"Mundo encantado das formigas": análise do potencial de alfabetização científica

Maria Vera Lucia Medeiros

Especialista em Ensino e Tecnologias Educacionais (IFMG-SJE), professora do município de Teixeira/PB

Vânia Gonçalves Florentino de Lima

Especialista em Ensino e Tecnologias Educacionais (IFMG-SJE), professora do município de Peçanha/MG

Sandra Regina do Amaral

Doutora em Educação (UFU), professora do IFMG-SJE

Este estudo tem como premissa a alfabetização consciente, reflexiva e crítica a partir do contexto do mundo, de modo a contribuir para a transformação do meio em que se vive.  Entende-se que tal processo formativo perpassa a superação do modelo bancário de educação (centrado no professor e nos conteúdos) para o estabelecimento de uma educação problematizadora, dialógica, que aproxima a escola do meio social dos educandos (Freire, 2010). Trata-se de uma discussão corajosa da realidade e de seus problemas (Freire, 1996).

Desse modo, alfabetizar não é apenas propiciar a leitura de palavras, mas a “leitura do mundo” por meio de um olhar dialético, favorecedor da análise da realidade sob a ótica dos oprimidos, no intuito de transformar as relações sociais injustas. Para tanto, a aquisição do conhecimento científico sistematizado precisa estar diretamente relacionada com a realidade do educando (Freire, 1987).

Alguns teóricos têm se empenhado em discutir a formação de cidadãos aptos ao uso dos conhecimentos científicos nos processos de tomada de decisão e sugerido expressões como “letramento científico” ou “enculturação científica” (Sasseron; Carvalho, 2011; Marques; Marandino, 2018), mas, sob influência de Freire (1987; 2010) e Chassot (2003; 2011), assumimos o termo “alfabetização científica” (AC).

Chassot (2011) entende a Ciência como a linguagem construída pelos seres humanos para explicar o mundo natural e, como tal, ela deve favorecer a compreensão de conhecimentos, os procedimentos e os valores relativos ao seu uso e às suas aplicações, tanto na melhoria da qualidade de vida, como também em suas limitações. Nesse sentido, considera-se alfabetizado cientificamente o sujeito capaz de ler e entender a linguagem científica, agindo no mundo a favor de sua transformação em algo melhor.

Segundo Chassot (2003), a ciência pós-moderna reconhece sua transitoriedade e admite o conhecimento científico como uma produção humana parcial e relativa. A marca dessa incerteza parece ainda tímida nas escolas, já que muitas se dedicam à transmissão massiva da maior quantidade possível de conteúdos ao estudante, considerado um repositório passivo. Evidencia-se a urgente necessidade de mudanças, já que a promoção da AC requer uma educação científica interdisciplinar, contextualizada, emancipadora e crítica, voltada à cidadania.

Entende-se então que a educação científica deve contribuir para o alcance da justiça social ao garantir a aprendizagem de conceitos essenciais pela compreensão, interpretação e participação em discussões relacionadas ao uso da Ciência e da Tecnologia. Pressupõe-se assim que no processo de AC os sujeitos devem entrar em contato também com os seus possíveis malefícios, de modo a reconhecer os impactos da Ciência e da Tecnologia na sociedade. Para Araújo et al. (2014), sem essa tríade não é possível alcançar a AC, já que possivelmente os sujeitos terão uma visão distorcida ou parcial da Ciência.

Segundo Sasseron e Carvalho (2011), a AC permite desvendar o dia a dia do mundo natural por meio da Ciência e oferece suporte científico para que o sujeito possa refletir e tomar decisões em seu cotidiano, favorecendo a sua participação democrática e cidadã. As autoras, apoiadas em outros teóricos, mostram distinção entre os processos de alfabetização científica, conforme a faixa etária, e lembram que no caso da criança pequena deve-se garantir o mistério, a curiosidade e o surpreendente do mundo natural na compreensão de conteúdos científicos.

Se na perspectiva bancária a educação parece ter como objetivo a formação de futuros cientistas, na perspectiva da AC faz-se problematizadora e visa sobretudo a tomada de decisões inteligentes diante de problemas que coloquem em risco o futuro sustentável do planeta. Para isso, precisamos colocar em prática um ensino que possibilite que os alunos levantem hipóteses, investiguem, construam argumentos e justifiquem suas afirmações diante dos artefatos da sociedade científica e tecnológica (Sasseron; Carvalho, 2011).

Entende-se assim que um processo formativo comprometido com a transformação social deve ter como objetivo a AC, de modo a garantir aos estudantes o domínio e a apropriação de elementos da cultura científica, favorecendo um novo jeito de olhar o mundo e de organizar o pensamento, bem como a construção de uma consciência mais crítica sobre a realidade (Sasseron; Carvalho, 2008; Silva; Sasseron, 2021).

Marques e Marandino (2018) também reforçam a necessidade de a escola romper com a exclusiva formação de futuros cientistas e dedicar-se em criar condições de acesso e apropriação de um conhecimento científico útil, que favoreça a efetiva participação da população nos processos de tomada de decisão. Lembram que a criança se apropria do seu entorno de modo curioso, questionador e investigativo, instituindo uma lógica típica da cultura infantil, distinta da adulta em seus modos de falar, desenhar e brincar. Salientam ainda que apesar da escola ser o espaço formal de ensino e consequentemente de alfabetização científica, ela também pode ocorrer em outras instâncias, citando o museu e a mídia.

A necessidade de abandonar práticas educativas alicerçadas na memorização e na fragmentação também é evidenciada por Viecheneski, Lorenzetti e Carletto (2013), que sinalizam a problematização de temas socialmente relevantes, que venham favorecer tomadas de decisões responsáveis, como caminhos. O estudo se baseia na aplicação e na análise de uma sequência didática (SD) acerca do tema alimentação humana, com vistas a identificar a sua contribuição para a iniciação da alfabetização científica de alunos em processo de alfabetização da língua materna, com vistas a proporcionar a imersão na cultura científica de forma contextualizada e interdisciplinar.

Viecheneski, Lorenzetti e Carletto (2013) tomaram por base a perspectiva vygotskiana para explicitar a importância da mediação e interação para o desenvolvimento de atividades intencionais e desafiadoras que incorporam experiências e significações socialmente construídas. Defendem que cabe ao professor, colocar os alunos frente a situações concretas que envolvam o cotidiano e ciência, desde os primeiros anos de escolarização, inserindo-o no modo científico de pensar, ver e explicar o mundo, em atividades que estimulem a observação, a reflexão, a análise, a formulação de hipóteses, a argumentação, o compartilhamento e o confronto de ideias frente às elaborações científicas.

Nesse sentido, Barcelos e Coelho (2022) se propuseram a compreender como têm sido desenvolvidas as formações continuadas que assumem a Alfabetização Científica (AC) como pressuposto para a organização do trabalho docente em aulas de Ciências no Ensino Fundamental. No estudo foram selecionados 29 textos (dissertações, teses e artigos de periódicos), de 1992 a 2020, que indicam a escassez ou a ausência de iniciativas educativas que vêm ao encontro da educação CTS (ciência, tecnologia e sociedade).

De modo geral, Barcelos e Coelho (2022) identificaram processos formativos fragmentados, descontextualizados e conteudistas, distante das discussões que perpassam a AC, impossibilitando a práxis educativa crítica-emancipatória. Os autores sinalizam que a mudança no ensino perpassa a formação de docentes alfabetizados cientificamente, capazes de exercer a cidadania de forma crítica e responsável (em vez de deixar-se guiar pelos interesses mercadológicos) e de adotar novas formas de ensinar Ciências, citando como alternativas: a Abordagem Temática Freiriana, os Três Momentos Pedagógicos e o Ensino por Investigação.

Dentre os trabalhos analisados por Barcelos e Coelho (2022), três nos chamam a atenção. Os dois primeiros, de Solino e Gehlen (2014) e Santana, Capecchi e Franzolin (2018), pelos pressupostos teóricos e práticos de uma prática educativa dialógica, problematizadora e investigativa. O terceiro, de Hilário e Sousa (2017), por delinear o estado do conhecimento da AC nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Em contraposição a uma abordagem puramente científica que impede uma percepção crítica da realidade e da própria Ciência, Solino e Gehlen (2014) defendem a abordagem temática e o ensino por investigação, ambos ancorados no diálogo estabelecido a partir de problemas. Se no ensino por investigação o problema busca ampliar o engajamento do aluno, desafiar, estimular e despertar o seu interesse, de modo a medir a elaboração de explicações científicas sobre os fenômenos do cotidiano, na abordagem temática freiriana o problema vem estabelecer uma relação dialética entre o sujeito e a situação concreta (na qual se identifica o conteúdo programático), para que a partir do conhecimento científico construído, retornem ao problema com um olhar mais crítico.

Solino e Gehlen (2014, p. 141) destacam o potencial de complementaridade entre essas metodologias cujas estruturas problematizam-se, assemelhando-se quanto a “concepção de sujeito e objeto de conhecimento, o conceito de problema, a conceituação científica e o papel da contextualização”, além de apresentarem outras qualidades, como elaboração de hipótese, verificação e argumentação do Ensino de Ciências por Investigação, ou ainda o processo de humanização, inovação do currículo e problematização de situações que compõem as vivências dos estudantes na abordagem temática.

Já o estudo de Santana, Capecchi e Franzolin (2018) toma como princípio um conjunto de conteúdos e conhecimentos que devem ser ensinados a todas as pessoas, iniciando-as na educação científica por meio de um processo investigativo que as oriente o pensamento crítico e reflexivo, ainda nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em consonância com os princípios deweyanos. Nesse sentido, a aula tem início com a apresentação de uma situação-problema, a partir da qual o aluno constrói ativamente novos conhecimentos, por meio da investigação, da interação, da formulação de hipóteses, da expressão de ideias e da resolução de problemas.

Santana, Capecchi e Franzolin (2018) apontam, como evidências da contribuição do ensino por investigação, a relação entre os problemas em estudo com as situações do dia a dia, a motivação, a valorização do conhecimento prévio, o favorecimento do trabalho colaborativo e aprendizagem de conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. Sinalizam ser mais comum tais práticas nos anos iniciais do Ensino Fundamental, uma vez que o excesso de sistematização dos anos finais acaba por retirar o entusiasmo.

O estudo de Hilário e Sousa (2017), por sua vez, se propõe a identificar os trabalhos apresentados nos Encontros de Pesquisa em Educação em Ciências (Enpec) no período de 2007 a 2015, que discutiram alfabetização científica nos anos iniciais do Fundamental e suas concepções, sendo selecionados doze trabalhos, a partir dos quais se concluiu sobre a necessidade de um novo projeto de Educação associado às problemáticas da realidade social do aprendiz, favorecendo a organização dos pensamentos e a construção de uma consciência crítica. Sinalizam-se quatro caminhos principais para essa aproximação:

  1. construção do conhecimento dentro do espaço formal, a partir de vivências nos laboratórios de Ciências, atividades lúdicas e debates;
  2. utilização de espaços não formais de aprendizagem;
  3. compreensão da relação entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente (CTSA) para entendimento dos impactos dos avanços científicos e tecnológicos na sociedade; e
  4. estreitamento do diálogo entre a comunidade, a escola e a universidade.

Por fim, no intuito de ampliar a reflexão, buscaram-se no mesmo evento os trabalhos mais recentes, sendo identificados três estudos que se propuseram a discutir a alfabetização científica nos anos iniciais de escolarização: Amaral, Comarú e Kauark (2019); Amorim e Santos (2019); e Merlo, Resstel e Sandermann (2019).

Amaral, Comarú e Kauark (2019) apostam na ruptura da educação tradicional e na capacidade da arte para provocar a ampliação das faculdades imaginativas, estabelecendo uma proposta de conciliação da Ciência e de seu efeito inesperado e encantador com a leitura crítica do mundo. As autoras apresentam uma intervenção sobre o tema “ar” e defendem que as crianças pequenas da Educação Infantil, mesmo não tendo domínio da leitura e da escrita da língua materna, são capazes de produzir e expressar seus saberes por meio do diálogo, do desenho ou das produções coletivas. Por fim, sinalizam como indicadores de alfabetização científica a participação ativa, a articulação de ideias, a investigação, a argumentação, o trabalho em grupo, a atividade criadora, entre outros.

Amorim e Santos (2019) chamam a atenção para o fato de os currículos valorizarem as disciplinas de Português e Matemática, em detrimento de outras áreas do conhecimento. Por consequência, poucos são os professores com hábito da leitura de textos de natureza científica, apontando assim para a necessidade de repensar a formação inicial de modo a dar a oportunidade de reflexões sobre a produção do conhecimento científico.

Merlo, Resstel e Sandermann (2019) partem de uma perspectiva freiriana de educação emancipadora para salientar a necessidade de mudança de postura dos professores em prol de uma educação científica e tecnológica, na qual os sujeitos sejam participativos e preparados para posicionarem-se e intervirem no cotidiano a favor da melhoria do estilo de vida. Destacam ainda a importância de superar a memorização de fórmulas e conceitos, aproveitando as contribuições das novas tecnologias, a fim de valorizar o protagonismo no processo de aprendizagem e acreditar na capacidade crítica e criativa do estudante, assim como no poder libertador da alfabetização científica.

Nesse contexto, a partir do exposto e inspiradas em uma experiência vivida na disciplina Alfabetização Científica nos Anos Iniciais, do curso de Pós-Graduação em Ensino e Tecnologias Educacionais, assume-se como objeto de estudo a construção de uma SD e os resultados de sua aplicação. Estabeleceu-se, por objetivo, “avaliar o potencial de alfabetização científica de uma sequência didática sobre formigas”.

Metodologia

Frente aos objetivos da pesquisa, adotou-se uma abordagem metodológica qualitativa de caráter interpretativo (Gil, 2002). Os sujeitos da investigação foram 26 crianças de oito anos, dentre elas dezesseis alfabetizadas na língua materna, matriculadas no 2° ano do Ensino Fundamental de uma escola do município de Teixeira/PB.

A SD intitulada Mundo Encantado das Formigas foi inspirada em uma experiência vivenciada na disciplina Alfabetização Científica nos Anos Iniciais, do curso de Pós-Graduação em Ensino e Tecnologias Educacionais do Instituto Federal de Minas Gerais, câmpus São João Evangelista (IFMG-SJE). Conforme o Quadro 1, ela ocorreu em oito dias, com encontros e atividades de 1h30min cada (em média dezesseis aulas).

Sua elaboração buscou cumprir os indicadores de uma prática educativa problematizadora a favor da AC que se faz dialógica e aproxima a escola do meio social de vivência dos educandos (Freire, 2010), que admite a Ciência como produção humana parcial e relativa e defende uma educação científica interdisciplinar, contextualizada, emancipadora, crítica (Chassot, 2003) e lúdica, para não perder a curiosidade e o encantamento típicos da idade.

Quadro 1: Sequência didática intitulada Mundo Encantado das Formigas

 

Objetivo

Descrição

1

Evidenciar por meio da fala seus saberes.

- Iniciar falando que estudaremos o “mundo encantado das formigas” em seguida perguntar: “O que vocês sabem sobre a formiga?” e fazer roda de conversa;

- Passar o vídeo Vida das formigas e fazer roda de conversa.

2

Conhecer alguns aspectos da vida das formigas.

- Contação de história: Maricota e as formigas. Após leitura da história do livro de literatura infantil, trabalhar interpretação com registro de escrita em folha própria contendo as perguntas: O que estava acontecendo na casa da Maricota? Você acha que as formigas têm uma morada? O que Maricota fez com as formigas? Você acha que a comida da casa de Maricota é saudável? Você usaria o açúcar da casa de Maricota? Você acha que as formigas transmitem doenças? Por quê?

3

Envolver-se de forma lúdica com a temática.

- Assistir ao vídeo musical As formigas marcham e levar para a quadra para explorar a coreografia da música.

4

Estudar aspectos relativos à anatomia das formigas.

- Trabalhar o “Baú da curiosidade”. As crianças organizadas em grupo devem receber uma ficha informativa. Para cada ficha de curiosidade retirada do baú deve-se estabelecer um diálogo, de modo que as crianças possam expressar opiniões; em seguida, o grupo que está com a ficha informativa contendo a resposta faz a leitura. Perguntas como: As formigas escutam? As formigas têm sangue? Como as formigas se comunicam? Porque as formigas têm dois estômagos? Como se chama o estudo das formigas? As formigas não têm pulmões, como respiram?

- Dar um tempo para as crianças lerem a ficha de pistas e tentar responder às perguntas. As respostas serão socializadas oralmente.

5

Observar a presença das formigas na escola e entorno.

- Organizar as crianças para uma volta pela escola, em busca de formigas e formigueiros para observação (distribuir algumas lupas).

- De volta à sala de aula, solicitar que desenhem a formiga em folha específica para a atividade, contendo também algumas das perguntas trabalhadas no baú da curiosidade para registro por meio da escrita. Para incentivar a riqueza de detalhes do desenho, pode-se dizer: “Vocês sabem quantas patas? Quantas antenas?”.

6

Pensar nos malefícios da presença da formiga.

- Assistir à entrevista “Formigas podem transportar bactérias que contaminam a comida”, em seguida fazer roda de conversa com registro por meio da escrita. Perguntas: Você comeria esse bolo? Como a formiga contamina os alimentos? De onde a formiga traz as bactérias?

- Construção coletiva de um acróstico com a palavra formiga. Explicar o que é um acróstico e perguntar: o que temos para falar sobre a formiga?

7

Pensar nos benefícios da presença da formiga.

- Assistir ao vídeo de animação Dispersão de Sementes por Formigas e fazer roda de conversa buscando destacar as contribuições das formigas;

- Perguntar: Sem formigas o mundo seria melhor? (coletar resposta individualmente, de modo que uma criança não tenha inicialmente acesso à resposta da outra). Tabular o total, informar e conversar sobre o resultado.

8

Refletir e formar opinião.

- Reflexão: Mocinha ou vilã? Produção coletiva de texto.

Apoio Audiovisual

YOUTUBE. As formigas marcham. Bob Zoom. Vídeo infantil musical, 2min11seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dDGCbDrurTY

YOUTUBE. A vida das formigas. TichsMan. Vídeo documentário, 2min47seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0EHaEHj7SEU

GLOBOPLAY. Formigas podem transportar bactérias que contaminam a comida. Programa Bem-Estar, 3 min. Exibição em 2 nov. 2015. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/4579996/

UFLA. Dispersão de sementes por formigas. Projeto Formigas em Ação. Animação (4min), 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zpOZCKpCmLY

Os dados construídos e coletados a partir da aplicação foram analisados por meio dos indicadores de AC defendidos por Amaral, Comarú e Kauark (2019), que sugerem que se deve levar em consideração, nessa análise inicial de AC, se ela favoreceu a participação ativa das crianças, fazendo com que trabalhassem em grupo e se articulassem de forma crítica, criativa, argumentativa e investigativa.

Resultados e discussão

Iniciamos o primeiro dia perguntando aos alunos o que sabiam sobre a formiga. A conversa não rendeu muito, ainda que pedíssemos para relatar as suas vivências, estimulando a participação e perguntando se conheciam um formigueiro. Os estudantes se mostraram meio acanhados em participar. Mas após o vídeo Vida das formigas começaram a se mostrar mais participativos.

Uma criança disse: “Tia, a formiga fez minha vó chorar, cortou a roseira dela”, então continuamos o diálogo perguntando o que tinha acontecido e qual foi a atitude da avó. A criança contou que, para evitar que as formigas voltassem, “Ela [a vó] botou algodão, porque assim as formigas não sobem”. Estimulando aquela fala, perguntamos por que elas não sobem e ela respondeu: “Porque elas se engancham”.

Logo em seguida, outra criança perguntou, “Tanajura é formiga?”. Ao responder que sim, disse que achava que não era, pois “Ela tem asa, achei que era da família das borboletas”. E seguiu contando, “Minha vó disse que torrou muita tanajura no óleo para garganta do meu pai”. Diante da pergunta se ela já havia comido, ela disse: “Não. Meu pai, sim. Eu tomo remédio”.

Outra criança afirmou: “Que nojo, tia, eu vi na minha casa formigas comendo uma barata morta”. Outra disse: “Eu criava uma rolinha. Ela morreu. Quando eu vi, tava cheio de formiga dentro da gaiola”. Outra lembrou ainda que tem animais que comem formiga, como o tamanduá. Considerou-se, assim, o momento propício para dialogar sobre a contaminação dos alimentos.

A contação da história Maricota e as formigas, do segundo dia, rendeu conversa e registro por meio de escrita. Diante da pergunta “O que estava acontecendo na casa da Maricota?”, as crianças responderam: “As formigas tomaram conta da cozinha”, “As formigas invadiram a cozinha de Maricota”. Quanto à morada das formigas, não tiveram dúvidas, não era a casa de Maricota, mas sim “O formigueiro”.

Quanto às perguntas referentes à qualidade da comida da casa de Maricota e se usariam o açúcar dela, alguns disseram apenas que “Não”, enquanto outros também justificaram: “Não, as formigas contaminaram”. Diante da pergunta “Você acha que as formigas transmitem doenças? Por quê?”, obtiveram-se as seguintes respostas: “Sim, se comer alimentos onde ela passou” e “Sim, já comi um biscoito contaminado por formigas e vomitei muito”.

No terceiro dia, para ampliar o envolvimento das crianças com a temática de forma lúdica, após assistir ao vídeo musical As formigas marcham, as crianças foram para a quadra explorar a coreografia, atividade desenvolvida com muita empolgação e alegria. No quarto dia, com o “Baú da curiosidade”, explorou-se mais a leitura e a oralização. Para cada ficha de pergunta havia outra com pequenos textos onde havia informações científicas, elaboradas pensando na faixa etária. As crianças se mostraram muito animadas e curiosas e dedicaram atenção à leitura das respostas, se surpreendendo com elas.

No quinto dia, explorou-se a escola e o seu entorno. Com o apoio de uma lupa, as crianças foram em busca de formigas e formigueiros para observação. De volta à sala de aula, foi pedido que as crianças desenhassem o que viram, incentivando-as a pensar e a registrar as características das formigas, com número de patas e antenas (Figura 1). Nesse momento, surgiram alguns comentários, como “Não encontramos nenhuma de asa, só encontramos a paioca”, referindo-se a uma formiga preta grande. “Vi formigueiro, vi dois tipos de formiga preta. A pequena ferroa muito”, uma das crianças sinalizou.

Figura 1: Exemplos de desenhos produzidos pelas crianças

As crianças se mostraram cada vez mais interessadas na temática e manifestaram alegria pelas descobertas feitas sobre a vida das formigas. Chamou-nos a atenção uma criança com transtorno do espectro autista (TEA), que estava mais tímida. Na mesma folha havia algumas questões retomando a conversa do baú do conhecimento. Ela não respondeu a parte escrita, mas fez um desenho rico em detalhes (Figura 2), e na atividade seguinte respondeu por escrito todas as questões.

Figura 2: Desenho produzido por uma criança com transtorno do espectro autista (TEA)

No sexto dia, com o intuito de refletir sobre os aspectos negativos da presença da formiga, as crianças assistiram à entrevista “Formigas podem transportar bactérias que contaminam a comida”. Em seguida, diante da pergunta “Você comeria esse bolo?”, elas foram quase unânimes em responder que não. Apenas uma disse: “Sim, tiraria a parte de cima”, reconhecendo na questão posterior que as patas são sujas, o que nos leva a crer que ela entendeu que, se tirar a parte que teve contato direto com as patas, não haveria mais riscos, não sendo preciso descartar o alimento todo. Durante a conversa, reconheceram que a contaminação ocorre por meio das patas e que as bactérias são provenientes de diferentes fontes: “Chão”, “Barata”, “Hospital”, “Lixo”, “Rua” e “Terra”.

Durante a conversa, uma criança disse: “A formiga não come bolo não, né? Só come a folha!”. Nesse momento, lembrou-se das informações do vídeo do primeiro dia, reforçando que a formiga não come folha. Ela só a carrega para deixá-la produzir o fungo, que é o seu alimento. Em seguida, iniciou-se a construção coletiva do acróstico com a palavra formiga (Figura 3).

Figura 3: Acróstico produzido de forma coletiva

O sétimo dia começou com o filme de animação Dispersão de sementes por formigas. O filme buscou provocar a contradição, ao evidenciar as contribuições da presença das formigas. Em seguida, perguntou-se: “Sem formigas o mundo seria melhor?”. As respostas, bem como as justificativas, não foram discutidas inicialmente no coletivo, no intuito de evitar que a resposta de uma criança influenciasse a outra. As crianças foram abordadas individualmente. Dentre os argumentos: “Contaminam os alimentos” (duas crianças); “Carrega bactérias nas patas, suja nossas casas” (2); “Transmite doenças. Adoece as pessoas” (2); “Cortam as folhas das plantas” (2); “Ferroa” (1); “Acabaram com o som da minha casa, fizeram morada e não prestou mais, minha mãe disse que vai saber que tipo de formiga é essa” (1). Em um total de dez crianças, todas disseram para a sentença que sim, que seria um mundo melhor.

Em contrapartida, dezesseis crianças acreditam que não, o mundo não seria melhor sem formigas. Dentre elas, seis apresentaram justificativas relacionadas às florestas, como por exemplo, “A formiga solta a semente nas florestas e nascem outras plantinhas”. Outras seis, em relação à solidez da terra e do plantio, que a formiga “Ajuda o agricultor. Facilita na plantação quando cava a terra para fazer seu formigueiro”. Outras duas falaram que “É bom para a garganta”. E mais duas crianças (as últimas) disseram que elas servem de alimento para alguns animais. Uma chegou a afirmar que “O tamanduá ia morrer de fome”.

Chegado o oitavo dia, organizamos uma síntese cognitiva a partir da seguinte reflexão sobre a formiga: “Mocinha ou vilã?”. Assim, construiu-se coletivamente o texto apresentado no Quadro 2. Observou-se, por parte das crianças, muita satisfação em participar e falas que resgataram diálogos presentes nas diferentes aulas da SD.

Quadro 2: Texto produzido de forma coletiva

Formiga, mocinha ou vilã?

Era um lugar bem distante debaixo da terra, onde viviam em uma grande organização de formigas. Eram formigas que trabalhavam sem parar, cortando e carregando folhas para o formigueiro; degustando sementes e dispersando o restante para nascer novas plantinhas, lembrando que ao escavar a terra para seus ninhos, aumenta a quantidade de nutrientes e água no solo, ajudando o agricultor fazer uma boa plantação. Lembrando que as formigas são um petisco muito saboroso para alguns animais, quem mais sabe é o tamanduá.

Quando a chuva cai, tem a famosa tanajura que cai, onde as crianças cantam: cai, cai tanajura aqui na minha mão – brincam e disputam quem consegue juntar mais tanajuras.

No caminho do formigueiro entre formigas indo e voltando, tem formigas que faz a vovó chorar destruindo a roseira, formigas que invadem as casas com suas patas sujas, contaminando os alimentos, tem formigas que procuram abrigo mais quentinho nos aparelhos eletrônicos, destruindo-os, tem formigas que procuram abrigo mais quentinho nos aparelhos eletrônicos destruindo-os, tem formiga que passou na sujeira e com suas patinhas, contaminou aquele bolo de chocolate com morangos tão gostoso que a mamãe fez!

Finalmente a formiga é uma mocinha ou vilã? Ela é boazinha ou malvada? Nem sempre é fácil responder!

Produção coletiva, 2º ano do Ensino Fundamental

Diante do empenho, do interesse e da alegria em participar da proposta, acredita-se que tenha sido uma experiência relevante para as crianças. Não obstante, também para as professoras que instituíram uma prática educativa diferente da que estavam acostumadas, uma vez que só tinham trabalhado a temática na aula de Português, sem aprofundamento, durante uma contação da história A formiga e a cigarra.

Nesse sentido, pensando na vivência do dia a dia e formando opinião, provocou-se o encantamento, mostrando um caminho para uma educação mais crítica, criativa e estimuladora da aprendizagem. Tal experiência favoreceu a compreensão de que não cabe ao professor dar respostas prontas, mas problematizar de modo que o conhecimento seja construído em conjunto, em um processo de aprendizado crítico, como defendido por Freire (1996; 2010).

Observa-se ainda que o conhecimento, por si só, não é suficiente. É preciso saber utilizá-lo, pensar nos prós e nos contras. Desse modo, acredita-se que a SD contribui para o processo de AC ao proporcionar experiências de reflexão e argumentação que fazem sentido para o contexto do aluno, incentivando a capacidade para a interpretação e a atuação consciente e responsável no mundo, em consonância com Chassot (2003; 2011).

Conclusão

O papel da escola numa sociedade em constante transformação é vislumbrar a educação para a cidadania. Sendo assim, AC mostra-se relevante por vir ao encontro da perspectiva problematizadora que se faz a partir do cotidiano dos alunos e da interação com a cultura científica, ampliando o sentido do ensino e do aprendizado.

Ao construir a SD, intencionou-se favorecer um ensino com o olhar curioso e crítico sobre a temática, no encontro do equilíbrio entre o lúdico e a educação científica, por meio de uma prática desafiadora que aproximasse os conhecimentos escolares das vivências cotidianas. Desse modo, diante do objetivo de “analisar o potencial de AC de uma SD sobre formigas”, conclui-se que a SD teve o potencial de problematizar a temática, aproximando o conhecimento científico do contexto do universo infantil, a fim de estimular a participação ativa, o interesse e o envolvimento dos estudantes, para promover o trabalho em grupo e favorecer a articulação de ideias de forma argumentativa e criativa.

Reconhecemos que com esse mesmo contexto e público, temos feito algumas aulas diferentes e explorado mais a interdisciplinaridade, investindo em processos investigativos, recebidos de pessoas que podem contribuir com a discussão na perspectiva da AC para o processo de construção do conhecimento.

Esperamos que, ao compartilhar essa experiência, um pouco do que observamos, ensinamos e aprendemos sirva de inspiração para novos voos. Entendemos como fundamental ao processo formativo do aluno e do professor, a ampliação de propostas de AC com crianças nos primeiros anos de escolarização. Fica a certeza de que saímos dessa experiência profissionais mais humanos e melhores!

Referências

AMARAL, S. R. do; COMARÚ, M. W.; KAUARK, F. S. da. Alfabetização científica nos primeiros anos de escolarização. XII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS - ENPEC, Natal, jun. 2019. Anais... Disponível em: http://abrapecnet.org.br/enpec/xii-enpec/anais/lista_area_08_1.htm

AMORIM, C. P. R.; SANTOS JR., J. B. Uma investigação sobre as concepções de um grupo de professoras sobre a alfabetização científica nos anos iniciais. XII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS - ENPEC, Natal, jun. 2019. Anais... Disponível em: http://abrapecnet.org.br/enpec/xii-enpec/anais/resumos/1/R0375-1.pdf.

ARAÚJO, I. dos S. C.; CHESINI, T. S.; FILHO, J. B. da R.  Alfabetização científica: concepções de educadores. Unijuí, ano 29, n° 94, set./dez. 2014. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/contextoeducacao/article/view/3178/4689.

BARCELLOS, L. da S.; COELHO, G. R. Formação continuada de professores do Ensino Fundamental e a alfabetização científica: estado do conhecimento de 1992 a 2020. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 22 p. 1-31, 2022. Disponível em:  https://periodicos.ufmg.br/index.php/rbpec/article/view/29664.

CHASSOT, A. Alfabetização científica: questões e desafios para a educação. 5ª ed. Ijuí: Unijuí, 2011.

CHASSOT, A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação, v. 8, nº 22, p. 89-100, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/gZX6NW4YCy6fCWFQdWJ3KJh/?lang=pt.

FREIRE, P. Educação como prática da libertação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 42ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

HILÁRIO, T. W.; SOUSA, R. R. Alfabetização científica nos anos iniciais do Ensino Fundamental: uma revisão nos últimos ENPEC. XI ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS - ENPEC, Florianópolis, 2017. Anais... Disponível em: http://www.abrapecnet.org.br/enpec/xi-enpec/anais/resumos/R0435-1.pdf.

MARQUES, A. C. T. L.; MARANDINO, M. Alfabetização científica, criança e espaços de educação não formal: diálogos possíveis. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 44, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1678-4634201712170831.

MERLO, S. A. B; RESSTEL, R.; SONDERMANN, D. V. C. Contribuição das tecnologias digitais como ferramentas pedagógicas para o ensino de Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental. XII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS - ENPEC, Natal, jun. 2019. Anais... Disponível em: http://abrapecnet.org.br/enpec/xii-enpec/anais/lista_area_11_1.htm.

SANTANA, R. S.; CAPECCHI, M. C. V. M.; FRANZOLIN, F. O ensino de Ciências por investigação nos anos iniciais: possibilidades na implementação de atividades investigativas. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, v. 17(1), p. 686-710, 2018. Disponível em: http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen17/REEC_17_3_9_ex1245.pdf.

SASSERON, L. H.; CARVALHO, A. M. P. de. Alfabetização científica: uma revisão bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências, v. 16, n° 1, p. 59-77, 2011. Disponível em: https://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view/246.

SASSERON, L. H.; CARVALHO, A. M. P. de. Almejando a alfabetização científica no Ensino Fundamental: a proposição e a procura de indicadores do processo. Investigações em Ensino de Ciências, v. 13, n° 3, p. 333-352, 2008. Disponível em: http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID199/v13_n3_a2008.pdf.

SILVA, M. B.; SASSERON, L. H. Alfabetização científica e domínio do conhecimento científico: proposições para uma perspectiva formativa comprometida com a transformação social. Ensaio - Pesquisa em Educação e Ciências, Belo Horizonte, v. 23, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epec/a/ZKp7zd9dBXTdJ5F37KC4XZM/.

SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Abordagem temática freiriana e o ensino de Ciências por investigação: possíveis relações epistemológicas e pedagógicas. Investigações em Ensino de Ciências, v. 19(1), p. 141-162, 2014. Disponível em: https://www.if.ufrgs.br/cref/ojs/index.php/ienci/article/view/100.

VIECHENESKI, J. P.; CARLETTO, M. R. Iniciação à alfabetização científica nos anos iniciais: contribuições de uma sequência didática. Investigações em Ensino de Ciências, v. 18(3), p. 525-543, 2013. Disponível em: https://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view/112.

Publicado em 13 de junho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MEDEIROS, Maria Vera Lucia; LIMA, Vânia Gonçalves Florentino de; AMARAL, Sandra Regina do. Mundo encantado das formigas: análise do potencial de alfabetização científica. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 22, 13 de junho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/22/mundo-encantado-das-formigas-analise-do-potencial-de-alfabetizacao-cientifica

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.