Ensino de Língua Portuguesa: reflexão sobre a prática

João Paulo Bulhões e Mattos

Mestre em Estudos Linguísticos (FFP/UERJ), doutorando em Estudos Linguísticos (PUC-Rio)

Para aprofundar as reflexões no cerne da educação e no contexto escolar, vamos trazer as reflexões de Geraldi e de Freire para que possamos promover o ensino da argumentação além dos muros das escolas. Tratarei agora dos pressupostos de Freire que é um grande nome no pensamento sobre a educação no contexto brasileiro. O pensador, por meio de uma extensa obra, faz uma reflexão crítica centrada na educação que é pensada para dentro da escola, trazendo um novo olhar para a prática docente.

Enfatizamos que o ensino escolar deve ser significativo e pautado pelo saber compartilhado com o conhecimento dos alunos. A educação, segundo Freire (1987), não pode ser castradora, sua mensagem deve ser a da prática da liberdade. Para ele, a escola é o lugar em que a opressão e a desigualdade precisam ser superadas com uma formação crítica.

Em seu livro Pedagogia do Oprimido (1987), o autor tenta forjar com o homem, e não para o homem, a recuperação incessante de sua humanidade, portanto vemos aqui um caráter de comunhão na sua proposta de ensino. A pedagogia freiriana preza pela reflexão conjunta e para uma emancipação dos homens no sentido de formar cidadãos críticos e autônomos. Freire propõe que sua pedagogia “faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que essa pedagogia se fará e refará” (Freire, 1987, p. 20).

A Pedagogia tem por missão transformar a situação concreta de opressão por meio da conscientização a respeito da libertação, o que o autor previu não ser um processo fácil, mas necessário, pois para isso ser possível é necessário o seu reconhecimento da realidade, como uma realidade opressora, a fim de estimular o motor de sua ação libertadora. Esse reconhecimento é necessário a partir de uma inserção crítica, do contrário a transformação da realidade objetiva não será uma transformação verdadeira.

Geraldi (2013, p. 90) dialoga com Freire, segundo meu ponto de vista, na perspectiva do ensino produtivo em língua materna, quando afirma que para atingir a missão transformadora da educação, o professor deve saber seu papel como educador e saber qual é a real motivação de sua atuação docente, que não deve estar vinculada a uma aprovação por avaliações em larga escala.

O trabalho social do professor é o trabalho do sujeito que articula conhecimentos às necessidades didático-pedagógicas. Na era midiática, ele é convocado para a sua reinvenção. Se antes “era de responsabilidade do professor articular os eixos epistemológicos e das necessidades didático-pedagógicas, no mundo ‘tecnologizado’ muda-se qualitativamente a identidade e o trabalho do professor. Sua competência já não se define por saber um saber produzido por outros” (2013, p. 93).

É importante esclarecer que o “mundo tecnologizado”, a respeito do qual Geraldi trata e critica, é o mundo onde o livro didático facilita o trabalho docente e, por meio dessa ferramenta, o professor reproduz o conteúdo metalinguístico, logo normativo da língua, em detrimento do trabalho produtivo e destacado pela prática da reflexão por professores e alunos autônomos. Não há relação alguma com o uso atual que desponta como tendência na educação, fazendo-nos pensar em como o mundo midiatizado requer novas competências do professor.

Certamente, os desafios atuais são muitos, mas uma questão deve ficar clara: a pedagogia tradicional não pode perdurar na escola do século XXI. A proposta de ensino de Geraldi, com eco na proposta de Freire, nos faz refletir que só um ensino problematizador é caminho possível para uma educação plena. Esse caminho, Geraldi chama de ensino produtivo da língua.

O processo de superação da opressão, perpassa a reflexão sobre a sua condição e sobre a sua ação para mudar a realidade. Nesse processo, o reconhecimento da dependência dos oprimidos, como ponto vulnerável que produz uma ação pela reflexão, torna o indivíduo independente.

Com as propostas de Freire, a educação atua na prática emancipadora do homem, como ele afirma: “a prática pedagógica em que o método deixa de ser [...] instrumento do educador, como o qual manipula os educandos (oprimidos) porque é já a própria consciência” (Freire, 1987, p. 35). O melhor método, segundo o autor, é a exteriorização e a materialização de atos que assumam essa consciência. A educação deve ser praticada com cointencionalidade junto à realidade.

Ainda pensando a respeito desse conceito de Freire sobre a opressão, Geraldi questiona se seria a função do professor uma espécie de capataz do século XXI, alguém que controla o acesso ao material, definindo o tempo de duração das atividades e a sua quantidade. Parece-nos uma perspectiva reducionista do papel do professor e também questionada por Freire (1987). Contra essa visão, Geraldi (2013) afirma que

a tecnologia, que permitiu e permite a produção de material didático cada vez mais sofisticado e em série, mudou as condições de trabalho do professor. O material está aí: facilitou a tarefa, diminuiu a responsabilidade pela definição do conteúdo de ensino, preparou tudo- até as respostas para o manual ou guia do professor. E permitiu: elevar o número de horas-aula (com as tarefas do tempo anterior, seria impossível a um mesmo sujeito dar 40 a 60 h de aula semanais, em diferentes níveis de ensino); diminuir a remuneração (o trabalho do professor aproxima-se, em termos técnicos, cada vez mais do trabalho manual e este, como se sabe, em nossa sociedade, sempre foi mal remunerado); contratar professores independentemente de sua formação ou capacidade, etc. (Geraldi, 2013, p. 94).

Geraldi (2013) critica a atuação passiva do professor em relação ao uso irrefletido do material didático (doravante MD), evocando a necessidade de um trabalho reflexivo de atuação docente que perpassa a análise do MD.

Esse posicionamento do linguista surge, ao nosso ver, em contrapartida ao conceito de concepção bancária da educação. Freire (1987) critica a concepção bancária que observa a realidade como algo estático, tratando de assuntos alheios à experiência existencial dos educandos. A postura do professor deve ser crítica quanto à educação e os conteúdos não devem ser retalhos da realidade, desconectados da totalidade na qual o educador e o educando se encontram inseridos. As palavras não podem ser alienadas, muito menos alienantes. Freire, portanto, contesta a noção de um educador que conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo. Esse tipo de educação almeja educandos dóceis e domesticados, por meio de uma visão de educação que, segundo Freire, é distorcida e não promove o saber. Nessa concepção, o saber seria uma doação de quem se julga sábio, estando imbricado, para Freire, na ideologia da opressão.

Geraldi (2013, p. 88) questiona também o papel do professor como detentor do conhecimento e dialoga com o pensamento freiriano de educação bancária, fazendo uma crítica à postura do professor que se encaixa no sistema como produto científico acabado, não podendo ter a sua competência medida pelo interesse em se atualizar. O educador não pode servir à opressão, mas deve ser o mediador dos saberes, não como o detentor deles. Assim, seu trabalho deve pautar-se na articulação consciente do conteúdo de ensino, por meio do conhecimento de diversas áreas, como Pedagogia, Psicologia, dentre outras.

Articular um e outro eixo não é trabalho sem produto. É nesta articulação que se constrói o conteúdo de ensino. A seleção de tópicos, a sequenciação destes tópicos, a seriação não corresponde nem em termos cronológicos nem em termos de objetivos à construção dos produtos manuseados nesta nova construção; (Geraldi, 2013, p. 88-89).

Em contrapartida, o autor faz uma observação quanto ao papel do aluno e do docente no trabalho em sala de aula:

Considerando o aluno e cada um deles em particular como sujeito leitor ou como sujeito autor de seus textos, ser professor já não pode mais ser mais o exercício puro e simples da capatazia (ou exercício da gerência). É ser do aluno um interlocutor ou mediador entre o objeto de estudos (no caso, o texto) e a aprendizagem que se vai concretizando nas atividades de sala de aula. Cada um sendo um outro, portanto uma possível medida, o confronto dos pontos de vista faz da sala de aula um lugar de produção de sentidos. E esta produção não pode estar totalmente prevista pela parafernália da tecnologia didática. Os percalços da interlocução, os acontecimentos interativos, passam a comandar a reflexão que fazem, aqui e agora, na sala de aula, os sujeitos que estudam e aprendem juntos (Geraldi, 2013, p. 112).

O professor deve ser o mediador do ensino-aprendizagem. Segundo o autor, a atuação do professor não deve ser autoritária, mas uma construção de possibilidades na direção da reapropriação de ambos (professor e alunos) de seus papéis produtivos.

Para resolver essas equações, Freire (1987) propõe que a educação seja uma relação dialógica. De acordo com ele, a educação bancária serve à dominação. Assim, a educação proposta é a educação problematizadora, que almeja à libertação. Isso posto, a concepção bancária nega a dialogicidade que para Freire é a essência da educação. O viés problematizador, proposto pelo pensador, reafirma a importância do diálogo. Portanto, para que a educação atinja os educandos, ela precisa ser mediatizada pelo diálogo.

O caminho é problematizar as relações entre consciência e mundo de forma simultânea. Logo, a concepção de educação bancária se pauta em conteúdos impostos (Freire, 1987, p. 46) e, por isso, deve ser superada com a educação que desenvolve nos educandos o poder de compreensão do mundo no qual habitam, reconhecendo essa realidade como não estática, mas em constante transformação e processo. O diálogo evoca a palavra em duas dimensões: ação e reflexão.

Assim, segundo Freire (1987), “o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens” (Freire, 1987, p. 51). O pensador afirma que para o educador dialógico ou problematizador, o conteúdo programático da educação não é imposto. Esse ponto de vista corrobora com a ideia de que deve haver um processo de troca entre educador e educando, quando o professor vê a resposta do manual, mas em uma reflexão conjunta, considera a resposta do seu aluno, em um claro processo de construção do conhecimento a partir da criticidade, ocorrendo assim uma colaboração entre ambos.

Ainda sobre a questão do diálogo, Geraldi (2013, p. 179) reflete sobre a atuação docente que, segundo ele, no processo de ensino-aprendizagem, promove o diálogo da sala de aula sob intensas trocas e construções. No diálogo e em comunhão, segundo os autores, os homens se libertam sem fórmulas prontas e a aprendizagem é promovida em conjunto.

Para Geraldi (2013), aprender sobre língua e linguagem é uma reflexão metalinguística, pois a interação entre os indivíduos já exige o seu uso em ação reflexiva. Esse processo de compreensão precisa ser mediado pelo diálogo. Dentro da discussão que estamos fazendo é relevante, segundo o autor, que a linguagem não seja vista como mero código. Partindo de premissas bakhtinianas, a reflexão sobre os recursos utilizados é constante, nesse processo de interação entre os usuários da língua. Portanto, a linguagem se estabelece no uso dos sujeitos e nos processos interacionais promovidos por eles.

Geraldi (2013, p. 58) ainda afirma que o contexto social de produção das interações verbais é de fundamental importância, pois ele é o ponto de partida da produção dessas interações, por intermédio da língua, na análise de produção de sentidos.

Desde 1998, com os PCN e atualmente com a BNCC, o contexto, partindo de um texto autêntico, ganhou força no ensino de língua materna. Assim, a perspectiva de metodologia dos estudos discursivos prioriza o contexto social que influencia a linguagem. Geraldi (2013) afirma que na escola contemporânea ocorre um mecanismo de apropriação dos saberes produzidos. O autor assevera que é na escola onde esse processo ocorre, autorizando determinados sujeitos a apropriarem-se de determinados saberes. Ele cita o exemplo do médico, mas aqui na pesquisa podemos pensar nos professores de componentes curriculares, o professor de Português ou de Artes.

O pesquisador assinala que o texto sempre esteve presente no ensino, mas hoje possui forte destaque, mantendo-se presente por meio de inúmeras estratégias. Critica o foco na Gramática Normativa e em seu ensino elitista, que valoriza o aprendizado do Português literário como o mais adequado método. Com a perspectiva atual que a BNCC demonstra, há uma clara quebra nesse paradigma, levando em conta outros parâmetros linguísticos.

Geraldi (2013, p.217) provoca uma reflexão sobre a linguagem e propõe uma inversão da prática vigente no ensino, valorizando as atividades epilinguísticas (sobre a linguagem) como o ponto de partida para um olhar mais profundo sobre a língua.

Considerações finais

Os autores citados convocam os professores à construção de reflexões sobre a linguagem. Podemos concluir que a interlocução com os alunos, partindo do saber docente, promove a reflexão e a interação na sala de aula. Essa visão dialoga com a perspectiva freiriana de que o professor media os processos educativos, construindo com o aluno o conhecimento. Segundo Freire, os homens devem aprender em comunhão, articulados com o conceito proposto por Geraldi de reflexão sobre a língua contextualizada, pautada no texto, e não em um ensino tradicional de Gramática.

Esperamos, com este trabalho, contribuir para a atuação de professores nos contextos escolares com uma proposta de ensino de língua materna mais contextualizada e produtiva aos estudantes.

Referências

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1988.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC): Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEB, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 19 jun. 2019.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011a.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011b.

FREIRE, P. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2006.

FREIRE, P. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GERALDI, J. W. et al. (org.). O texto na sala de aula. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1999.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

Publicado em 16 de maio de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MATTOS, João Paulo Bulhões e. Ensino de Língua Portuguesa: reflexão sobre a prática. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 18, 16 de maio de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/18/ensino-de-lingua-portuguesa-reflexao-sobre-a-pratica

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