Alfabetário afrobiográfico em uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental

Islen B R Machado

Professora

Uma educação antirracista é aquela que nos desafia a buscar igualdade social e a lutar pelo cumprimento das leis de reparação e resistência do povo negro, como a Lei nº 10.639/03, que não é opcional, e sim obrigatória.

No entanto, as práticas pedagógicas e os discursos dos professores e da escola negam a existência do racismo, preconceito e discriminação racial entre as crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I.

No livro Racismo estrutural, o escritor Silvio Almeida categoriza as formas como o racismo atravessa o preconceito e discriminação racial.

Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes. Embora haja relação entre os conceitos, o racismo difere do preconceito racial e da discriminação racial (Almeida, 2019, p. 27-28).

Negar a existência do racismo nas interlocuções entre os alunos é um ato estratégico para reproduzir práticas racistas, mesmo quando o ataque vem das crianças, que são vistas como inofensivas; entretanto, elas também são alteradas pelos discursos hegemônicos e o reproduzem cruelmente, ofendendo e humilhando os que não são brancos. Penso que ainda não têm maturidade para fazer suas escolhas e vão imitar os adultos.

Há professoras e gestões escolares que, por não inserirem no currículo a obrigatoriedade do ensino étnico-racial, perpetuam práticas que fazem com que a criança preta tenha sua autoestima e sua identidade prejudicadas, como diz Carneiro:

A imagem de si mesma será inferiorizada, e as crianças brancas que presenciaram as cenas provavelmente se sentirão superiores a elas. Estabelece-se, assim, o círculo vicioso do racismo que estigmatiza uns e gera vantagens e privilégios em outros (2011, p. 76).

Parte-se do pressuposto de que escola ainda é um lugar onde discursos e práticas preconceituosas ferem a subjetividade dos alunos e não os enxergam como pessoas. É urgente que estejam abertas às mudanças sociais, não como um favor aos negros, mas garantindo que se cumpram seus direitos. Temos as políticas educacionais afirmativas, a Lei nº 10.639/03 e a Lei nº 11.645/08, que tentam reparar o racismo estrutural garantindo condições de acesso a uma educação de qualidade aos alunos negros, porém algumas das práticas pedagógicas ainda estão distantes da cultura afro-brasileira.

Sou a favor da expressão freiriana esperançar porque tem a dimensão em que nos anima e redimensiona a humanidade em busca de uma “educação como prática da liberdade” em todos os lugares.

Os sistemas de ensino têm que se comprometer com a história desses sujeitos e pensar em uma educação para os afetos, nos reparos necessários, na busca da justiça social para aqueles que foram roubados de seus direitos, como são os negros.

Sou mulher, negra, mãe de uma criança de nove anos negra, que por diversas vezes chegou da escola se perguntando o porquê de os amigos não brincarem com ele, se sentindo feio e inadequado ou que constantemente enuncia sua vontade de ser branco para ser bonito.

A infância foi meu pior lugar; nela os impactos discursivos e as relações de opressão foram sutilmente internalizadas, me causando dores, angústias, sofrimento e distorções na minha identidade e autopercepção até a idade adulta.

Hoje me vejo como negra, mas não enxergava a negritude em mim; não foi um processo fácil de reconhecimento e aceitação. Ainda assim, só aconteceu aos quarenta anos, em diálogo nos grupos de estudos com histórias de vida e pesquisas sobre a educação afro-brasileira, já que esses saberes me foram negados por muito tempo na academia.

Justificativa

A importância de nomear essas dores e ouvir as vozes negras dos alunos dialogando com outras vozes potentes de pensadores negros que, com suas narrativas biográficas nos ensinam a lutar, a perceber situações de discriminações e denunciar o racismo sistêmico, ainda é muito forte na sociedade brasileira.

O racismo é perverso e inicia seu processo destrutivo da subjetividade do negro vem desde a primeira idade: já na Educação Infantil as crianças são discriminadas pelos colegas brancos que não brincam com as de cor e de forma cruel atacam verbalmente sua identidade.

Quando meus olhos abriram, me enxerguei e só assim também enxerguei os alunos negros e me sensibilizei com as escutas dos discursos doloridos reverberando no preconceito, discriminação, e desde então assumi uma postura diferente, de não mais me calar ou fingir que o racismo não existe, porque eu o vejo o tempo todo nas falas do meu filho e dos meus alunos negros, mas o diferencial é que, ensinando-as a ser antirracistas, as crianças negras não têm mais medo e denunciam as práticas dos colegas brancos, identificando a existência do racismo, e o aluno branco é convidado a mudar sua prática, se conscientizando de que seu ato não é aceito e que é um crime.

Referencial metodológico

Trabalho em uma escola municipal dando aula para uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental; por consequência da pandemia, embora estejam nessa série, os alunos ainda estão em processo de alfabetização.

Acredito em uma alfabetização que faça sentido e dialogue com as narrativas de vida das crianças; sendo assim, conversamos sobre biografias de intelectuais negros que atuam ou contribuíram nos debates políticos das lutas dos movimentos negros.

Pensando em apresentá-los a essas biografias e dialogar com elas, construímos um alfabetário afrobiográfico ancorado em referenciais de pesquisadores que se dedicam a estudar biografias afros. Ancoramos a pesquisa no livro Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras, escrito por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, mas não nos limitamos às biografias afro-brasileiras e nos estudos da pesquisadora e professora bell hooks.

Figura 1: Alfabetário afrobiográfico

Conhecemos também narrativas de vida de ativistas antirracistas escritoras, médica, catadora de papel, comediante, cantor, mãe de santo, professoras e muitas outras que exerceram papéis distintos na sociedade e fora do Brasil, como a estadunidense, bell hooks (assim mesmo, em minúsculas), seu pseudônimo.

Figura 2: Trabalho em turma

Hooks era uma admiradora declarada de Paulo Freire, por isso acreditava na educação atravessada pelo diálogo, na relação alteritária, na conscientização das práticas discursivas e na militância antirracista.

Para ela, “o reconhecimento mútuo do racismo, seu impacto nos dois, em quem é dominado e em quem domina, é o único ponto que torna possível um encontro entre raças que não seja baseado em negação e fantasia” (hooks, 2019, p.74).

São pensamentos como os de hooks que desejo que reverberem nas minhas práticas, sem me esvaziar desse lugar de sujeito de relação e da responsabilidade sem “álibi no existir” que Bakhtin, em seu livro Para uma Filosofia do ato responsável, explica que é estar no mundo sem desculpas, escapatórias, entendendo sua singularidade e compromisso no existir.

Compreendendo essa responsabilidade, não posso me deslocar das vivências e dos enunciados dos alunos, principalmente daqueles que são estigmatizados por sua cor.

Conclusão

A construção desse alfabetário afrobiográfico foi um momento de escutas, encontro com a voz do outro e com a minha, fugindo da voz acadêmica que é mais neutra e dialogando com as vozes das crianças na escrita que fortalecem os debates das questões raciais e rompem com os silêncios.

Uma relação alteritária porque o encontro com essas vidas afeta as nossas, somos modificados por narrativas que podem tocar histórias que também carregamos dentro de nós, aquelas que escondemos por medo, vergonha, dor, constrangimentos, aquelas que são desconhecidas aos mais íntimos, mas que continuam doendo. A pior dor é a da cor.

São vidas que nos ensinam de tantas formas, principalmente a não aceitar discursos de que hooks fala, da “homogeneidade de experiências” (p. 52), quando frequentemente ouvimos justificativas em ser racista, naturalizando essa prática, de que nossa cultura nos molda socialmente e somos ensinados a cometer um crime, sim, porque racismo é crime.

Figura 3: Atividade em sala de aula

A compreensão responsiva coíbe enunciados como esse por ter a consciência de que todas as pessoas, brancas e negras, têm a escolha de não ser passivamente vítimas da sociedade e serem antirracistas.

Somos responsáveis por cada escolha que fazemos e ninguém é racista contra a vontade. “Meu medo é que isso se torne outra desculpa frequente para o racismo, uma que procura apagar a responsabilidade e a necessidade de tomar uma atitude que poderia realmente empoderar” (hooks, 2019, p. 52).

O momento da construção coletiva do alfabetário afro-negro possibilitou entrar nesses debates com as crianças e à medida que íamos realizando a atividade, cuja motivação principal atravessava as fronteiras puramente das letras do alfabeto, mas que objetivava dialogar com as vozes, as escritas espontâneas, as negociações de sentidos, a revisão e a publicação das crianças. São apostas que faço inspiradas no texto da professora Ludmila Thomé, Espaços discursivos, em que são elencados os cinco espaços descritos acima nas interlocuções entre professores e alunos no chão da escola. São movimentos discursivos que colocam as crianças como sujeitos nessa relação dialógica, as ações são vivas como as crianças; então, acontece um hibridismo, ou seja, é no encontro com o outro que os cinco espaços acontecerão, a negociação de sentido pode se dar antes das vozes ou a escrita pode aparecer no início, fim, meio, não tem uma sequência didática.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2016.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia– saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HOOKS, Bell. Olhares negros - raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

Publicado em 13 de junho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MACHADO, Islen B. R. Alfabetário afrobiográfico em uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 22, 13 de junho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/22/alfabetario-afrobiografico-em-uma-turma-do-3-ano-do-ensino-fundamental

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