A educação como possibilidade de transformação e ressocialização dentro do sistema carcerário
Ana Carolina Sabino dos Santos
Mestranda em Educação (Unifal), pedagoga (Unifenas)
Aline Guimarães
Pedagoga (Unifenas)
Heloisa Teixeira da Silva
Pedagoga (Unifenas)
Sandra de Souza Alves
Doutoranda em Agricultura Sustentável (Unifenas), mestra em Sistemas de Produção na Agropecuária, graduada em Administração (Unifenas), pós-graduada em Gestão de Pessoas e Projetos Sociais (Unifei)
O exercício que propusemos nesta pesquisa tem a intenção de trazer reflexões sobre papel da Educação em unidades prisionais, tendo como premissa tornar o aprisionamento um momento de aprendizagem, que possa preparar jovens e adultos que se encontram em privação de liberdade para uma nova inserção na sociedade, buscando assim novas perspectivas no seu projeto de vida.
Assim, levando em consideração o cenário atual, em que se percebem grandes estudos em prol da inclusão social, é pertinente pensar a forma como é vista a inclusão dos processos educativos de jovens e adultos em privação de liberdade, pensando em como se dá a escolarização daqueles vistos como marginalizados e excluídos de seus direitos à Educação, considerados como a parte excluída da sociedade.
Nota-se que a educação e a escolarização para as pessoas que se encontram em privação de liberdade muitas vezes são carregadas pelo senso comum de que essas pessoas são beneficiadas por terem o ”direito à Educação”, o que na verdade é uma proposição muito desnaturalizada. Tal direito é respaldado por lei, não sendo um benefício, mas um direito social garantido a todos os cidadãos brasileiros e afirmado na Constituição Federal, que afirma que todas as pessoas têm direitos sociais ligados à “educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados” (Brasil, 1988, p. 18). O fato de estar privado de liberdade, ou seja, preso, não interfere no seu direito à educação e à continuidade dos estudos.
Diante do exposto, a presente pesquisa visa relatar de que modo as unidades prisionais seguem os processos educativos como forma de promover a formação para a reinserção social, no sentido de ressocialização pela Educação, com práticas socioeducativas para a possibilidade de uma nova visão de mundo de jovens e adultos em privação de liberdade, afirmada pela Lei de Execução Penal, que prevê ao condenado o direito à educação como preparação para o trabalho e a ressocialização.
Educação de Jovens e Adultos em contexto de privação de liberdade
Ao se analisar a Educação no contexto de privação de liberdade, temos que compreender como ela se dá, refletindo sobre os desafios e princípios que rodeiam a modalidade, tendo como público-alvo jovens e adultos, o que caracteriza a EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Quando ressaltamos os direitos que devem ser fornecidos a todos os cidadãos brasileiros, independentemente de quaisquer questões, estamos partindo do pressuposto de que é dever do Estado garantir os direitos básicos a todas as pessoas, sem exceção, tendo como meta promover políticas públicas que possam incluir as pessoas privadas de liberdade no âmbito educacional, principalmente para fins socioeducativos.
Embora os privados de liberdade tenham seu direito de ir e vir interrompido por determinado tempo, eles têm garantidos por lei seus demais direitos, sendo a educação um deles. Tal direito é respaldado na Lei nº 7.210/84, conhecida como Lei de Execuções Penais, em que se afirma a assistência educacional.
Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.
Art. 11. A assistência será:
I – material;
II – à saúde;
III – jurídica;
IV – educacional;
V – social;
VI – religiosa (Brasil, 1984, p. 5, grifo nosso).
Assim, é fato que os programas educacionais são muito importantes para reinserir na sociedade jovens e adultos em situação de privação de liberdade, fornecendo para essas pessoas uma nova perspectiva de vida, utilizando a educação como instrumento de transformação. Conforme explicita o Parecer CNE/CEB n° 2/2010:
Compreendendo a educação como um dos únicos processos capazes de transformar o potencial das pessoas em competências, capacidades e habilidades, e o educar como ato de criar espaços para que o educando, situado organicamente no mundo, empreenda a construção do seu ser em termos individuais e sociais, o espaço carcerário deve ser entendido como um espaço educativo, ambiente socioeducativo. Assim sendo, todos que atuam nestas unidades – dirigentes, técnicos e agentes – são educadores e devem estar orientados nessa condição. Todos os recursos e esforços devem convergir, com objetividade e celeridade, para o trabalho educativo (Brasil, 2010, p. 14).
Desse modo, o sistema prisional não deve ser visto como uma instituição apenas punitiva, mas como uma instância na qual os indivíduos que nela são inseridos possam ter a oportunidade de um espaço de aprendizagem para fins de agregar competências e habilidades para uma nova vida em sociedade. Onofre e Julião (2013) afirmam que a educação no sistema prisional não é apenas ensino; ela é de suma importância para os indivíduos, pois “ela reconstrói ações e comportamentos. Ela lida com pessoas dentro de um contexto singular e deve ser uma oportunidade para que as pessoas entendam causas e consequências dos atos que as levaram à prisão” (Onofre; Julião, 2013, p. 60).
Nota-se que a educação em espaços prisionais deve ser pensada de forma singular para que possa agregar uma transformação perante aqueles que foram privados de liberdade por algum ato infracional, a educação tem o papel de possibilitar o desenvolvimento do “potencial humano para o convívio harmônico em sociedade, auxiliando-os a ter uma amplitude maior na forma de enxergar o mundo e a encontrar novas formas de convívio e sustento” (Erbs; Ferreira, 2020, p. 9). É por meio da educação que os indivíduos privados de sua liberdade podem ser capazes de se transformar.
A Educação de Jovens e Adultos, no contexto ao qual estamos nos referindo ao longo deste artigo, tem perspectiva emancipatória, com o intuito capacitar os sujeitos da modalidade no sentido de que possam conduzir com autonomia os estudos para fins de formação e que assim, ao serem reinseridos na sociedade, possam seguir um trabalho digno e remunerado de maneira justa e de acordo com a lei, para que assim possam viver em cidadania (Onofre; Julião, 2013).
Podemos afirmar que a educação é uma oportunidade para que os indivíduos tenham nova perspectiva com relação à vida e, a partir do momento em que esses indivíduos tiverem contato com a educação e com ela encontrem um caminho para sua transformação, eles serão “capazes de pensar a si mesmos, capazes de intervir, de transformar, de falar do que fazem, mas também do que sonham, do que constatam, avaliam, valoram, que decidem e que rompem com o estabelecido” (Freire, 1997, p. 10).
O que é ressocialização e o que são práticas socioeducativas?
Podemos dizer que a ressocialização são maneiras de reinserir na sociedade pessoas que estão em regime prisional ao saírem da prisão, ou seja, sua reintegração social, oferecendo aos detentos uma maneira de se reinserir na vida fora da prisão. Para que possamos entender o processo de ressocialização, é indispensável conhecer o sistema carcerário, pois esse processo visa reeducar os presidiários para que eles possam se adequar às leis e condições da sociedade. Ao fazer esse processo, os detentos poderão reduzir sua pena e sair com algumas habilidades que poderão contribuir na sua renda.
O princípio da dignidade humana e do direito do cidadão começou a ser assegurado pela Constituição Federal de 1998, fazendo com que a Lei da Execução Penal retratasse, em seu Art. 10º, que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à sociedade”, consequentemente fazendo com que profissionais de várias áreas se apoiassem nessa lei, implantando de maneira mais ampla a ressocialização.
Uma grande dificuldade que se encontra para colocar em prática essa ressocialização é que a maior parte da população carcerária possui apenas a educação básica; alguns, só o ensino fundamental incompleto; isso atrasa as práticas que retomam os estudos e o aprendizado de atividades profissionalizantes. Apesar de a ressocialização ser uma prática que foi comprovada a oferecer mais benefícios do que malefícios, o governo e a sociedade propõem resistência, pois acreditam que os detentos não devem ser tratados de maneira humanizada, muitas vezes resultando em grande preconceito em relação aos detentos ao sair das prisões.
Uma boa alternativa para o problema do preconceito e para a inserção dos detentos na sociedade se achou nas medidas socioeducativas, com o objetivo de formar os detentos em diferentes modalidades, que podem ser realizadas em regime aberto ou privado. Entende-se que esse processo de formação não é uma questão individual ou íntima, mas sim um processo social, tratando os detentos de maneira humanizada.
Nesse sentido, a socioeducação
é orientada por valores de justiça, igualdade, fraternidade, etc., tendo uma meta de desenvolver várias competências que possibilitem a recuperação dos detentos em relação a violência, pobreza e marginalidade que faz com que eles sejam excluídos da sociedade (Arraz, s/d, p. 5).
Essas medidas socioeducativas são aplicadas pelo juiz com finalidades pedagógicas, sociais e psicológicas para prover a ressocialização dos detentos, levando sempre em consideração a gravidade de sua infração.
Educação em prol da liberdade e novos projetos de vida
Ao se pensar na Educação como promoção de liberdade, é válido pensar que a Educação pode transformar o indivíduo, mas o que queremos relatar aqui é que a Educação pode ser um instrumento de modificação social do indivíduo, proporcionando para ele mudança no seu projeto de vida, levando em consideração os jovens e adultos em privação de liberdade. Ao se pensar neles, ao terem sua sentença, todo e qualquer projeto de vida é eliminado, não tendo nenhuma perspectiva de vida ou de uma nova inserção na sociedade.
Adolescente, que invisível como sujeito de direitos, já privado de possibilidades de liberdade, uma vez em conflito com a lei, torna-se visível como “infrator”,“delinquente”, “bandido”, conquistando assim sua visibilidade perante a família, a sociedade e o Estado. Torna-se, com isso, alvo da repressão estatal, “[...] expressão do clamor punitivo que grassa na sociedade brasileira por maior repressão, mais prisões e penas mais rigorosas” (Sales, 2007, p. 65).
Muito antes de serem “apreendidos”, passam por diversas situações marcadas de privação; como cita Silva (2019), jovens e adultos que cometem atos infracionais e estão em conflito com a lei, muitos antes de serem sentenciados, já tinham uma “privação de liberdade”; as privações vividas não se resumem a privações de cunho socioeconômico, mas as privações em relação ao afeto, à saúde e à educação.
Com isso, não se tem uma perspectiva de um projeto de vida após o cárcere; segundo Silveira et al. (2015, p. 63), ”um projeto de futuro reúne um conjunto de anseios que se pretende realizar por meio de etapas a serem ultrapassadas rumo a um ideal pretendido, o que permite a organização e a orientação em direção à sua realização no futuro”.
Esses aspectos não são pensados e refletidos para quem está em cárcere, e é pra isso que a educação vem com um impulso para a transformação, como um gatilho para se ter um novo olhar perante o futuro, faz-se pensar o papel da educação como prática de liberdade, tendo como princípio uma educação que contribua para a restauração da autoestima e para a reintegração do indivíduo à sociedade.
O que se necessita numa educação para a liberdade é pensar que o indivíduo que cometeu um crime não deixa de ser humano pelo ato infracional, mas sim um indivíduo que está ali no cárcere para a reeducação, para possivelmente um nova vida em sociedade, necessitando do resgate da dignidade e dos valores humanos; é a educação um instrumento para esse resgate. Isso nos leva a uma reflexão do grande educador Paulo Freire: “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (1987, p. 78). A importância do trabalho educativo nas prisões é algo para além dos conteúdos científicos, mas uma forma de promover ações de reflexão para uma transformação do indivíduo que possa
despertar, na pessoa do reeducando, a importância da sua liberdade e, consequentemente, motivá-lo para o processo de mudanças. Conscientizá-lo da necessidade de uma ressocialização para a sua inserção na sociedade, oferecendo oportunidade para o mesmo desenvolver seu senso crítico, refletindo sobre as necessidades a serem supridas, levando-o assim ao conhecimento pessoal, apesar da influência do meio. Direcionar a reintegração e a ressocialização em busca de novos rumos (Guimarães, 2008, p. 61).
Contudo, é eficaz ter uma educação que possa responder a todas as necessidades e anseios, no sentido de promover propostas adequadas, levando em consideração a vida passada do indivíduo; a maioria dos sujeitos tem marcada em sua trajetória uma vida de exclusão, não tendo acesso aos bens materiais, o que os tornou marginalizados e distanciados de uma vida escolar (Onofre, 2005).
Ainda nessa discussão, Onofre (2015, p. 248) enfatiza que “não se trata de desenvolver uma educação específica para o contexto prisional, mas também não pode ser a mesma educação que já os excluiu”. O que Onofre ressalta é que, para jovens que estão em privação de liberdade, a educação que deve ser ofertada para eles não deve ser a mesma que outrora os excluiu e os marginalizou.
Sendo assim, faz se necessária uma educação pautada em respeitar as singularidades e diversidades, que possa “motivar essas pessoas a ponto de ver na educação uma possibilidade de emancipação ainda na condição de encarceradas” (Pereira, 2011, p. 45).
Considerações finais
Diante de tudo que foi exposto, concluímos que a educação promovida em contextos de privação de liberdade deve promover práticas ligadas à ressocialização para que os indivíduos que por determinado momento ou tempo estarão privados de sua liberdade possam se reeducar, no sentido de ter novos projetos e propostas de vida, que não os levem para a vida com acometimento de atos infracionais, mas que a educação possa ser vista como forma de liberdade para uma nova inserção na sociedade, buscando assim novas perspectivas no projeto de vida.
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Publicado em 23 de maio de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
SANTOS, Ana Carolina Sabino dos; GUIMARÃES, Aline; SILVA, Heloisa Teixeira da; ALVES, Sandra de Souza. A educação como possibilidade de transformação e ressocialização dentro do sistema carcerário. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 19, 23 de maio de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/16/a-educacao-como-possibilidade-de-transformacao-e-ressocializacao-dentro-do-sistema-carcerario
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Deixe seu comentárioSou grato a educação, pois me libertou do mundo do crime ao qual pertenci por 22 anos, dentre esses anos estive na condição de detento por 9 anos. Hoje, sou formado em Letras Português, atuo em escolas estaduais no estado do Paraná.
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