Percepções crítico-reflexivas sobre os documentos normativos atuais que versam sobre o ensino e a aprendizagem geográfica

Adelson Siqueira Carvalho

Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do IFF, doutor em Informática na Educação (UFRGS)

Hudson Laeber Corrêa

Professor de Geografia da Seeduc/RJ, mestrando em Ensino e suas Tecnologias (IFF/RJ)

O presente texto se constitui em uma expectativa de abertura de diálogos e reflexões acerca das atuais políticas curriculares e formativas que orientam o trabalho docente. Para tanto, centra-se nas especificidades do ensino de Geografia. Objetiva-se tecer breves discussões, com enfoque crítico, sobre as últimas versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Base Nacional Comum para a Formação de Professores (BNC), tendo como o foco o ensino de Geografia.

Configura-se como texto de caráter bibliográfico a partir de observações aliadas a contribuições teóricas diversas que versam sobre o tema. A escolha dos textos para a discussão teórica ocorreu de modo particular por aproximação com o objetivo deste trabalho. Ressalta-se, ainda, que esta pesquisa é resultado de uma disciplina do Mestrado Profissional de Ensino e Tecnologia, pertencente a um instituto federal de educação, ciência e tecnologia situado geograficamente em um dos campi do Estado do Rio de Janeiro.

Para além das filiações teóricas constitutivas dos campos do Currículo e do Ensino, tal qual as tensões inerentes a eles, prima-se neste texto por iniciar a desmistificação do caráter hegemônico da BNCC (Brasil, 2018) e BNC (Brasil, 2020), a fim de ressaltar a importância de que as diferentes nuanças teóricas, muitas vezes não condizentes com os interesses ideológicos e políticos nas entrelinhas de tais documentos normativos, sejam consideradas no debate curricular para o ensino de Geografia, possibilitando a incrementação de discussões acerca da condução atual e futura de tais políticas e as consequências delas.

Para Araújo (2018), as políticas curriculares e formativas têm caminhado para a condução de uma suposta padronização dos conteúdos por meio de habilidades e competências muito atreladas aos interesses do capital, assim como para uma postura docente que desenvolva, sobretudo, o pensamento imaginário de inovação educacional por meio do uso e, mais recentemente, produção de tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC).

Nesse sentido, tanto a BNCC (Brasil, 2018) quanto a BNC (Brasil, 2020) inserem a dimensão tecnologias digitais de forma acentuada ao longo de todo o texto. Na BNCC, especificamente, após duros questionamentos e debates nos espaços de reflexão sobre a educação a partir da contribuição de pesquisadores e diferentes atores que compõem o ensino, muito se apontou sobre a ausência de reflexão sobre as especificidades geográficas das diferentes redes de ensino e suas disparidades e abismos educacionais, além de implicações formativas docentes que circundam a inserção das tecnologias digitais e outras prerrogativas da educação contemporânea (Araújo, 2018). Ainda segundo Araújo (2018, p. 18), esse documento normativo configura-se pela busca de uma identidade hegemônica “que divide o seu corpo numa dispersão/articulação de sentidos, transformando a sua própria particularidade em um corpo que encarna uma totalidade inalcançável”.

Já a BNC (2020) assume o papel de mais novo documento normativo que orienta a formação docente. Entretanto, o Conselho Nacional de Educação (CNE) já havia se posicionado acerca da necessidade de os professores receberem formação inicial e continuada nos diversos âmbitos em que se desenvolve a prática docente. Nessa direção, destacam-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior e para a Formação Continuada, que consideram que os egressos de cursos de licenciaturas devem ser capazes do “uso competente das tecnologias de informação e comunicação (TIC) para o aprimoramento da prática pedagógica e a ampliação da formação cultural dos(as) professores(as) e estudantes” (Brasil, 2015). Entretanto, como seria esse uso competente? Como os professores de cada componente curricular – neste texto, especificamente em relação ao ensino de Geografia – podem atuar nesse contexto?

Diante dessas e outras tensões que reverberaram a partir da publicação da BNCC (2018), o CNE voltou a se manifestar sobre a formação de professores em uma resolução que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (Brasil, 2020).

Diante do exposto, admite-se que uma reflexão mais aprofundada sobre discussões bibliográficas dos diferentes campos não seja possível aqui, assim como não é possível tratar a política curricular para Geografia em sua totalidade. Entretanto, almeja-se incitar reflexões teóricas que ampliem a dimensão crítica antagônica à perspectiva de que as defesas à BNCC negligenciam o debate acadêmico mais denso, tanto sob o aspecto curricular quanto geográfico.

Desenvolvimento

Iniciamos a discussão crítica a partir da ótica de Ascenção (2020) sobre a BNCC (Brasil, 2018), em especial no texto referente ao componente curricular Geografia. Esse documento normativo se apresenta como “orientador curricular comum de um país tão amplo, diverso e desigual como o Brasil, sempre será cercado de disputas, trará em si contradições, sofrerá críticas” (Ascenção, 2020, p. 177). Entretanto, dialogar sobre as contradições trazidas pela Base para a formação e para a prática docente do professor de Geografia é uma via para reformulação de políticas e práticas que conduzam a possibilidades de avanços. Freire (2002, p. 14) define essa postura crítica como uma necessidade de "não estarmos demasiadamente certos de nossas certezas". Assim, não há a possibilidade de ser um professor ou professora crítico(a) sem vivenciar na prática a leitura crítica daquilo que se ensina, o que incita uma educação problematizadora tanto em relação à sua realidade imediata, o seu contexto, quanto à real necessidade de desenvolver determinadas habilidades ou técnicas.

Nesse ínterim, a BNCC surge como um documento normativo provisório em 2017 e é homologada para a Educação Infantil e Ensino Fundamental em 2018, a fim de orientar as aprendizagens ditas essenciais nas etapas da Educação Básica, assumindo uma postura universalista e homogeneizante (Costa, 2019). Sua apresentação ressalta que,

com ela, redes de ensino e instituições escolares públicas e particulares passam a ter uma referência nacional obrigatóriapara a elaboração ou adequação de seus currículos e propostas pedagógicas. Essa referência é o ponto ao qual se quer chegarem cada etapa da Educação Básica, enquanto os currículos traçam o caminho até lá (Brasil, 2018, p. 5, grifo nosso).

Percebe-se que o texto não assume a postura de currículo, mas de certa forma visa promover uma padronização dos currículos escolares, estabelecendo as habilidades e as competências que os estudantes devem desenvolver em cada ano de ensino. Além disso, reduz a pluralidade educacional em um país com grandes proporções geográficas à fragmentação das políticas educacionais, algo que se aventa superar. Para Lopes (2015), essa visão possui associação direta entre conhecimento e igualdade, apropriação do conhecimento e justiça social. Para a autora, o documento limita o que pode ser ensinado nas escolas, implicando que o direito de aprender e decidir e, sobretudo, em quais realidades vivenciadas encontram-se apartados. Nessa mesma perspectiva, Lopes (2015, p. 96) aponta que a Base está “intimamente vinculada a um movimento que não favorece a ampliação da democracia, pois restringe formas de ler o mundo, de significar o conhecimento, ao constituído a priori do trabalho”.

Outra observação crítica importante a ser apontada nos documentos normativos aqui discutidos diz respeito ao modelo de competências que é proposto, atrelado claramente aos interesses de um Estado neoliberal que relega a um plano inferior as demandas reais e atuais da sociedade brasileira, pois são entendidas como deslocamento de "habilidades psicofísicas para o desenvolvimento de competências cognitivas complexas, mas sempre para atender às exigências do processo de valorização do capital" (Kuenzer, 2002, p. 3).

No âmbito do ensino de Geografia, a última versão da Base de Geografia (Brasil, 2018) – diferentemente das duas versões anteriores – acentua o termo “raciocínio geográfico”, que é

um termo utilizado pelos pesquisadores da Geografia Escolar que têm outras expressões com significado semelhantes, como: pensamento geográfico, pensamento espacial, olhar geográfico, letramento geográfico, alfabetização geográfica. Essas expressões dizem respeito ao desenvolvimento do aluno por meio do ensino-aprendizagem dos conhecimentos geográficos no ensino de Geografia (Silva, 2014, p. 52).

Nesse sentido, ao trazer o raciocínio geográfico, a BNCC (Brasil, 2018) traz consigo a possibilidade de união entre a Geografia Escolar e a Geografia Acadêmica. De acordo com Ascenção (2020, p. 186), a BNCC Geografia, organizada em cinco unidades temáticas, “pretende congregar noções, articulações escalares, processos, técnicas, representações do raciocínio geográfico e o conjunto dos componentes espaciais, sociais e físico-naturais”. Nesse âmbito de relação entre a Geografia Escolar e a Acadêmica, a autora acrescenta ainda que

o desenvolvimento de tais questões é basilar, visto a Base apostar numa proposta pedagógica baseada na aprendizagem por investigação. Uma vez identificada uma situação geográfica, serão articuladas unidades temáticas, objetos de conhecimentos e habilidades com o fim de interpretação da pergunta elaborada. Aqui está o conteúdo! Categorias e conceitos são instrumentos que nos levam à interpretação pretendida, ao mesmo tempo que são aprendidos considerando as interações que sofrem em uma dada situação geográfica. Repito! É nesse caminho metodológico que se constitui o conteúdo geográfico pretendido pela Base (Ascenção, 2020, p. 187).

Ainda sobre o raciocínio geográfico, quesito principal observada pelos autores deste texto relação à BNCC, é impreterível acentuar a formação docente. De modo geral, apesar de a BNCC (Brasil, 2018) não se apresentar como um currículo a ser adotado de forma homogênea em todo o extenso território nacional brasileiro, em algumas passagens do documento se acentua o contrário, como em:

Referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares, a BNCC integra a Política Nacional da Educação Básica e vai contribuir para o alinhamento de outras políticas e ações, em âmbito federal, estadual e municipal, referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação (Brasil, 2018, p. 8).

Percebe-se que o documento normativo é enfático quando diz ser o balizador de elementos decisivos na Educação, como a formação de professores, avaliação e elaboração de conteúdos. Costa (2019, p. 99) pondera que esses são

campos de interesse de agências privadas, que oferecem serviços que abarcam esses três elementos, entre outros, através de orientações educativas sobre competências, como aqueles disponíveis no site do “Movimento pela Base Nacional Comum”, apoiado pela Fundação Lemann, revista Nova Escola, Instituto Inspirare, entre outras instituições.

Diante dos interesses neoliberais, a formação docente questionada de forma acentuada durante a implementação da nova versão da BNCC trouxe a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC – Formação) (Brasil, 2020). Trata-se de um novo documento normativo que ainda carece de estudos sistemáticos sobre as suas potencialidades e peculiaridades, mas nela o imperativo de formar professores com competências vinculadas a projetos de vida, metodologias ativas e, sobretudo, para o uso das tecnologias com ênfase no digital, permanecem, sobretudo porque elas vêm se mostrando “indispensáveis” para o bom exercício profissional docente (Costa, 2019).

A BNC (Brasil, 2020) não faz nenhuma menção sobre o aprofundamento formativo nesse quesito, o que incide em um descompasso entre propostas curriculares e a formação de professores de Geografia. Destarte, tais tensões, observadas pelos autores deste texto sobre os documentos normativos analisados e discutidos brevemente por meio de revisão bibliográfica, podem conduzir a reflexões sobre a condução do ensino de Geografia na contemporaneidade, objetivando não se distanciar de uma postura crítica e indagadora da prática docente frente àquilo que se põe como normas a serem seguidas fielmente.

Considerações finais

O presente texto teve como objetivo trazer breves discussões, com enfoque crítico, sobre as últimas versões da BNCC e da BNC-Formação, tendo como o foco o ensino de Geografia. Pela percepção dos autores sobre esses dois documentos que não se assumem como currículos – mas atravessam proposições curriculares –, a breve análise dos documentos foi orientada por discussões teóricas de autores que se apropriam do tema e convergem para o objetivo aqui proposto.

Percebeu-se que a BNCC (Brasil, 2018) assume uma postura universalista e homogeneizante em busca de um padrão identitário educacional no amplo e desigual território nacional. Apesar de propor flexibilizações em seu texto, as habilidades e competências do documento parecem se direcionar um projeto neoliberal oposto à realidade de grande parte da sociedade brasileira, dando espaço a um mercado educacional que privilegia campos de interesse de agências privadas.

Como componente curricular, a Geografia se atualiza em relação às versões anteriores da BNCC, dando ênfase ao raciocínio geográfico em todo o seu texto. Nesse quesito, a BNCC traz avanços no que concerne à proposta teórico-metodológica para o ensino de Geografia, sobretudo ao unir a Geografia Escolar à Geografia Acadêmica, permitindo o alinhamento entre o letramento científico e geográfico, bem como firmando o pensamento espacial. Contudo, a situação geográfica como método pode ser um quesito problematizador se consideradas as diferentes escalas de um país plural de intensas desigualdades.

Por fim, em relação à formação docente, a BNC-Formação (Brasil, 2020) carece de apontamentos sobre o ensino de Geografia e possui estudos incipientes na área. Todavia, percebeu-se uma contradição entre a BNCC (Brasil, 2018) e a BNC (Brasil, 2020) no que concerne ao raciocínio geográfico, pois, apesar de esse quesito ser extremamente acentuado na BNCC, no documento normativo para a formação de professores não há menção sobre ele, deflagrando assim uma inconsistência entre propostas curriculares e formação de professores de Geografia.

Cabe ainda ressaltar que este texto se apresenta como uma reflexão embrionária para futuras discussões da disciplina para a qual se propôs sua elaboração.

Referências

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ASCENÇÃO, V. de O. R. Base Nacional Comum Curricular e a produção de práticas pedagógicas para a Geografia Escolar: desdobramentos na formação docente. Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 10, nº 19, p. 173-197, jan./jun. 2020.

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COSTA, H. H. C. Teoria curricular e Geografia: convites à reflexão sobre a BNCC. Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 9, nº 17, p. 86-108, jan./jun. 2019.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

KUENZER, A. Z. Exclusão includente e inclusão excludente: a nova forma de dualidade estrutural que objetiva as novas relações entre educação e trabalho. In: LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D.; SANFELICE, J. L. (org.). Capitalismo, trabalho e educação. 3ª ed. São Paulo: Autores Associados, 2002. p. 77-96.

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SILVA, D. M. P. da. Raciocínio geográfico e avaliação formativa: uma análise aplicada ao Ensino Médio. 2014. 146f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

Publicado em 27 de junho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

CARVALHO, Adelson Siqueira; CORRÊA, Hudson Laeber. Percepções crítico-reflexivas sobre os documentos normativos atuais que versam sobre o ensino e a aprendizagem geográfica. Revista Educação Pùblica, Rio de Janeiro, v. 23, nº 24, 27 de junho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/24/percepcoes-critico-reflexivas-sobre-os-documentos-normativos-atuais-que-versam-sobre-o-ensino-e-a-aprendizagem-geografica

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