiculturalidade a projetos pontuais, ações especificas, ou ainda boa vontade e sensibilidade de alguns educadores.
Grupo focal
O grupo focal, que contou com a participação de três meninas e cinco meninos, com duração de 45 minutos, teve o intuito de observar e discutir com esses educandos suas vivências e atitudes frente à diversidade cultural em sala de aula. Para selecionar os participantes, utilizamos alguns critérios como: nascimento em outro país ou pais com nacionalidades distintas da brasileira; aqueles que têm origem indígena e aqueles que se mostraram atores ativos nas atitudes preconceituosas frente à diversidade cultural dentro de sala de aula.
Como estímulo ao grupo, colocamos no meio do círculo as bandeiras do Brasil, da Colômbia e do Peru, servindo de percepção inicial sobre os territórios, suas peculiaridades e semelhanças.
Todos os educandos que participaram do grupo focal sabiam que aquelas três imagens representavam três países diferentes e reconheciam que tinham colegas de sala que pertenciam a esses países. Todos disseram acharem “legal” a existência de tantas culturas dentro da sala de aula, mas não souberam explicar o porquê disso. Nesse ponto, chamou a atenção a resposta de Vitor: “Essa mistura é um pouco bom e um pouco ruim, porque aprendem coisas diferentes, mas esse não é o verdadeiro lugar deles”.
Refletindo sobre essa afirmação, encontramos uma arraigada ideia de nacionalidade da própria instituição escolar. Sendo reconhecida como instituição pública de um país específico, no imaginário desses educandos a escola torna-se território de alguns nativos daquele país, mas não de outros, estrangeiros.
Esse sentimento de estrangeirismo, tão frequente para aqueles que vivem na fronteira, gera certa falta de pertencimento e legitimidadede algumas populações dentro do contexto educativo. Em contrapartida, para uma educação verdadeiramente multicultural no contexto de fronteira, a escola deve ser compreendida como espaço universal, coletivo, transnacional, um lugar de todas e para todas as pessoas.
Apesar de os educandos gostarem da mistura de línguas, informando inclusive que aprendem muito com os colegas que falam espanhol, Vitor foi incisivo ao afirmar que existe discriminação com colegas de origem peruana.
Ramirez é um educando de nacionalidade peruana. Diversas vezes percebemos seus comportamentos e suas palavras munidos de ressentimento em relação aos colegas, principalmente com relação a Lucas, que agia sempre de forma preconceituosa. Quando mencionavam que não havia preconceito e aprendiam muito entre as diferentes culturas, Ramirez baixava a cabeça e lentamente a movia em sinal de negativo.
As análises decorrentes do grupo focal, somadas às entrevistas e observações, levam a crer que realmente existe preconceito frente às diferentes culturas dentro do contexto de sala de aula, porém essas discriminações não ocorrem pela distinção de línguas, como firmaram os educadores, pois os educandos colombianos falam e escrevem espanhol, assim como os peruanos, e não sofrem das mesmas agressões. A discriminação, nesse caso, parece assentar-se sobre a nacionalidade, e, partindo da percepção de que os educandos brasileiros e colombianos conhecem muito pouco a realidade e a cultura peruana, somos levados a crer que tais preconceitos derivam de estereótipos escutados e aprendidos por falas e atitudes dos adultos, dentro do ambiente familiar. Comprova-se aqui a pirâmide de hierarquia do imaginário social entre as diferentes populações constitutivas da tríplice fronteira, como relatado por Lacerda (2012).
As crianças são naturalmente abertas e inclinadas a explorar o mundo e se fascinam com as diferenças – sejam culturais, de forma ou conteúdo. Quando encontramos crianças com tamanha carga de preconceitos e diagnosticamos uma sociedade fortemente hierarquizada entre esses estratos populacionais, percebemos a verdadeira origem dos desafios que o multiculturalismo e a dialogicidade enfrentam dentro do contexto escolar. Na medida em que a escola produz e reproduz a sociedade que a cerca, torna-se improvável uma educação multicultural dentro de uma comunidade preconceituosa.
Nesse contexto, para a escola e seus educadores não basta apenas a criação de uma educação multicultural; é necessário um verdadeiro combate ao etnocentrismo e ao preconceito dentro e fora do ambiente educacional formal. Aqui a escola pode assumir papel fundamental também na formação sociocultural das famílias desses educandos.
Para o educando que sofre a discriminação, isso pode acarretar danos emocionais e sociais irreparáveis. Sentir vergonha ao assumir sua identidade cultural provoca um profundo processo de despersonificação, gerando falta de referências, negação de origens basilares e problemas relacionados a autoimagem e autoestima.
Como afirma Almeida (2010), nesses casos a multiculturalidade não trabalhada de forma adequada na escola pode, com facilidade, transitar de um problema educacional para um problema de saúde, e sempre será um problema social.
Considerações finais
Partindo da realidade da escola pública no município de Tabatinga, foi possível observar a vivencia de educandos e educadores em relação ao multiculturalismo e identificar posturas e metodologias empregadas na escola.
Ficou evidente que a escola recebe população variada, demandando um olhar cuidadoso sobre a diversidade cultural. Os relatos do educador de sala de aula e da educadora de Apoio Pedagógico enfatizam essas preocupações, incentivando principalmente a liberdade de expressão oral e escrita. Porém assumem que o trabalho ligado à multiculturalidade depende, neste momento, muito mais da sensibilidade e da iniciativa dos educadores, e nesse sentido ainda apresentam-se desafios imperativos, que esbarram em temas historicamente polêmicos no mundo da Educação, como falta de formação continuada aos educadores, valorização e remuneração adequada, superlotação da sala de aula, afastamento das famílias na construção do ambiente escolar e sucateamento das estruturas públicas de ensino, para citarmos alguns.
Mesmo assim, isso não deve inviabilizar uma postura dialógica por parte dos educadores, valorizando as diferenças culturais no cotidiano da sala de aula. Nesse sentido, apesar de mostrar-se efetivo o trabalho de valorização das línguas e das formas de expressão, parecem pouco enfáticas as ações de combate à exclusão, aos preconceitos e às discriminações culturais. Nesse caso, mostrou-se emergencial a sensibilização dos educandos sobre os aspectos positivos da cultura peruana, assim como um trabalho efetivo junto às famílias e à sociedade mais ampla a esse respeito.
A diversidade cultural deve ser vista como algo potente e positivo para a Educação; a escola, juntamente com seu corpo docente, deve procurar formas para valorizá-la e não tentar homogeneizar as pessoas. O multiculturalismo não é algo nocivo para a sociedade; representa os diferentes modos de ser, de ver e estar no mundo, provoca desacomodações e desafios e, se encarado de maneira propositiva, gera significativas possibilidades de crescimento pessoal e profissional embasadas na alteridade.
Ao final deste percurso investigativo, justamente se sobressai o desafio: como empregar o procedimento de tradução em um processo de dialogicidade em prol do multiculturalismo em um ambiente escolar fronteiriço?
Mesmo frente a um contexto por vezes hostil às transformações necessárias para um adequado trabalho referente ao multiculturalismo, os teóricos aqui ressaltados ofertam pistas de como, garantindo autonomia ao educador em sala de aula, podem ser trabalhados esses temas. Eles assinalam que o profissional da Educação deve ser um agente de tradução, garantindo espaço de manifestação e inteligibilidade entre os diferentes saberes e culturas, e é a partir de sua prática, de seu olhar, de seu acolhimento que se constroem pontes para uma educação realmente libertadora.
Aqui outro desafio se desvela e vigora, visto que perceptivelmente proceder com a tradução refere-se em certa parte a ofertar a possibilidade de um educando colocar-se no lugar do outro: como trabalhar alteridade em uma sociedade permeada por estereótipos, preconceitos e valores individualistas? Apesar de essa resposta ainda não estar evidente, algo é certo: não há saída fora do diálogo e da dialogicidade.
Para além de um método didático, a dialogicidade é uma postura, uma inclinação epistemológica de respeito e complementaridade entre os diferentes saberes e carrega o compromisso de uma educação envolvida com a realidade que a cerca, uma educação contextualizada de forma crítica.
A importância do diálogo e da dialogicidade – não há palavra que não seja práxis ou que não surja da práxis; quando pronunciamos a palavra, estamos pronunciando e transformando o mundo. Na dialogicidade estão sempre presentes as dimensões da ação e da reflexão. Ao pronunciar o mundo mostramos que humanamente existimos, se existimos, agimos e modificamos o mundo dado (Almeida, 2010).
Portanto, a escola é um local onde as diferenças apresentam-se como perspectiva de formação humana; aprender a conviver com elas é fundamental para afastar o preconceito e a exclusão social. O multiculturalismo é inerente à educação nos dias de hoje; para que seja promotor de consciência crítica e justiça social, deve apoiar-se na profundidade das práticas de dialogicidade e no procedimento de tradução. Empenhada nesses esforços, a escola poderá tornar-se agente transformador de pessoas e da própria sociedade.
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Publicado em 09 de maio de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
MACHADO, Liliane Paiva; LACERDA, Luiz Felipe. O desafio de conviver com a diferença: um estudo sobre o multiculturalismo e a escola pública na tríplice fronteira amazônica. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 17, 9 de maio de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/17/o-desafio-de-conviver-com-a-diferenca-um-estudo-sobre-o-multiculturalismo-e-a-escola-publica-na-triplice-fronteira-amazonica
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