Trabalho e educação: uma análise dos Boletins de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Gleison da Silva

Professor de História da rede estadual do Paraná, mestrando em Educação (Unicentro), membro do grupo de pesquisa Campo, Movimentos Sociais e Educação do Campo

Marcos Gehrke

Doutor em Educação (UFPR), professor do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicentro, membro do grupo de pesquisa Campo, Movimentos Sociais e Educação do Campo, coordenador do Curso de Pedagogia para Povos Indígenas e do curso de Pedagogia: Docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental no contexto do campo

Debater trabalho e educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é resultado da discussão realizada na dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), na linha das políticas educacionais. Como um catalisador, neste trabalho aproximamos as duas categorias para extraí-las de suas contradições e mediações.

Durante o processo de luta pela reforma agrária popular, o MST (2020) se coloca na posição de enfrentamento ao Estado, entendendo que o direito à Educação é um elemento central nessa luta. As discussões levaram à compreensão de que a educação e a escola capitalista em sua forma escolar não serviam para formação humana da classe trabalhadora do campo (Caldart, 2012); logo, se coloca a necessidade de transformar a escola. Frente a isso, desde sua origem na década de 1980 (Stedile, 2005), o MST vem construindo a Pedagogia do Movimento, como sistematiza Caldart (2000). Nessa Pedagogia, forjou a escola do acampamento, depois as escolas públicas de assentamento e a experiência maior de resistência: a Escola Itinerante em acampamentos.

Os dados já produzidos, e que aqui socializamos, analisam a categoria trabalho e educação de um dos grupos de documentos produzidos pelo Movimento nessa trajetória, os Boletins de Educação (1992-2020).

No processo investigativo, realizamos o levantamento dos documentos produzidos pelo setor de Educação do MST e que se configuram como a biblioteca do setor, conforme sistematiza Gehrke (2010).  Os documentos são diversos, produzidos entre 1992 e 2020, agrupados em seis categorias: 15 documentos denominados Boletins da Educação (1992-2020); 14 Cadernos de Educação (1992-2017); sete obras na Coleção Fazendo História (1995-2001);  cinco materiais na Coleção Fazendo Escola (1998-2011); dez documentos Cadernos do Concurso Nacional de Redação e Desenho (1999-2006); e a Coleção pra Soletrar a Liberdade (2000-2001), com dois documentos, totalizando 52 documentos que tratam especificamente de Educação.

Do ponto de vista metodológico, assumimos a concepção do trabalho como princípio educativo, que valoriza a experiência dos sujeitos, colocando-os na perspectiva de superação da contradição entre trabalho manual e trabalho intelectual, que é própria do modo de organização da produção capitalista (Caldart, 2004), aspectos analisados nos documentos.

Dessa forma, a análise dos documentos possibilita afirmar que o Movimento espera que a escola usufrua da produção bibliográfica, na contradição da intenção que o acervo produzido pode provocar. O movimento de escrita analisado evidencia que escrever e restringir o escrito ao caderno e à escola pode e precisa ser superado, ao assumir, na escola, um projeto de leitura e escrita em que escrever é uma forma de lutar é extremamente necessário. Essa luta envolve estudantes, professores, a comunidade, o movimento social e a escola, todos produzindo e, por meio da leitura, trazendo a possibilidade de forjar a biblioteca viva, centro de informação, cultura, itinerância. Escrever, ler e compor a biblioteca como forma de luta.

No artigo descrevemos os quinze Boletins publicados e, na sequência, analisamos as categorias teóricas de trabalho e educação presentes neles. Por fim, lançamos as considerações finais e as referências utilizadas.

Os Boletins de Educação do Movimento

Após a organização e o ordenamento dos Boletins de Educação, passamos a apresentá-los de forma descritiva expondo seu conteúdo para em seguida identificar as concepções de trabalho e educação presente neles. O Quadro 1 reúne os 15 Boletins de Educação produzidos entre 1992 e 2020.

Quadro 1: Boletins da Educação

MST. Como deve ser a escola de assentamento. Boletins da Educação, nº 01. São Paulo, 1992.

MST. Como trabalhar com a mística do MST com as crianças. Boletins da Educação, nº 02. São Paulo, 1993.

MST. Como trabalhar a comunicação nos assentamentos e acampamentos. Boletins da Educação, nº 03. São Paulo, 1993.

MST. Escola, trabalho e cooperação. Boletins da Educação, nº 04. São Paulo, 1994.

MST. O trabalho e a coletividade na educação. Boletins da Educação, nº 05. São Paulo, 1995.

MST. O desenvolvimento da educação em Cuba. Boletins da Educação, nº 06. São Paulo, 1995.

MST. Educação infantil: construindo uma nova criança. Boletins da Educação, nº 07. São Paulo, 1997.

MST. Pedagogia do Movimento Sem Terra: acompanhamento à escola. Boletins da Educação, nº 08. São Paulo, 2001.

MST. Poética Brasileira: coleção de poetas e poesias do Brasil. Boletins da Educação, nº 10. São Paulo, 2005.

MST. Educação Básica de nível médio nas áreas da reforma agrária. Boletim da Educação, nº 11. São Paulo, 2006.

MST. II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária: II Enera. Boletim da Educação, nº 12. São Paulo, 2014.

MST. Alimentação saudável: um direito de todos! Boletim da Educação, nº 13. São Paulo, 2015.

MST. Literatura, sociedade e formação humana. Boletim da Educação, nº 14. São Paulo, 2018.

MST. Paulo Freire e a pedagogia do trabalho popular. Boletim da Educação, nº 15. São Paulo, 2020.

Fonte: Gehrke, 2014, atualizado por Silva e Nascimento, 2020.

O Boletim nº 1, produzido pelo coletivo nacional do Setor de Educação, Como deve ser a escola de assentamento, publicado em 1992, com 18 páginas, lança uma nova forma de comunicação interna no MST. Com as palavras de ordem na capa: “Ocupar – Resistir – Produzir" também na Educação. Os escritos buscam apresentar ao leitor uma nova proposta de escola, construída da cooperação do Setor de Educação com os outros setores do movimento. O documento tem dois objetivos principais: contribuir na discussão da proposta de Escola de Acampamento e Assentamento e subsidiar diretamente o trabalho dos professores em cada escola.

O Boletim nº 2, Como trabalhar com a mística do MST com as crianças, publicado em1993, tem como objetivo trabalhar o hino, a bandeira, as palavras de ordem, as canções, os gestos, entre outros exemplos, no sentido de cultivar e reinventar os símbolos da luta, da arte e da história do MST. É um documento que, como o primeiro boletim, possui 18 páginas, organizado em três partes: Hino da Educação do MST: nova forma de aprendizado; Bandeira e Hino Nacional: símbolos oficiais do MST; e Palavras de ordem, tendo como considerações finais a transcrição da palestra de Madalena Freire, filha de Paulo Freire, aos professores municipais de Porto Alegre/RS em 1992. Com isso, percebemos a importância desse documento para afirmar a posição de desenvolver a mística do trabalho, do estudo e da cooperação, como cultivar e reinventar os símbolos, a arte e a história do movimento.

O Boletim nº 3, Como trabalhar a comunicação nos assentamentos e acampamentos, publicado em1993 pelo Setor de Educação, tem como ideia central apresentar algumas sugestões de como criar instrumentos práticos e simples para melhorar a comunicação interna no movimento. Como sugestão, são propostos: o Jornal Mural e o Jornal do Assentamento/Acampamento. É um documento de oito páginas, organizado de forma didática, contribuindo para apresentar aos educadores como elaborar um jornal mural, como preparar os materiais necessários para sua produção, seus objetivos ao público e a elaboração dos artigos que fazem parte do jornal. Dessa maneira, é ressaltada a importância de uma equipe destinada ao trabalho da comunicação popular do movimento. Consideramos grande a relevância desse documento, por tratar da formação de opinião pelo e para o MST.

No Boletim nº 4, Escola trabalho e cooperação, publicado em 1994 pelo Setor de Educação, observamos uma mudança estrutural do texto e da sua capa; os três primeiros mantiveram as palavras de ordem e fonte das letras, porém, a partir desse documento temos mudanças significativas. É o primeiro documento da coleção com a organização de um sumário, que conta com introdução e o desenvolvimento dividido em quatro partes: O trabalho educa; A escola pode educar pelo trabalho; O MST e a escola do trabalho; e A escola do trabalho: cooperação e democracia. Por fim, observamos um referencial de apoio que sugere leituras complementares. Um documento com 20 páginas.

O Boletim nº 5, O trabalho e a coletividade na educação, publicado em 1995 pelo Setor de Educação do MST, é uma tradução dos escritos de Anton Semionovitch Makarenko, que relata sua experiência na Colônia Gorki e as contribuições para a educação socialista e a reeducação de jovens marginalizados no antigo regime que antecedeu a Revolução de 1917. São apresentados os escritos do tema A educação pelo trabalho, relações, estilo e tom na coletividade. É um documento com 19 páginas, tendo na última uma menção ao ano de 1995, quando é realizado o 3º Congresso Nacional do MST, com as palavras de ordem: “Reforma Agrária: uma luta de todos”. Consideramos relevante o documento, por trazer a categoria trabalho como pilar na formação da educação socialista pós-revolução, que inspirou a formação dos sujeitos Sem Terra.

O Boletim nº 6, O desenvolvimento da educação em Cuba, publicado também em 1995, tem como objetivo expor a tradução e transcrição da palestra de Luis Ignacio Gómez Gutiérrez, ministro da Educação da República de Cuba, no Congresso Internacional de Pedagogia naquele ano. O autor busca demonstrar os avanços da educação em Cuba desde a Revolução de 1959. O documento está dividido em três partes. A primeira é A história do povo cubano – nossa história, com os subtítulos: Luta contra o colonialismo; A revolução; e O bloqueio do imperialismo. A segunda parte é O mundo capitalista: aumento dos excluídos. E a terceira parte intitula-se Nossa política educacional.

O Boletim nº 7 é Educação infantil: construindo uma nova criança; é de 1997 e traz na capa uma foto de Sebastião Salgado que retrata três estudantes enfileirados em sala de aula, sentados nas carteiras de pés descalços; a menina que aparece na primeira carteira, com olhar profundo, olha diretamente para foto. O documento tem 37 páginas, e é dividido em três subtítulos: a apresentação, que destaca dois fatores principais da sua realização: o resultado do esforço coletivo do movimento em sua elaboração no debate sobre Educação infantil e a continuidade das publicações dos boletins. O segundo fator é lançar o desafio da Educação infantil para toda a organização, agarrando o desafio de transformar em ação concreta os direitos dos “pequenos”.

O Boletim nº 8, Pedagogia do Movimento Sem Terra - acompanhamentos às escolas, publicado em 2001 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como intenção central ser um documento que avance nas discussões sobre as escolas, entendendo-as como lugares de formação humana, de compromisso com a educação da personalidade de novos e antigos militantes que estão voltados para as causas do povo. É um documento com 63 páginas, que demonstra um significativo avanço nas discussões sobre educação no Setor de Educação do movimento. Nesse documento, é lançado o problema: “que ser humano estamos ajudando a formar através de nossas práticas e das escolas que fazemos no dia a dia de nossas intensas atividades no MST?”.

O Boletim nº 9, Educação no MST – Balanço de 20 anos, publicado em 2004 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como finalidade traçar o percurso educacional do MST dentro deste período histórico, ou seja, nesse recorte temporal. O documento conta com 65 páginas, em que são apresentadas as características do Setor de Educação, sua construção e as dificuldades enfrentadas. Assinala a concepção de educação e escola, as principais linhas de ação, a bandeira de luta e a relação com as políticas públicas. O documento também discute o conceito de Pedagogia da Terra e Educação do Campo. Por fim, traz duas entrevistas, com Gaudêncio Frigotto e João Pedro Stédile, discutindo a Educação do Campo como impulsionadora de mudanças sociais e a história do MST como aprendizado vivo.

O Boletim nº 10, Poética brasileira, publicado em 2005 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, aborda poetas e poesias do Brasil. O documento tem 58 páginas, destacando a autoria e a nacionalidade de autores como Paulo Leminski, Cora Coralina e Cecília Meireles. O documento é dividido em duas seções: Adultos e Crianças. Sua finalidade é proporcionar acesso à cultura nacional por meio da poesia; num país em que nem todas as pessoas têm acesso aos livros, o movimento mantém sua intenção solidária, sem a comercialização do material produzido.

O Boletim nº 11, Educação Básica de nível médio nas áreas de reforma agrária, publicado em 2006 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como finalidade construir definições do movimento sobre a Educação Básica e envolver a juventude nessa luta. Esse material traz uma coletânea de textos e se divide em dois blocos, totalizando 143 páginas. O primeiro bloco apresenta o debate teórico específico, o qual busca fundamentar, de forma científica e técnica, a relação entre trabalho e educação. Além disso, procura discutir a concepção de escola unitária e de politécnica. Nesse bloco teórico, são apresentados sete artigos de diferentes autores para construir a argumentação. O segundo bloco está centrado em um contexto de debate. Nele é proposto discutir o modelo agrícola neoliberal do Brasil, a Educação Básica para os povos do campo e a Pedagogia do Movimento.

O Boletim nº 12, II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – II ENERA, publicado em 2014 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como objetivo apresentar a trajetória histórica da educação no/do MST. O documento contém 144 páginas e está dividido em duas partes: a primeira com textos preparatórios para o encontro que buscam apresentar um balanço dos 30 anos da educação no MST e o Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária. A segunda parte discute textos por eixos temáticos, citando o Programa Agrário do MST, o Fórum Nacional de Educação do Campo e os Desafios de Formação da Juventude, entre outros temas relacionados à Educação e à Reforma Agrária. Para os autores do documento, trata-se de um balanço político e organizativo, de luta e de olhar para a frente, analisando os desafios no contexto mais amplo das lutas da classe trabalhadora.

O Boletim nº 13, intitulado Alimentação saudável: um direito de todos!, é uma produção em parceria do Setor de Saúde e do Setor de Educação do MST. Publicado em 2015, traz conceitos e orientações em torno de alimentação saudável, uma preocupação do movimento desde a produção até o consumo e a comercialização de alimentos.

O Boletim nº 14, Literatura, sociedade e formação humana, publicado em 2018, traz um conjunto de textos que trata dos aspectos da formação humana no âmbito das artes e da estética do movimento, envolvendo seu Setor de Educação e de Cultura.

O Boletim nº 15, Paulo Freire e a Pedagogia do Trabalho, publicado em 2020 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como intenção central ser um documento de estudo para os educadores em comemoração ao centenário de nascimento de Paulo Freire e contribuir na Jornada Nacional de Formação e Trabalho de Base, lançada pelo movimento em 2019. É um documento de 158 páginas, organizado com três partes: Sobre Paulo Freire; Textos de Paulo Freire; e Diálogo com Paulo Freire desde práticas. Consideramos que esse documento reafirma, em seu título, a posição do movimento quanto ao seu compromisso histórico com a obra de Paulo Freire, aqui especialmente assumindo a concepção de pedagogia e o trabalho popular desde a posição freiriana que firmou raízes na Pedagogia do Movimento (Caldart, 2000).

Demarcando a concepção de trabalho e educação nos documentos

Apresentados os 15 Boletins da Educação do MST de forma descritiva, verificamos que os documentos: 1 (Como deve ser uma Escola de Assentamento); 4 (Escola, Trabalho e Cooperação); e o 15 (Paulo Freire e a pedagogia do trabalho) tiveram maior aproximação com o objetivo proposto no artigo, que está centrado na análise das categorias teóricas trabalho e educação. Buscamos por meio desses documentos demarcar o itinerário teórico-metodológico de forma a organizar alguns dos pontos levantados quanto às concepções de trabalho e educação dadas pelo Movimento.

Ao delinear a sua concepção de educação, o MST confirma que entende a educação e a luta como prioridades na formação humana emancipadora. Leva em consideração a intencionalidade educativa, pois assume como necessária a construção de uma escola que esteja ligada à realidade das pessoas, que torne a luta social, o trabalho socialmente produtivo e a organização coletiva como matrizes organizadoras do ambiente educativo escolar. Nesse caso, não pode ser entendido como educativo apenas o dito, mas o visto, o vivido, o sentido, o participado e o produzido (MST, 2005, p. 213).

No Boletim nº 1, é colocada em pauta a escola que temos (capitalista), as escolas que queremos nos assentamentos/acampamentos. Isso coloca em cheque a escola capitalista que forma para o mercado de trabalho alienado, a “educação bancária”, diferente da escola que queremos de assentamentos/acampamentos que forma o trabalhador emancipado, com uma proposta de “educação problematizadora''.

Nesses escritos é possível perceber que o trabalho já é considerado um dos pilares fundamentais das escolas de acampamento/assentamento, juntamente com o conhecimento científico e o amor pela luta. Anunciava-se como necessário que as crianças vivessem experiências que envolvessem o trabalho com a agricultura e que elas pudessem estar relacionadas com a produção real que se desenvolvia. Considerava-se essencial que as crianças começassem desde pequenas a vivenciar o processo produtivo, pois a maioria delas já desenvolvia trabalhos, porém sem que eles tivessem planejamento e intencionalidade pedagógica e acabavam por não alcançar os resultados que poderiam ser alcançados.

Podemos perceber que desde o início da elaboração teórica e prática da Proposta de Educação do MST já esteve presente a necessidade de lidar com o trabalho, considerado um dos pilares. Fica demarcado que não é qualquer trabalho, mas aquele que se relaciona à produção real desenvolvida pela comunidade, inserir os estudantes em situações de trabalho – não para que se tornem mão de obra barata disponível ao capitalismo, mas que por essa atividade humana criadora se desenvolvam plenamente. A percepção sobre o trabalho trazida é ampla: inserir em situações de trabalho para que aprendam e se desenvolvam por elas, ao ir fazendo, ao refletir sobre o processo, ao recolocar, reestruturar e não permitir que se torne algo mecânico ou que ações naturalizadas pelo sistema capitalista sejam reproduzidas. A realização de experiências com o trabalho não pode se configurar de forma artificial, simples, mas realmente provocar transformações na vida da comunidade; não é para ser mecânico, “cumprir tabela”, é para ser tão educativo, formativo a ponto de não só desenvolver os que diretamente se relacionam a ele, mas os que se conectam também pela vivência na localidade.

Uma questão central que não pode ser abandonada ao lidarmos com o trabalho é a reflexão constante sobre as ações. Vivemos em uma sociedade com sistema econômico capitalista, que tem o trabalho em sua proposta educativa também; porém, visto de outra forma, com objetivos que não se aproximam dos propostos pelo MST. Realizar ações sem intencionalidade, planejamento, avaliação sobre o processo pode nos levar a contribuir com a formação de trabalhadores pretendida pela classe dominante. Há ações que reproduzimos sem ao menos perceber, esse desvelamento é essencial e a vigilância sobre ele também. De nada adianta assumirmos uma teoria que tem o trabalho como princípio educativo se, ao materializar as ações, permitimos que traços, mecanismos próprios do capitalismo sejam reproduzidos. Esse exercício não é fácil, exige olhar para nós mesmos, entender o processo de dominação capitalista e como fomos e somos moldados dentro dele, tendo percebido de que forma se materializam em nossas ações, transformá-las.

Para demarcarmos parte da atual compreensão do MST sobre o trabalho e mostrarmos o quanto foram se ampliando as considerações trazidas sobre ele, mas sem abandonar elementos firmados desde o início, trazemos na sequência escritos de Caldart (2015). A autora considera que o trabalho está entre as matrizes formativas. Para elas serem constituídas, buscaram na vivência dos Sem Terra, naquilo que provoca transformações em suas vidas, situações que os formam como seres humanos e mexem com seu jeito de ser, mas não somente na vida deles, mas na de qualquer ser humano, e essas situações com dimensão educativa passaram a ser consideradas elemento essencial da proposta educativa do MST. “Destacam-se como atividades humanas específicas ou como matrizes formadoras fundamentais: o trabalho, a luta social, a organização coletiva, a cultura e a história” (Caldart, 2015, p. 124, grifo da autora). Como matriz primeira da constituição do ser humano, é apontado o trabalho, que nesse sentido é considerado

atividade humana criadora, a própria vida humana na sua relação com a natureza, na construção do mundo e de si mesma. Trabalho que produz cultura e produz também a classe trabalhadora capaz de se organizar e lutar pelo seu direito ao trabalho e pela superação das condições de alienação que historicamente o caracterizam, participando assim do movimento da história. Afirmar o trabalho como princípio educativo é, neste sentido amplo, afirmar a própria vida como princípio educativo. [...] Mas no plano histórico concreto, a práxis social acontece em diferentes especificações dessa atividade vital criadora, que se completam na formação dos seres humanos concretos, encarnando as contradições da forma de sociedade onde se objetivam. É assim que, na sociedade atual, reafirmamos o sentido positivo do trabalho ao mesmo tempo que lutamos contra o sentido negativo do trabalho assalariado/explorado/alienado que essa atividade humana específica assume nas relações sociais capitalistas (Caldart, 2015, p. 123-124, grifos da autora).

A escola precisa articular essas matrizes de forma que atenda os objetivos formativos, e o ambiente escolar necessita ser transformado para que esteja em consonância com cada uma delas. O ensino não pode estar separado delas. No que se refere em específico ao trabalho, ele é essencial no sentido de ser por ele que o ser humano constitui sua vida. Precisamos que a apropriação dos conteúdos seja convertida em conhecimento e que este esteja relacionado à vida para que seja pleno e possibilite realizar transformações. 

O Boletim nº 4, Escola Trabalho e Cooperação, traz na segunda página uma citação de Marx que norteia a ideia central do documento sobre educação: “Gratuita para todas as crianças. E unificação do ensino com a produção material através do trabalho!” (Marx, Manifesto Comunista). Na primeira linha da introdução do documento, compreendemos o propósito da Escola do MST relacionada aos escritos de Marx sobre educação e trabalho: “É preciso juntar o estudo com o trabalho. É preciso preparar as crianças e os jovens para a cooperação. Educá-los dentro do mundo da produção”. Complementando a defesa da relação entre trabalho e educação e da cooperação.

Uma das grandes referências teóricas do MST ao tratar do trabalho é Marx (1867), que o compreende como processo em que a natureza e o ser humano participam impulsionando, regulando e controlando com sua ação toda a relação material com a natureza, tornando-a uma de suas forças. O ser humano apropria-se dos recursos da natureza e faz com que se tornem úteis à sua vida. Essa atuação sobre a natureza faz com que ela se modifique e no processo o ser humano também é modificado, conseguindo dominar as forças naturais. O trabalho é construtor do ser humano, mas ele não é descolado do contexto material em que o processo ocorre e as relações que se dão atualmente no mundo do trabalho estão imersas no sistema capitalista, que submete a dimensão educativa do trabalho a interesses do grupo que tem controle sobre o restante da sociedade.

Historicamente, e na atualidade com ainda mais força, a classe dominante projeta e executa ações direcionadas para o trabalho. Sabe de seu potencial formativo e o utiliza de forma que atenda a seus interesses. A intenção é preparar os seres humanos de acordo com posições específicas. Para aqueles que melhor se destacarem, cargos mais promissores; para os demais, mão de obra. A própria estrutura da escola é feita de forma a ir filtrando, afunilando cada um e sua respectiva função. Dentre as diversas instituições da sociedade capitalista, está a escola que, conforme defende Frigotto (2010), se articula aos interesses do capitalismo, se inserindo em seu movimento geral, mesmo que de forma contraditória e com distintas mediações. Ele defende a tese de que

a relação que a teoria do capital humano busca estabelecer entre educação e desenvolvimento, educação e renda é efetivamente um truque que mais esconde que revela, e que nesse seu escondimento exerce uma parcela de uma produtividade específica. [...] A educação escolar em geral não tem necessariamente um vínculo direto com a produção capitalista; ao contrário, esse vínculo direto tende a ser cada vez mais tênue, em face do movimento geral do capital de submeter de modo não apenas formal, mas real, o trabalhador produtivo às leis do capital. A história do capitalismo, nesse sentido, é um esforço crescente de degradação do trabalho e do trabalhador (Frigotto, 2010, p. 34).

O autor afirma ainda que, ao analisarmos a prática escolar, olhando para o trabalho mental, “intelectual”, perceberemos que ela contribui para a reprodução da força de trabalho dos indivíduos que supervisionam, planejam, administram na empresa capitalista e em nome do capital, podendo dessa forma afirmar que a escola é necessária para formar a força de trabalho improdutiva.

Com as análises estabelecidas pelo autor, é possível afirmar que há uma relação intensa entre escola e trabalho, e ela é uma das instituições criadas e mantidas pelo capital para garantir que seu interesse na formação humana de cada sujeito se consolide. Segundo Pistrak (2009, p. 111), na pedagogia socialista soviética,

a escola sempre foi, e não poderia deixar de ser, reflexo do seu século, sempre respondeu àquelas exigências as quais um determinado regime político-social colocou para ela e, se ela não respondeu ao regime do seu tempo, então não pôde ficar viva. Nos tempos pré-revolucionários, a escola, naturalmente, foi um instrumento nas mãos das classes dominantes. Não houve interesse destas em esclarecer a essência de classe da escola; ao contrário, colocaram para si o objetivo de ocultar esta essência, de evitar a preparação da destruição desse regime com sua própria ajuda. Uma das tarefas básicas da revolução social consiste no esclarecimento desta essência de classe (Pistrak, 2009, p. 111).

Desse modo, o trabalho ocupa lugar essencial dentro da realidade concreta, podendo, a partir dele, defini-la como “luta pelas novas formas sociais de trabalho”. Dentro disso, o trabalho se coloca no centro do processo, e assim deve ser considerado também na escola: “ele entra na escola como elemento social e social-formativo, ou seja, une ao redor de si todo processo educativo-formativo” (Pistrak, 2009, p. 127).

Entretanto, o autor ressalta que a escola pode ser um instrumento de mediação na negação das relações capitalistas de produção e mais: pode ser instrumento de auxílio na formulação de condições concretas para superar as relações que separam capital e trabalho, trabalho manual e intelectual, mundo da escola e mundo do trabalho. Da mesma forma, o MST entende a educação não apenas para o trabalho, mas para a classe trabalhadora. A escola que não é por natureza capitalista pode se articular com interesses contrários ao desse sistema econômico, pois não é orgânica, inerente a esse modo de produção.

Considerações finais

Avaliar é retomar objetivos do estudo; neste caso, foi reunir e ordenar os Boletins de Educação do Setor de Educação do MST e, neles, identificar as concepções e práticas de trabalho e educação.

A análise empreendida permite concluir que os documentos evidenciaram que o Movimento trabalha com um conjunto de gêneros de discurso; que alguns educadores chamam de tipologias textuais, como conceitos, definições, canções, poemas, orientações, objetivos, princípios e depoimentos, entre tantos outros. Diante dessa realidade, consideramos necessária a formação de educadores no sentido da compreensão dessa concepção e prática, para que ela possa ser intencionada e incorporada à prática da escola e da educação.

Quando são analisados os documentos, é possível considerar que, para o MST, a formação de um sujeito alfabetizado, que escreve e lê é, na práxis, a articulação possível e necessária entre falar, pensar, ler e escrever para agir no mundo. É ocupar a terra, ocupar-se da escrita e por ela ser ocupado; assim, alfabetiza e é alfabetizado o Sem Terra que agora é capaz de ler o texto impresso. Verificamos que esse processo mistura luta, sonhos, prazer, conquistas, vida e morte, gerando sentido para produção da biblioteca, lugar ordenado para ser desordenado pelo leitor crítico.

Verificamos que o conjunto de quinze documentos relaciona trabalho e educação, seja pelas orientações para a educação e a escola, a poética e as questões de luta, entre outros. Mas três deles trazem em seu título as aproximações entre educação e trabalho, aspecto que definiu a análise a partir desse recorte de documentos. Consideramos, ainda, que a biblioteca do setor de educação precisa colaborar no refazer a biblioteca escolar da escola do acampamento e do assentamento, para que educadores escolares possam desordenar e ordenar as práticas pedagógicas. Este, quem sabe, é o maior desafio.

Destacamos, por fim, que a concepção de educação e trabalho se pauta no pensamento marxista, na experiência socialista soviética, na produção brasileira da educação popular de Freire. Essas referências fundamentam o Movimento na produção da sua pedagogia, a pedagogia do Movimento. Ela, na atualidade, traz contribuições significativas para o projeto de Educação do Campo em curso no Brasil.

Referências

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FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.

GEHRKE, Marcos. Escrever para continuar escrevendo: as práticas de escrita da Escola Itinerante do MST. Dissertação (Mestrado em Eeducação), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.

MARX, K. O capital. Vol. 1. Coimbra: Centelha/Promoção do Livro, 1867. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapitalv1/vol1cap07.htm. Acesso em: 1 fev. 2021.

MILANESI. Luiz. Ordenar para desordenar: centros de cultura e biblioteca pública. São Paulo: Brasiliense, 1986.

PISTRAK, M. M. (org.). A comuna escolar. Trad. Luiz Carlos de Freitas e Alexandra Marenich. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

Publicado em 06 de junho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Gleison da; GEHRKE, Marcos. Trabalho e educação: uma análise dos boletins de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 21, 6 de junho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/19/trabalho-e-educacao-uma-analise-dos-boletins-de-educacao-do-movimento-dos-trabalhadores-rurais-sem-terra

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