Onde está a poesia? A experiência literária nos anos iniciais do Ensino Fundamental

A poesia, segundo Jorge Luis Borges, está na vida. Falar de poesia é “falar, olhar, se sensibilizar com a vida, que pode estar à sua espreita a qualquer momento” (Borges, 2000, p. 15). A poesia se configura como um direito das crianças, “um bem cultural e social a ser compartilhado, como arte a ser apreciada” (Dutra, 2021, p. 124). Buscando assegurar a efetivação desse direito às crianças do 1º ciclo de Formação Humana de uma escola pública federal de Belo Horizonte, desde o ano de 2010 realizamos o projeto de ensino Literatura em Família.

A ação a ser relatada neste trabalho tem a formação de leitores literários como foco, buscando constituir-se como um espaço de oportunidade para o olhar, o sentir e para a compreensão do mundo a partir da sensibilidade pela palavra e sua singularidade. O projeto é fruto de uma permanente busca por estratégias que buscam ampliar o repertório literário das crianças na faixa etária de 6 a 9 anos, bem como de suas famílias, envolvendo-os em um ambiente afetivo, propício à experiência literária, a partir da leitura, da apreciação e da recitação de poemas.

A promoção de experiências literárias no ambiente escolar favorece o contato com as diferentes vozes e com os diferentes tempos e espaços que o texto literário abriga. É no campo literário que encontramos um não lugar de verdades absolutas, dado que a literatura abre caminho às incertezas e à interrogação constante. Tudo o que muitas vezes não é permitido vivenciar no ambiente escolar, vivencia-se pela literatura.

Visando ampliar os horizontes dos leitores em formação de modo sensível e significativo, a literatura é um dos eixos centrais da prática pedagógica nos anos iniciais do Centro Pedagógico da UFMG, um colégio de aplicação de Ensino Fundamental, organizado em ciclos de formação humana. O Centro Pedagógico adota o sorteio para o ingresso dos alunos, havendo assim uma rica diversidade do ponto de vista sociocultural. Seu objetivo maior é constituir-se como campo de experimentação e de pesquisa na Educação Básica e na formação de professores e profissionais que têm o ambiente escolar como campo de atuação.

A experiência aqui relatada diz respeito especificamente às ações do projeto que emergiram do ensino remoto emergencial (ERE), quando se buscou utilizar ferramentas digitais que possibilitassem que as crianças do 3º ano (e suas famílias) vivenciassem e compartilhassem experiências literárias a partir do gênero poesia. Segundo Walty (1992), a poesia faz parte da linguagem infantil. Crianças utilizam frases, expressões e elaboram perguntas impregnadas de sentido figurado, dentro de uma percepção poética do mundo. A especificidade do momento da alfabetização contribui para um trabalho com poemas variados, que apresentam um cuidado especial com o jogo de sentidos, a sonoridade e o ritmo das palavras. Percebe-se, assim, a contribuição desse gênero literário no processo de alfabetização e letramento das crianças.

A iniciativa justifica-se, portanto, em virtude dos desafios que se apresentam na prática escolar de abordagem do texto literário, fato resultante da falta de formação dos professores nesse campo. O professor se defronta permanentemente com inúmeras dúvidas quando se propõe a trabalhar com a literatura em sala de aula. Segundo Zilberman (2003), a Literatura Infantil apresenta-se como um campo de trabalho extenso e inexplorado. Alguns equívocos metodológicos, tais como ler livros para realizar provas, ainda são muito frequentes nas diferentes instituições educacionais. O avanço da teoria literária nem sempre é acompanhado por avanços nas práticas realizadas em sala de aula. Soluções mirabolantes são buscadas, contudo possibilitar o acesso a textos é sempre o passo mais importante a ser perseguido.

A produção literária para crianças no Brasil tem crescido a cada ano. Entretanto, pesquisas que analisam a utilização dos textos em sala de aula ainda são escassas. Faz-se necessário constituir um fórum de discussões permanente entre as instâncias que se interessam pela mediação e pela recepção da leitura literária com o objetivo de estimular a divulgação de trabalhos e experiências positivas de abordagem do texto literário no contexto da sala de aula.

Este projeto encontra-se nessa perspectiva e tem por objetivo manter-se vivo no debate acerca da importância do trabalho com o texto literário, desde os primeiros anos do Ensino Fundamental. Entendemos que não se pode ampliar o conhecimento do universo literário apenas com críticas. A conjuntura exige que os educadores sejam propositivos, em especial que pensem em projetos variados de abordagem do texto literário, contribuindo, assim, para a formação de leitores literários.

Desse modo, a proposta didática busca envolver crianças e suas respectivas famílias com textos literários, especificamente os poéticos. A preocupação é com a realização de uma prática pedagógica que busque uma escolarização adequada da literatura (Soares, 2003), sem a pretensão de definir verdades, mas que reflita e analise avanços observáveis a partir da experiência vivida.

Desenvolvimento

Semanalmente, as crianças recebem um poema escolhido pela professora a partir de uma curadoria estabelecida pelos critérios de sonoridade, adequação temática e compositiva, a fim de possibilitar o acesso das crianças e suas famílias a um produto cultural estético qualificado: o texto poético.

Temos como objetivos específicos, promover experiências literárias junto aos estudantes e suas famílias, compreendendo que as práticas literárias assumem uma vital importância na formação humana, além de desenvolver a percepção estética, o espírito crítico, o lúdico, o belo e a vivência de emoções, por meio da leitura compartilhada de poemas.

O projeto Literatura em Família organiza-se da seguinte forma:

1. a criança leva para casa, às sextas-feiras, um texto poético para ser lido com sua família;
2. na semana seguinte, no primeiro momento da aula, a rotina organiza-se em torno da discussão da experiência de leitura do poema;
3. em seguida, faz-se um convite para a recitação do poema, evento nomeado Palco Poético;
4. quando o poema constitui a letra de uma canção, a melodia é trabalhada junto com os versos;
5. realizam-se, também, produções artísticas diversas a partir dos temas abordados nos poemas; e
6. os poemas são arquivados em uma pasta individual, organizada pelas crianças e suas famílias.

A partir de 2021, em função do ensino remoto emergencial (ERE), o envio dos poemas foi operacionalizado por meio de postagem digital na plataforma Moodle, na aba da disciplina de Língua Portuguesa. As crianças continuaram a receber, a cada semana, um novo poema, com temas diversos, sempre focando a ludicidade, o jogo das palavras, o sentido e o ritmo dos versos.

A partir do compartilhamento da leitura e a conversação literária dos textos poéticos, revelando os conhecimentos prévios que os alunos possuem sobre os diferentes temas abordados, ricos momentos de diálogo se instauraram. As crianças faziam os relatos de suas experiências de leitura em família.  Assim, percebemos a necessidade de ampliar o Palco Poético para outros espaços. Desse modo, a ação atravessou as paredes virtuais da sala de aula e chegou à rede de internet, por meio de um podcast intitulado Vozes Literárias, disponível na plataforma Spotify.

Foi possível perceber como os textos literários em versos são importantes para constituir um leitor na formação integral da criança. No processo de ensino-aprendizagem da língua escrita, esse gênero textual é de fundamental importância. A rima e o jogo com as palavras proporcionam habilidades voltadas à consciência fonológica da criança e à criatividade. O texto poético expressa a polissemia da língua, estimulando a poeticidade natural da criança. As famílias relataram quão positiva foi a prática poética para aproximar os membros da família, além de aproximar do universo literário, o projeto proporcionou fecundos momentos de discussão.

Considerações finais

O projeto Literatura em Família tem revelado a importância de dar um enfoque estético sobre Literatura em sala de aula, pois possibilita a percepção do papel do professor nesse encontro da criança com o texto literário. A utilização do texto poético com as crianças revela também como a escola pode contribuir com a formação dos leitores, bem como de suas famílias. O convívio com os textos alarga horizontes, devido ao diálogo e à troca de experiências que proporciona, tanto nas casas dos alunos quanto na sala de aula. Uma infinidade de experiências é relatada pelas crianças quando se discute sobre poesia.

O envolvimento e as relações que as crianças estabelecem, em casa e na escola, a partir dos textos trabalhados, contribuem para a ampliação do conhecimento de si mesmas, de suas habilidades e possibilidades, bem como do ambiente no qual vivem. O estímulo à verbalização da leitura realizada contribui para a formação de um leitor crítico, capaz de assumir uma postura questionadora diante das informações que circulam nos textos. A literatura permite, assim, “o conhecimento do mundo e do ser” (Cândido, 1972) e a prática voltada para a fruição do texto poético, contribuindo para a manutenção do “estado de poesia” dos estudantes, tal como salienta Sorrenti ao afirmar que, independente de sua condição social, “a criança vive em estado de poesia” até que esbarra na sistematização da linguagem (Sorrenti, 2007, p. 18).

Por fim, podemos afirmar que o projeto permite uma relação profícua entre a criança e a poesia, pois, ao experienciar versos, aliterações, sonoridades e polissemias, a criança se aproxima efetivamente dessa linguagem artística, desconstruindo e reconstruindo sentidos, experimentando e exercitando de fato a liberdade poética de recuperar a natureza surpreendente da palavra.

Referências

BORGES, J. L. Este ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CÂNDIDO, A. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Ciência e Cultura, 1972.

DUTRA, E.; MARTINS, L. Poesia na escola: a prática de ler poemas para as crianças.  In: WEISZ, T.; TAVARES, C. (org.). Literatura e Educação. Porto Alegre: Zouk, 2021.

EVANGELISTA, A. A. M.; BRANDÃO, H. M. B.; MACHADO, M. Z. V. (org.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. 2ª ed. 1ª reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

PAULINO, G.; WALTY, I. Teoria da literatura na escola: atualização para professores de I e II graus. Belo Horizonte: UFMG/FALE/Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, 1992.

PAULINO, G.; COSSON, R. (org.). Leitura literária: a mediação escolar. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A. A.; BRANDÃO, H. M. B.; MACHADO, M. Z. V. (org.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. 2ª ed. 1ª reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 17-48.

SORRENTI, N. A poesia vai à escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

ZILBERMAN, R. A Literatura Infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.