Si.lên.ci.o... Já falei! – uma reflexão sobre os rituais de silêncio e o silenciamento na sala de aula

Denison Castro dos Santos

Licenciado em Letras (UFPA), especialista em Língua Portuguesa (UFPA) e em Semiótica e Análise do Discurso pela Faculdade Metropolitana de São Paulo, professor efetivo da Seduc-PA, aluno especial (PPGED/UEPA)

Ivanilde Apoluceno de Oliveira

Pós-doutora em Educação (PUC-Rio), doutora em Educação (PUC-SP/UNAM-UAM-Iztapalapa – México), mestre em Educação (UFPB), graduada em Filosofia (UFPA), especialista em Metodologia do Ensino Superior (Ficom) e em Epistemologia das Ciências Humanas (UFPA), professora de graduação e pós-graduação (PPGED/UEPA)

Após um rápido estrondo, ao longe soara uma voz forte e firme que fez reverberar para as salas de aula naquela escola a seguinte mensagem: “Eu já falei: si.lên.ci.o! Não quero ouvir mais barulho. Estudem em silêncio!”. Perguntávamo-nos o que haveria acontecido ali. O que provocara tão intempestiva ordem? Por que um pedido de silêncio tão ruidoso? A questão foi que houve silêncio, aquele definido em dicionários como “estado de quem se cala, privação de falar”, “interrupção de ruído; calada”... Mas uma acepção, porém, não fora ali percebida: “sossego, calma, paz”, pois aquela ordem continuou ecoando e silenciando o pensamento acerca de tudo o que viera depois. O pensamento parece ter sido silenciado (Ferreira, 2009).

Então uma reflexão fora suscitada: qual a importância desse vocábulo e de sua prática para os processos de ensino-aprendizagem? Só se aprende em silêncio? Quais os efeitos práticos daquela mensagem sobre a classe? Será que os ruídos mais provocadores foram os audíveis? Os ali presentes fizeram silêncio ou foram silenciados? Foram várias as perguntas, as quais não temos aqui a pretensão de responder sob o risco de cometermos alguma leviandade. Porém pretendemos, na medida das próprias limitações, um estudo bibliográfico que nos possibilite pensar sobre os rituais de silêncio nos ambientes escolares, sobre os mecanismos e modos e sua contribuição ao ensino e ao aprendizado.

Quando alguém diz Silêncio, por favor!, pensa em “sossego, calma, paz”, que vai permitir o diálogo consigo mesmo e com os demais. Pedimos Silêncio, por favor! para conseguir uma interrupção desse ruído de fundo, tão característico da sociedade contemporânea. Para conseguir pensar, articular-nos, dialogar com os demais, concentrar-nos naquilo que queremos fazer. Silêncio para nós, hoje, quer dizer basicamente falta de ruído ou interrupção do ruído (Izquierdo, 2011, p. 18).

No caso em questão, não seria a ordem dada, por sua própria forma, um ruído que não permitirá aos alunos experimentar a sensação necessária de sossego, calma e paz, tão importantes à internalização dos aprendizados? Podemos especular! Entretanto, temos ciência de que é preciso considerar os contextos para o pedido de Silêncio, por favor!, bem como os da ordem dada naquele tom firme, forte e ruidoso, sem querer aqui justificar quaisquer formas de opressão. Todavia, não podemos nos furtar a este estudo e a esta reflexão.

A cena escolar compreende uma série de sujeitos e contextos que se inter-relacionam de forma indispensável, e essas relações por vezes são agenciadas por determinados procedimentos que constituem ritos/rituais inerentes ao ambiente da escola e, de forma mais específica, da sala de aula. Segundo Pintassilgo e Pedro (2013), “os rituais impregnam toda a vida escolar em todas as suas dimensões, em articulação com o espaço, o tempo, a organização pedagógica e a materialidade escolar”. Por meio desses rituais, histórias são vividas e compartilhadas; conhecimentos são celebrados, vividos e aprendidos para e no desenvolvimento dos sujeitos. Mas também, a depender do ator, da forma e da cena, esse compartilhar pode desvirtuar-se e compor uma peça de opressão, de silenciamento.

Segundo McLaren (1992), os acontecimentos cotidianos no seio escolar, de alguma forma, compreendem certo ritualismo. Isso nos enseja à reflexão sobre as práticas que configurariam os rituais de silêncio e aqueles de silenciamento no contexto da sala de aula. Acerca dessa ideia, Pintassilgo e Pedro (2013) arrazoam que,

ainda que as fronteiras sejam tênues, os rituais distinguem-se, pois, das meras rotinas por via da carga simbólica que transportam, do sentido de que são impregnados, da sacralização de que são alvos. Esse sistema tem como finalidade expressa a integração e o controlo social, mas surge também, por vezes, como um campo de disputas e de resistência, de que são exemplo os rituais tendo em vista a consecução da ordem e do silêncio na escola.

É importante compreender que os ritos escolares não são, necessariamente, ruins, ao contrário. Eles marcam os traços que particularizam e conduzem alguns andamentos no seio da escola; colaboram para a afirmação da própria identidade escolar e de seus atores. Sabemos que alguns desses rituais são agenciados pelo próprio Estado e compreendem certo controle do sistema. Mas, para além do controle por vezes imposto, há um fundo pedagógico que contribui positivamente para construção do sujeito enquanto partícipe de uma estrutura maior que é a sociedade; sujeito esse que, por estar em construção, e dependendo da fase em que se encontre, pode até nem sempre compreender a importância desses rituais, porém irá experimentar seus efeitos positivos ao longo de sua vida.

Contudo, em nome da observância dos rituais dentro da escola, não podemos deixar de questionar, no que tange aos ritos de silêncio, àquela ordem inquisitiva que – mais que promover a formação para o silêncio aprendente – silencia para a vida, promove bloqueios e/ou desajustes comprometedores do desenvolvimento do aluno/sujeito em todas as suas dimensões e que o afasta para ainda mais longe da escola, silenciando-o.

Sobre o ritual

Na obra Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação, Peter McLaren (1992) apresenta um panorama significativo acerca do termo ritual à luz de vários teóricos, dentre os quais filósofos, sociólogos, etnólogos, uma diversidade de olhares que nos permitem vislumbrar possibilidade de análise e os enfoquem no âmbito das pesquisas sobre os rituais. E é a partir desse estudo que compreenderemos o termo/categoria ritual.

Um ritual não é uma ideia misteriosa ou uma abstração piedosa preservada no breviário de algum padre ou paróquia. Ele se estende para além da herança religiosa do ser humano, e é mantido vivo pelo interesse na antiguidade e pelo peso da tradição. Não está necessariamente ligado a experiências noéticas que são inefáveis ou a gestos misteriosos, invocações ou purificações que cercam o tomar de pão e vinho. Os ritologistas contemporâneos dissolveram o halo místico em que os liturgistas conseguiram manter o termo ritual envolto e nos disseram que os rituais são parte da vida humana cotidiana, incluindo atividades seculares (McLaren, 1992, p. 70).

Segundo o autor, a própria constituição do ser humano é ontogenética e cosmologicamente marcada pelo ritual. Toda nossa construção de indivíduos está envolta pela simbologia dos rituais. Compreender, assim, a dimensão do termo é fundamental para que percebamos o quanto os rituais e suas performances são significativos para o nosso desenvolvimento intelectivo; como as simbologias performam nossas ações e nossa forma de pensar. É preciso entender que, na perspectiva moderna, “os rituais são parte da vida humana cotidiana, incluindo atividades seculares” (McLaren, 1992, p. 70). Assim, os fatos rotineiros podem configurar rituais, sinalizar as simbologias e, por que não, as ideologias que nos envolvem, revelando muito do que somos.

Os rituais são atividades sociais naturais encontradas, mas não confinadas a contextos religiosos. Enquanto comportamento organizado, os rituais surgem a partir das coisas ordinárias da vida, os rituais estão sempre e, em toda parte, presentes na vida industrial moderna. Eles não são apenas parte do mausoléu da sociedade; eles permanecem vivos e vitais hoje, como o foram na Grécia antiga e na Babilônia. Sua órbita de influência permeia todos os aspectos de nossa existência (McLaren, 1992, p. 70).

Nossa existência é marcada por rituais de passagem, por movimentos e relações que nos identificam, que constituem nossas identidades. As normas, os termos de condutas, as regras sociais são, por que não dizer, elementos que regram, disciplinam, os rituais a que estamos vinculados cotidianamente. Os rituais, podemos acreditar, são necessários ao sujeito e à sociedade. Do momento mais tenro ao mais complexo e definidor da construção do sujeito, os procedimentos ritológicos concorrem para a constituição do nosso ser como pessoas e como grupo; marcam toda a história da humanidade.

Consideramos que a consciência sobre si e sobre os rituais é fundamental para que o sujeito se perceba como ator social e se identifique como pessoa em construção e transformadora de seu meio, de sua história. E, nesse sentido, o espaço da escola é o terreno no qual esse indivíduo deve encontrar aportes e orientações para que se construa de forma consciente e ativa. Assim, sabedor de que “os rituais não estão confinados a um palco compacto, santuário de igreja ou repartição governamental; na realidade, a ‘aldeia global’ moderna está repleta de sistemas e rituais novos altamente intrincados” (McLaren, 1992, p. 71), o sujeito se torna capaz de engajar-se de maneira mais livre e consciente à dinâmica que cerca o seu dia a dia.

Segundo McLaren (1992, p. 73),

notavelmente, os rituais são parte da ordem natural das coisas (como na ritualização dos animais), bem como consequências da ação humana (como regras e rotinas da vida em sala de aula). A maneira pela qual ritualizamos nossas vidas é cultura somatizada – cultura encarnada em nossos atos e gestos corporais e através deles. [...]

Os rituais se nutrem da experiência vivida; eles germinam no barro das fraquezas humanas e no desejo de sobrevivência e transcendência; eles crescem conjunturalmente, a partir das mediações culturais e políticas que moldam os contornos de grupos e instituições, que servem como agentes de socialização. [...]

Os rituais se tornam parte dos ritmos socialmente condicionados, historicamente adquiridos e biologicamente constituídos, bem como das metáforas da ação humana.

Notamos, assim, que os rituais são também elementos de expressões ideológicas e, por que não dizer, expressões que envolvem as relações de poder na sociedade em geral – e na escola. As regras e as rotinas escolares são permeadas de pequenos rituais que disciplinam as vivências experienciadas naquele chão. Alguns ritos são fundamentalmente disciplinadores, no sentido de manter a ordem e o bom andamento dos procedimentos; outros especificamente “formativos”, didático-pedagógicos. Dentre os disciplinadores/ordenadores, notamos a formação de filas (para a entrada no espaço da escola, para a distribuição de merenda escolar etc.); o levantar das mãos para pedir a fala (durante as aulas ou atividades recreativas ou de prática dos componentes ministrados); o uso de uniformes, o respeito e cumprimentos dos contratos de sala de aula, do regimento escolar etc. são outros símbolos normatizadores – os padrões estabelecidos necessitam de diretrizes.

Vários são os rituais no ambiente escolar; esses são apenas alguns dos impingidos aos alunos e que fazem parte do cotidiano da escola. Porém é importante citar outro que nem sempre está explícito na face do papel, mas que também faz partes dos rituais na escola: o silêncio. É fundamental compreender o conceito, mas, mais que isso, o sentido de rituais escolares – dentre os quais os de silêncio.

Os rituais escolares supõem um sistema, pois os elementos envolvidos neles concorrem para a construção do sujeito de maneira a prepará-lo para a interação e a transformação social, possibilitando que atue com seus pares empregando todos os instrumentos aprendidos e apreendidos. Conforme Pintassilgo e Pedro (2013, p. 120),

o sistema de rituais escolares inclui, assim, gestos e posturas corporais, movimentos e formas de organização, discursos e práticas diversas, envolvendo os atores, remetendo-os para algo transcendente (crenças, valores, conhecimentos) e projetando a sua transformação em comunidade. Os símbolos, rituais, coreografias, cerimónias, celebrações, liturgias ou mitos são parte integrante da cultura escolar, surgindo em estreita articulação com a gramática que a define, e dão corpo a um projeto ideal de transformação da criança e do jovem em aluno ou escolar.

Como em muitos outros rituais, dos mais antigos, o silêncio é elemento constituidor fundamental e necessário para a ritologia das cenas. Silêncio, sim, é elemento de conexão com as expressões e intenções, pois os rituais têm intenções inerentes e específicas. Entretanto, aqui nos deteremos a esse dado no contexto da sala de aula, como é visto e como é trabalhado nos procedimentos didático-pedagógicos de sala de aula.

Silêncio para quê?

Segundo Orlandi (2007), o silêncio constitui elemento fundador e essencial aos discursos, visto ser necessário. É pelo silêncio que se constitui a relação dialógica com o outro e com as próprias contradições; o silêncio tem sentido na dialética das relações. Há que se compreender o silêncio como o espaço do não dito. E isso faz sentido, pois a própria história da humanidade é marcada por lapsos temporais de silêncio, da coisa não dita – marca a partir da qual se dará “a relação de sentido com o imaginário, com a língua e com a ideologia” (Orlandi, 2007).

Refletir sobre o sentido do silêncio é importante quando pretendemos compreender as relações discursivas a partir dos ritos que impregnam a dinâmica escolar, pois sabemos que no chão da escola também ocorrem relações de poder imbuídas de autoridade e de autoritarismo, legitimadas pela força do Estado e pela força daquele que julga deter o conhecimento, sobretudo quando numa posição “superior” à do aluno – como no caso da cena apontada no início deste estudo. Os reflexos positivos ou negativos dessa relação recaem sobremaneira sobre o discente, marcando, por vezes, positiva ou negativamente sua vida inteira.

O silêncio é também linguagem. Há discurso no silêncio, uma vez que sua eloquência é perceptível quando da interação dos sujeitos na cena – no caso desta reflexão, sobre o silêncio na sala de aula. Como linguagem, o silêncio constitui elemento agregador da construção identitária do indivíduo. A forma como é percebido, interpretado, sentido e vivenciado pode concorrer para aprendizados e experiências diversas, libertadoras ou de opressão.

No contexto da sala de aula, os rituais de silêncio são necessários para a verbalização da comunicação dos sujeitos no desempenho de suas performances. O professor deve ser o agente que promova de forma livre, justa, ética e consciente a atitude silenciosa, a fim de passar o turno de fala ao aluno, ordenando também todos esses turnos. A linguagem verbalizada implica a transformação do silêncio para que haja inter-relação dos sujeitos na construção dos sentidos das coisas possíveis de serem ditas e do próprio silêncio. As nuances dos silêncios e das falas dizem muito sobre as relações de poder no contexto da escola e, consequentemente, da sala de aula.

Assim, o silêncio não pode mais ser entendido como algo desprovido de sentido, ao contrário. Estar ou fazer silêncio significa estar ou fazer sentido nos mais diversos contextos discursivos. Ao contrário do que se possa pensar, o sentido do silêncio não pode ser percebido de forma passiva ou negativa. Entretanto, como ensina Izquierdo (2011), mesmo quando há a suspensão de todo e qualquer ruído externo – sejam eles sonoros ou visuais –, existem ruídos outros, de ordem interna, que podem ser mais ensurdecedores que aqueles.

Silêncio, por favor!, pede nosso corpo dolorido às causas da dor, sejam elas externas ou internas. Silêncio, porque a dor traz consigo um ruído terrível, que não nos permite processar nenhuma outra informação corretamente, inclusive que nos poderia levar a aliviá-la (Izquierdo, 2011, p. 68).

A dor pode, em alguns casos, ser metafórica, porém é fato que muitas questões de saúde profissional e pessoal orbitam a saúde mental do profissional docente. Sabemos que a rotina profissional do professor, como a de qualquer pessoa, não se dissocia de sua dinâmica de vida íntima, social e profissional, o que pode, a depender das particularidades de cada um, desencadear instabilidades de humor, baixa autoestima, baixo desempenho etc. – por vezes exacerbados pelos ruídos silenciosos que reverberam internamente. Contudo, e não é novidade, esse profissional (que pode ser um professor) deve aprender a administrar essa demanda de forma que não deixe recair sobre sua clientela (os alunos) os efeitos de sua instabilidade.

Como no contexto apresentado no início deste texto (“Eu já falei: si.lên.ci.o! Não quero ouvir mais barulho. Estudem em silêncio!”), outras formas de externar esses efeitos podem interromper e fechar absolutamente o canal de interação entre os atores em cena – em nosso caso, a sala de aula, os alunos e o professor. É importante dizer que nesse contexto o silêncio é imbuído de sentido e de significado; portanto, não deve ser entendido como ausência de linguagem ou uma complementação razoável da linguagem verbalizada. Assim, a dor dita ou não dita não pode obstruir o canal de interação do professor com o aluno.

Ainda que não possa ser registrado ou mensurado matematicamente, o silêncio é passível de ser analisado, dada sua discursividade nos contextos. Para Orlandi (2007), o silêncio pode ser sentido, “ele está lá”, não se trata de um vazio. Ele nos permite a consciência dos sentidos. E na sala de aula podemos falar de um silêncio aprendente, aquele que oportuniza a internalização do conhecimento compartilhado e construído por todos os atores.

Dessa feita, a prática docente passa pelos ritos de silêncio quando paramos para sentir e ouvir nossos alunos, quando permitimos que aquelas vozes, aqueles olhares e silêncios nos alcancem. Esse silêncio chega a ser poético quando a relação entre todos transborda e permite que todos compartilhemos a vida. É esse o silêncio que constrói. O silêncio eloquente de nossos alunos pode estar narrando acontecimentos profundos, simples, complexos, doloridos, felizes: a fome, o abuso, a violência, a dor, o medo... mas também alguma alegria, discurso que não é externado talvez por timidez ou pelo silenciamento a que o sujeito foi submetido por um discurso opressor/censor.

Se os ruídos silenciosos que nos ensurdecem internamente sobressaem e nos impedem de perceber as vozes, os olhares e os silêncios, o risco de que a relação entre docente e discentes se enfraqueça é muito grande, gerando abismos nos quais vão ecoar as falas e gritos  que irão silenciar todo e qualquer discurso. O risco de que esse atores não mais se ouçam é iminente.

A escola e o professor não podem ser agentes que imponham ritos de silêncio que venham oprimir, limar, silenciar de formar castradora o aluno. A escola e o professor, sim, devem promover o aluno para que sua construção de pessoa se configure segundo suas características particulares, sem deformação de sua personalidade e/ou de sua identidade. O silêncio na sala de aula não pode ser um instrumento de opressão para uma disciplina inquisitiva; deve concorrer, pois, para a construção de uma disciplina que concorra à autonomia do aluno, sua tomada de consciência acerca de si, de sua história e de sua comunidade. Os ritos de silêncio não podem estar a serviço do simples e mero controle ou ordenamento de atividades; devem mediar a relação dialógica e construtiva entre os atores em sala de aula. Assim, eles farão real sentido e jus à sua pertinência nos processos de ensino-aprendizagem.

Silêncio e silenciamento em sala de aula: de atitudes repressivas para dialógicas

Compreendemos que no chão da escola, mais especificamente na sala de aula, as ações que marcam os processos de silenciamento trazem feições de disciplina, mas não aquela que possibilita a construção positiva do sujeito, ao contrário. O silêncio é pretexto para a manutenção de ações silenciadoras transvestidas de disciplina. O que se percebe em maior parte dos procedimentos são ações reguladoras que concorrem para o controle de ações de indisciplina; ações opressivas, impositivas e inquisidoras.

Na situação motivadora desta reflexão, a ação proposta em cena era a de que os alunos silenciassem para que pudessem executar a atividade dada; entretanto, como é sabido, o processo dinâmico de uma sala de aula envolve necessariamente a interação dos atores para o desenvolvimentos das diversas performances, o que significa dizer, numa perspectiva freiriana de educação, que na escola o diálogo, a fala, a voz do aluno devem ter lugar, são fundamentais e devem ser estimulados e respeitados. Porém Freire (2006, p. 132) destaca que

a importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou.

Dentre os diversos momentos silenciosos em sala de aula, há um que diz muito sobre a relação existente entre o professor e seus alunos: aquele solicitado quando das atividades avaliativas quantitativas prescritas pelas fórmulas de verificação escolar. O silêncio solicitado é quase sepulcral. Não é permitido falar, no máximo dirigir-se ao professor para alguma indagação sobre o objeto posto sobre a mesa para “verificação do aprendizado”. Fora isso, “si.lên.ci.o”.

É preciso, contudo, perguntar quais as reais causas e consequências dessa imposição. Em nosso entendimento, o processo avaliativo deve ser constante e por inteiro, deve ser construído pela participação de todos os atores em sala de aula, a fim de que faça sentido. E o silêncio desse momento deve ser de reflexão para a ação que virá depois, quando da aplicação do conhecimento construído, partilhado e aprendido para a vida toda.

Nessa perspectiva, o rito de silêncio faz sentido. Do contrário, servirá apenas para aumentar o abismo na relação entre professor e aluno. Mais que isso, entre o aluno e a possibilidade de desenvolvimento significativo de sua construção como pessoa, uma vez que sua voz foi silenciada em vista do cumprimento de um ritual com o objetivo de alcançar resultados possíveis de serem tabulados e apresentados como resposta de um trabalho “educacional” sem sentido. É necessário problematizar isso, questionar qual o sentido de uma educação na qual o principal ator, o aluno, é silenciado, não podendo se expressar espontaneamente.

Como já dito, o silêncio é elemento importante para as relações de interação; nele há sentido e comunicação, porém ele não pode ser pretexto para atitudes de controle alienante ou mesmo de penalizações. Esse tipo de abordagem apenas revelaria um descompasso nessa relação. Alguém estaria possivelmente sendo oprimido, silenciado. Dessa maneira, compreendemos que as práticas autoritárias são próprias dos que se acham detentores do saber, por vezes alienados desde seu processo de construção como pessoas submetidas aos jugos de outros dominantes. Ou seja, estarão reproduzindo o ciclo a que estiveram submetidos. Profissionais de Educação com esse perfil tendem à censura da fala do aluno, não conseguem oportunizar a real liberdade das falas e da escuta. Ouvir é fundamental.

Na sala de aula, até mesmo pela configuração da relação de poder instituída pelo próprio sistema, a posição do aluno não o favorece. O professor é quem “dita” as regras. É ele quem diz a hora de falar ou silenciar. Segundo o sistema, “ele detém o conhecimento” e, a partir daí, pode dizer. Mas uma reflexão deve ser provocada: que professor é esse que ainda hoje pensa dessa forma, que identidade docente foi construída ao longo de sua formação e de sua experiência? Todavia, esse não é o nosso foco aqui.

Sabemos que toda solicitação de silêncio em sala de aula tem uma intencionalidade, mas é preciso que ela fique clara para todos os atores. Ela precisa fazer sentido para todos. E, por que não dizer, devemos nos trabalhar e trabalhar com nossos alunos uma educação para o silêncio; contudo, um silêncio eloquente, reflexivo e transformador, que corrobore o processo de construção do ser pessoa humana.

O silêncio fala; sua narrativa pode vir carregada de experiências diversas. A empatia e a experiência do professor devem lhe permitir notar essa voz, sua história, e partindo daí ajudar na (re)construção das possibilidades de transformação e, quiçá, de libertação. O silêncio proposto precisa fazer sentido para o aluno, por isso necessitar ser aprendido de forma construtiva – junto com o professor, e não a partir dele. Dessa maneira, todos os rituais nos quais o silêncio for peça-chave farão sentido. E o silenciamento deixará de existir, pois os alunos já terão compreendido a importância de silenciar para construir. Não será mais necessária a imposição, senão a proposição, do silêncio.

Como já falamos, as relações em sala de aula, assim como em qualquer outro espaço na escola, são relações de poder; por isso, estão imbuídas de ideologias, umas impostas via documentos normativos e outras construídas e impostas por quem normalmente domina essa relação. Sobre isso também é importante refletir, pois acreditamos que toda imposição ideológica tende a silenciar o discurso do outro nessa relação, não lhe permitindo crescer com possibilidade de libertar-se da opressão sofrida. O silenciamento precisa ser problematizado, refletido e desconstruído no espaço escolar, do contrário o processo de construção do aprendizado perde seu sentido e sua função.

Quando de sua reflexão sobre o silêncio, Orlandi (2007) apresenta uma análise que ressalta alguns aspectos ideológicos do silenciamento, apontando para um silêncio fundador e para uma política do silêncio – esta, o silenciamento mesmo. Esse silenciamento é apresentado pela autora como forma de interdição – pela qual determinadas falas são subjugadas na intenção de que determinados sentidos não se constituam. Nessa perspectiva, compreendemos por estes estudos que o silêncio não constitui a falta das palavras, e sim o apagamento, a exclusão, a destituição dos sentidos.

O silenciamento, assim, performa a censura imposta pelas ideologias vigentes que reafirmam as desigualdades. Essa censura visa à interdição das possibilidades de falas, dizeres, a fim de que não sejam produzidas construções significativas e transformadoras, que possam concorrer para a formação de sujeitos críticos e reflexivos. Quando se proíbe o outro de externar sua fala, seu dizer, é fato que aí se impõem juízos de valor e reflexos das ideologias dominantes, historicamente constituídas pelas relações de poder e pela lógica do capital.

Fato é que só pode ser silenciado aquilo que apresenta possibilidade de se dizer e que faz sentido; do contrário, o que se tem não constituiria um discurso provido de razoabilidade. No chão da escola também esses reflexos se manifestam nas diversas práticas propostas e impostas à comunidade de alunos e professores. O espaço da escola deve ser um lugar democrático no qual todos os dizeres sejam possíveis de serem ditos e estimulados para que, pela construção democrática e participativa do conhecimento, os diversos discursos façam sentido e o silêncio seja também eloquente.

O silenciamento é por si mesmo a castração de todo discurso, de toda fala que constrói. Assim, não cabe a corrupção dos rituais escolares de silêncio com objetivos opressores. Eles são necessários para a própria rotina da escola, porém não podem ser pretexto para o silenciamento ou para imposição de ideologias que visem manter as estruturas sociais de preconceito e opressão.

Considerações finais

O que pretendemos com este estudo não foi necessariamente estabelecer dimensionamentos e definir as categorias apresentadas de “silêncio” e “silenciamento”, mas sobre o silêncio, refletir acerca dos rituais escolares de silêncio como elementos significativos e necessários ao ambiente escolar, se, e apenas se, propostos com fins à construção de pessoas mais críticas e reflexivas, cujos discursos traduzam a fala de um sujeito pleno de seu potencial e de suas possibilidades de ser e, como diria Freire, “ser mais”. Dessa feita, consideramos o silêncio produtivo.

A escola tem o papel social de colaborar para a construção de sujeitos capazes do convívio em sociedade. Esses sujeitos devem, por si mesmos – autônomos, críticos e reflexivos –, transformar suas realidades e a história. A escola deve ser o cenário mais propício para o desenvolvimento das práticas discursivas constituídas de sentido. O “Eu já falei: si.lên.ci.o! Não quero ouvir mais barulho. Estudem em silêncio!” do início deste texto parece não fazer sentido, a não ser como prática de silenciamento, de censura do discurso construtivo e partilhado.

Os diversos ruídos que orbitam os rituais escolares e as concepções ideológicas que permeiam a formação da maioria dos professores, infelizmente, parecem anuviar a forma como os docentes desenvolvem suas práticas e, consequentemente, incidem sobre a formação/construção de seus alunos. Posto isso, entendamos que o processo de ensino-aprendizagem deve ser dialógico, não como oposição ao silêncio, mas no qual o silêncio seja dotado de significados. Entretanto, o que percebemos a partir deste estudo é que os rituais de silêncio no espaço da escola são, na maioria dos casos, reservados ao cumprimento da disciplina inquisitiva e castradora, o que reflete a ideologia dominante. O silêncio é imposto de forma a silenciar o indivíduo.

Compreender, então, o silêncio como elemento importante na comunicação e na relação dialética entre os sujeitos é fundamental para que ele faça sentido e possibilite a construção mais ampla dos alunos. Assim, mesmo com todos os esforços para superação das tensões presentes no espaço escolar, é necessário empreender na promoção do silêncio aprendente para que todos os atores percebamos suas nuances nesse processo de ensino-aprendizado. Os ritos de silêncio, dentre os demais ritos escolares, devem estar para a educação, e não a educação para os ritos, pura e simplesmente.

Referências

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua portuguesa. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Fundação Dorina Nowill para Cegos, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários para a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

IZQUIERDO, Iván. Silêncio, por favor! 2ª ed. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2011.

McLAREN, P. Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes, 1991.

PINTASSILGO, J.; PEDRO, L. Rituais escolares e construção da cultura escolar em Portugal na transição do século XIX para o século XX. In: MORRAGO, M. J. (coord.). Educação e património cultural: escolas, objetos e práticas. Lisboa: Colibri/IUEL, 2013. p. 33-48.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

Publicado em 27 de junho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SANTOS, Denison Castro dos; OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Si.lên.ci.o... Já falei! – uma reflexão sobre os rituais de silêncio e o silenciamento na sala de aula. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 24, 27 de junho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/24/silencio-ja-falei-r-uma-reflexao-sobre-os-rituais-de-silencio-e-o-silenciamento-na-sala-de-aula

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