Um Mundo Mágico da Leitura: os contos e encantamentos na alfabetização

Islen B. R. Machado

Pós-graduada em Educação Básica nos Anos Iniciais (Colégio Pedro II), mestranda (Profept/CP II), especialista em Educação Especial e Inclusiva (UCAM), em Orientação Educacional e Pedagógica e em Neuroeducação (SJT), professora da rede municipal do Rio de Janeiro

A sala de aula não pode ser lugar de comodismo e de apatia pedagógica. O tempo e as experiências com as crianças despertam minha compreensãode que ensinar a ler e escrever não é tarefa fácil nem para os mais experientes em alfabetização. Além disso, este trabalho não se limita apenas à escola, porque aprender envolve processos complexos e diversos, e a criança já tem sua leitura de mundo antes mesmo chegar ao ambiente escolar.

O cenário de muitas escolas na rede em que atuo é de salas superlotadas, professores engessados em sua prática, sem motivação, apresentandonos conselhos de classeum discurso em que culpam o aluno por não aprender e a família por não o acompanhar. Crianças “incluídas” encontram-se sem mediadores e muitas outras com transtornos visíveis estão sem laudos, práticas pedagógicas e currículosadaptados. Alunos em situação de abandono, que residem no entorno da escola, em comunidades, vivem momentos de extrema tensão quando acontecem conflitos entre milicianos e policiais. São muitos os meninos e meninas que, fora da escola, estão sujeitos a tais circunstâncias.

Além desses desafios, a todo momento sou impelida a ressignificar os conhecimentos aprendidos desde a época do Curso Normal e da graduação em Pedagogia. Aprender com as criançasé respeitar seu tempo e saber que, antes mesmo de segurarem um lápis, elas já rabiscam, escrevem de forma espontânea e brincam com letras e números do celular. Não chegam à escola como um livro em branco, como é pensamento de alguns teóricos behavioristas antigos, como John Locke (1999), que acreditava que a criança nasce como uma tábula rasa, sem nenhum conhecimento.

Ferreiro e Teberosky (1984, p. 68) corroboram minhas reflexões quando escrevem que “por trás de uma criança que segura o lápis e escreve, de um olho que lê e de um ouvido que escuta, está um sujeito que pensa sobre a escrita”.

Minha caminhada na educação iniciou-se em 1995, emuma escola de formação de professores,o Instituto de Educação Roberto Silveira, localizado em Duque de Caxias. Quando chegou a época de fazer os estágios nas escolas, deparei-me com situações novas,sobre as quais não tinha aprendido na formação, e percebi que a dinâmica em sala de aula era totalmente discrepante de tudo o que a teoria e os autores defendiam, mesmo entendendo que teoria-prática se coadunam.

Reflexões da formação inicial como docente

Muitos questionamentos foram elaborados a partir das primeiras experiências em sala de aula: como ensinar uma criança que não para de chutar ou que xinga o tempo todo? Como favorecer um espaço afetivo e alfabetizador diante da agressividade? Como usar o lúdico para alfabetizar? Eram tantas dúvidas que me acompanharam no início da formação – e até hoje algumas não foram respondidas, porque nem tudo precisa de uma resposta.

Confesso que o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) onde estagiei era mais um ambiente de terror do que alfabetizador. Encontrava-me em uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental, com mais de trinta crianças sem limites, uma sala sem mural, sem apoio pedagógico, em meio a tantos problemas que quase não sobrava tempo para ensinar.

Em 2004, ingressei no Centro Universitário Augusto Motta (Unisuam) para fazer graduação em Pedagogia. Os três anos de estudo nesse nível contribuíram muito para a minha formação. Mesmo depois de graduada, novos questionamentos foram elaborados ao longo da minha experiência profissional. Ao dar aula para uma turma de 3º ano do Ensino Fundamental, encontrei um grupo de crianças quenão estavam alfabetizadas. Fui convidada a alfabetizar mais da metade da turma, que, de acordo com o Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), estava em déficit pedagógico, e caminhamos favoravelmente nesse desafio.

Atualmente, o que me motiva e me faz mais feliz é estudar e estar em diálogo com os alunos, nos afetando e aprendendo juntos. Esse anseio e investimento na minha formação é contínuo, porque sei daminha responsabilidadecomo professora: ser pesquisadora da minha prática. Por isso, em 2017 ingressei no Programa de Residência Docente (PRD) do Colégio Pedro II. Nesse curso, tive a oportunidade de olhar minhas práticas pedagógicas por outro ângulo e refletir sobre os processos de aprendizagem, o que, segundo Smolka (2012, p. 35), significa “pensar a alfabetização em termos de interação e interlocução em perspectiva de uma Teoria da Enunciação e Análise do Discurso”.

Novos questionamentos surgiram: como ensinar alunos que desejam aprender, mas que apresentam dificuldades de aprendizagem? Qual caminho seguir? Como possibilitar a socialização desses alunos em sala de aula? Nesse movimento de reflexão e metacognição sobre minha prática pedagógica, tenho buscado conhecer melhor cada criança individualmente. Ademais,venho participando de congressos, seminários, jornadas científicas de Neuroeducação, assistindo a lives sobre a temática e atuando em grupos de estudos que se preocupam em investigar as muitas linguagens e os pesquisadores que são referência em linguagem e desenvolvimento infantil. Também estou realizando cursos sobre transtornos de aprendizagem e me debruçando em leituras sobre o assunto para tentar entender o que não é visível e gera falta de atenção, de foco, agressividade e tantas outras situações que afetam os sujeitos de várias maneiras.

Apesar dessa problemática que intervém nos processos de aprendizagem da leitura e escrita, permaneço sensível às conquistas diárias dos alunos da minha turma. Quando incentivadas e percebidas, as crianças se agigantam, avançando em seus desafios.

Pensando assim, movo-me em busca de um olhar sensível e uma escuta responsiva, entendendo que cada um tem seu tempo enem sempre todos serão alcançados da mesma forma. Compreendo a sala de aula como um espaço plural, mas também singular, discursivo, composto por múltiplas aprendizagens em relação às diversificadas relações, à negociação de sentidos, à empatia e ao respeito.

A realidade da escola em que atuo, os problemas e dilemas encontrados como professora alfabetizadora são os mesmos de muitos professores que lecionam na rede pública. Refletir sobre os processos de aprendizagem da leitura e escrita de crianças a partir do registro de um projeto pedagógico e compartilhar essa experiência pode ajudar os professores a revisitar suas práticas com carinho. Muitas vezes, culpamos a realidade de vida das crianças por sua não aprendizagem, mas deixamos de lado a reflexão sobre nosso ensino, nossas práticas e a relação com os sujeitos. Assim, quando o ano letivo se encerra, possivelmente teremos crianças que não conseguiram dar conta de um currículo sem sentido, no entanto repleto de cobranças. Nós, educadores, temos responsabilidade com cada criança que frequenta a sala de aula.

Apesar de Soares (2011) ter feito a distinção entre os termos alfabetização e letramento, ainda identifico práticas alfabetizadoras que privilegiam o ensino de unidades menores da palavra (sílabas, letras), deixando de lado a leitura em sala de aula e a presença de diferentes textos. Nesse sentido, observo na realidade de diversas escolas, particularmente no CIEP Metalúrgico Benedito Cerqueira, onde trabalho, crianças que ainda não estão alfabetizadas, o que enfatiza a necessidade de projetos de leitura, assim como a importância do registro docente e a revisão de suas práticas.

Em 2018, participei dos Encontros de Professores de Estudos sobre Letramento, Leitura e Escrita (Epelle), grupo de estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a professora Ludmila Thomé. Foram dias encantadores e foi possível compartilhar nossos fazeres docentes em sala de aula e práticas que foram bem-sucedidas ou não. Ter a oportunidade de dialogar com a academia sobre medos, alunos, práticas vai ao encontro de nossas pesquisas, sendo professores reflexivos e nos impulsiona a não olhar apenas para as dificuldades. Conforme Vygotsky (1979) afirma, notar somente os problemas pode nos paralisar e não nos levaria a enxergar as possibilidades, abrindo caminhos que não nos engessem.

Participei também de outro grupo de estudos no Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp/UFRJ), com as professoras responsáveis Graça Reis e Marina, o que viabilizou conversas iniciais com professores do Ensino Fundamental. Tive algumas dificuldades para frequentar todos os encontros; no entanto, me retroalimentava quando conseguia participar da roda de conversa, pois tínhamos momentos de interação, redescobertas e provocações. Percebi que estou no caminho certo, repleto de possibilidades, sendo impossível falar em educação sem que a alma se mova ou sem a inquietude necessária, de que tanto falava de Paulo Freire em seus diálogos.

Acredito que aprender não acontece apenas na escola, pois os saberes nos rodeiam e aprendemos o tempo todo, nos mais diversificados lugares. A criança tem o direito de viver sua vida criativamente e precisamos sempre ver o mundo com novos olhares. Metaforicamente, esse olhar nos faz caminhar pela mesma rua apreciando-a como se fosse a primeira vez, e a educação também nos traz esse encantamento.

Metodologia

Todos os dias, de março a novembro, contava histórias infantis, principalmente contos de fadas, e valorizava as tentativas de leitura e escrita de cada aluno, oportunizando intencionalmente momentos da literatura em que os estudantes seriam os próprios leitores. As crianças foram incentivadas a escrever e ler da forma que soubessem e, pelo relato das atividades, criamos coletivamente um projeto de leitura e escrita: O Mundo Mágico da Leitura e Escrita.

As etapas desse projeto estavam previstas: situações de leitura e escrita; momentos lúdicos com músicas, vídeos, jogos e dramatizações. As produções escritas das crianças foram realizadas no espaço da sala de aula, não necessariamente sentados enfileirados, mas em momento livre, em que as mediações eram feitas a cada instante. Os textos foram dialogados durante todo o processo, com o objetivo de acompanhar e mediar os avanços e retrocessos de cada aluno. Os textos escritos pelas crianças foram encadernados; a intenção inicial era de que cada autor-aluno compartilhasse suas produções e tentativas com a turma.

Ler e escrever não era uma tarefa penosa, mas sim divertida e repleta de sentido. Fizemos o encerramento do projeto com uma festa em que a convidada de honra foi a bruxa, uma personagem popular que encantou ainda mais os alunos com a sua presença. A turma maravilhou-se com o livro Bruxa, bruxa, venha à minha festa, de Arden Druce, e se envolveu no mundo imaginativo e criativo. Antes de a bruxa chegar, expliquei que não precisariam ter medo, porque ela não era má, mas sim muito legal e gentil. Procurei desmistificar o sentido da palavra bruxa, rompendo com o imaginário popular de que todas as bruxas são malvadas. Acredito que, quanto mais houver emoção na leitura, mais fácil será para o aluno aprender, pois o que é prazeroso fica gravado na memória.

Com essas atividades, trabalhamos o projeto de forma bem lúdica. Na oportunidade, os alunos puderam ser autores de um livro com frases baseadas nos contos lidos, escrevendo espontaneamente.

Nesse projeto, pude acompanhar os processos de idas e vindas da escrita das crianças, suas tentativas,seus erros e seus avanços. Organizei, em sala, grupos de alunos de forma que pudessem interagir e aprender juntos. Segundo Freire (1996, p. 25), “quem ensina aprende ao ensinar. E quem aprende ensina ao aprender”; por isso trabalhei com reagrupamentos nos quais os alunos que já estavam escrevendo com mais autonomia ajudavam os outros que tinham menos independência na escrita.

O dia em que me fantasiei de bruxa e contei a história Bruxa, bruxa por favor venha à minha festa foi muito especial e registrei algumas falas: “Ai, estou ansiosa para a festa”; “A festa vai ser assustadora”; “Eu queria que nunca tivesse acabado”; “Tia, adorei a nossa festa. Obrigada”.


Figura 1: Festa com a Bruxa
Fonte: Acervo da autora.

Figura 2: Contação de histórias, jogos, brincadeiras...
Fonte: Acervo da autora.

Durante a duração do projeto, trabalhamos na roda de leitura muitos jogos, como Hand Spinner, um brinquedo, confeccionado em plástico ou metal, que pode ser girado entre os dedos da mão, que adaptei com personagens das histórias infantis contadas. Fiz assim porque, de acordo com o pensamento de Abramovich (1989, p. 16), “é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas histórias... Escutá-las é o início da aprendizagem para ser leitor, é ter um caminho absolutamente infinito de descobertas e de compreensão do mundo”. Iniciamos as atividades com os contos infantis que foram desenvolvidos em sala de aula e encadernei todas as produções escritas como se fossem um livro.

Conclusões sobre o projeto de leitura

Tive a oportunidade de conversar sobre essa experiênciano 1º Fórum Estadual de Alfabetização do Rio de Janeiro (Fearj/UFRJ) e dialogar sobre práticas bem-sucedidas, mas também a respeito de erros que constituíram a minha caminhada na alfabetização; eles fizeram com que eu buscasse outras possibilidades que pudessem afetar positivamente a mim e aos alunos. Estudar tem sido o melhor lugar para ressignificar minha docência; isso não demonstra que não errarei, mas certamente que os danos serão menores.

Com o resumo que mandei para o Fearj, fui convidada a ampliar o relato para participar da publicação de um livro. Nesse dia, conheci a professora Marlene Carvalho, que é referência em alfabetização, e compartilhei algumas das minhas angústias da sala de aula. Em outubro de 2018, fui convidada, juntamente com colegas de outras escolas, pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro para participar de uma homenagem em uma cerimônia intitulada Ao Mestre com Carinho. Recebi uma moção na categoria Professor Alfabetizador, sendo a única professora da 5ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) homenageada nesse grupo. A diretora e as coordenadoras da CRE prestigiaram esse momento encantador para mim e que ficará eternizado em minhas memórias afetivas.

Também fui homenageada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) no Prêmio Paulo Freire, na categoria das práticas bem-sucedidas, o que ocorreu no auditório da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Essa premiação teve impacto imensurável na minha vida, porque falar de Paulo Freire é alimentar a esperança que não é por espera, mas uma necessidade ontológica.

A busca pelo pensar reflexivo nos emancipa e nos torna mais habilidosos na organização das atividades, no planejamento das ações, controlando a impulsividade e ajudando o aluno a pensar criticamente. Sendo assim, tenho participado de grupos de estudos, dos programas de mestrado como aluna especial e ouvinte, estudando melhor o campo da alfabetização, os autores que são referência e a linguagem, porque entendo que pensar coletivamente nos possibilita enunciar nossas incertezas. Freire afirma que, para pensar certo, é preciso que estejamos não muito “certos de nossas certezas”; é necessário estarmos abertos ao conhecimento que se instaura como novo e não dar crédito demasiado ao saber que se “fez velho” (FREIRE, 1996, p. 28).

Referências

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989.

BRASIL ESCOLA. Hand Spinner. s/d. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/fisica/hand-spinner-fisica.htm. Acesso em: 14 jul. 2021.

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Trad. Diana M. Linchestein et al. Porte Alegre: Artes Médicas, 1984.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ª ed. São Paulo: Cortez, 1989. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2014/10/importancia_ato_ler.pdf. Acesso em: 23 jul. 2000.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez, 2012.

SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2011.

VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. Lisboa: Antídoto, 1979.

Publicado em 11 de julho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MACHADO, Islen B. R. Um Mundo Mágico da Leitura: os contos e encantamentos na alfabetização. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 26, 11 de julho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/26/um-mundo-magico-da-leitura-os-contos-e-encantamentos-na-alfabetizacao

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.