O apagamento histórico como construção da memória em dança no Brasil

Ingrid de Melo Labeta

Mestranda (PPGArtes/UERJ), licenciada em Dança, pós-graduada em Neurociência Pedagógica e Neuropsicomotricidade (UCAM)

A escrita da história da Dança no Brasil é um fenômeno recente que vai ao encontro de seu processo de formação profissional. Esta composição narrativa destaca os esforços para a constituição de um corpo de baile brasileiro para atender às necessidades artísticas, políticas e econômicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909 com forte afinidade com a cultura francesa. Esta pesquisa se objetiva analisar em quais cenários a produção sobre a história da Dança é inserida para que se possa discutir as desigualdades nas produções bibliográficas que podem ter papel fundamental para a manutenção da memória em Dança e seu desenvolvimento ter estado sob a ótica do balé clássico no país.

A produção artística e intelectual com propósito de representação de uma personalidade ou população em determinado fato histórico está implícita ou explicitamente para criação, fortalecimento ou até substituição de uma memória coletiva amparada e modelada a partir da ideologia dominante. Assim, como Abreu (2021) demonstrou, houve preocupação em erguer monumentos e estátuas para homenagear articuladores de um regime que se instaurou no Brasil durante o século XX; na dança cênica essa representação nacional literalmente ganhou corpo especialmente no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (Pereira, 2003). Por vezes, esse processo de construção da história narrou e se fez escutar a partir de um plano constitutivo sob os moldes de grupos hegemônicos.

O intuito desta pesquisa foi, em primeiro momento, identificar organizações bibliográficas publicadas sobre a dança para a compreensão desses materiais como essenciais sobre a gênese histórica da construção do pensamento em Dança no Brasil; a partir dessa identificação, foi possível perceber a perpetuação de uma narrativa que privilegia uma modalidade de dança que se consolida ao longo dos séculos e em diferentes cenários, mas acaba por contribuir para a preservação de ideais conservadores de um grupo seleto que faz uso dela e, dessa forma, poder compreendê-las, apesar de possíveis fragilidades na organização e publicação desses materiais, e olhar para os seus desdobramentos como conquistas alcançadas por uma classe artística que ainda luta para se estabelecer em âmbito político e educacional se torna necessário.

A análise das organizações bibliográficas, no modo como foram realizadas e na materialidade histórica e dialógica como foram aplicadas pode contribuir para a compreensão da formação, transformação, estabelecimento e até mesmo possíveis interferências pela prática da leitura e, consequentemente, pela produção do fazer e pensar a dança contribuindo para o apagamento de produções artísticas de seus populares anteriores a essa formalização. Essas organizações antológicas podem ter possuído uma funcionalidade na formação dos leitores, na sua representação político-cultural e na formação educativa sobre o grupo geracional em formação.

A história da Dança no Brasil vai estar presente na narrativa hegemônica nas bases do balé clássico; dentro desse processo de construção de uma identidade nacional, a formação em dança terá seu papel fundamental no que se constituirá o seu processo de ensino e aprendizado que ora irá ser debatido, a perpetuação de uma identidade cultural, tendo em vista as múltiplas expressões originárias em cada uma das regiões brasileiras, ora esse processo estará fortemente entrelaçado à ideia de profissionalização do artista da dança através do seu diálogo não com as danças tradicionais, mas principalmente com uma base institucionalizada oriunda de países centrais do capital financeiro.
O Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi inaugurado apenas em 1909, embora a ideia de um teatro nacional com companhia artística estatal já ocorria desde meados do século XIX, durante o processo de modernização da cidade. Não apenas em seus traçados, mas suas inspirações e afinidades estiveram em diálogo com a cultura francesa (Ermakoff, 2010). Durante os primeiros anos, o principal palco nacional recebia companhias de ópera e dança majoritariamente advindas da Itália e da França. A mudança ocorreria somente durante a década de 1930, sob o primeiro governo Vargas, quando a política econômica brasileira foi revista e foi estimulado um importante processo de industrialização após a crise de 1929, somado à queda vertiginosa dos preços atrelada à ausência de capital internacional (Leite, 2019).

O desenvolvimento econômico, para Vargas, dever-se-ia fazer acompanhar pela valorização ufanista de nossas riquezas naturais e pela cultura brasileira, passando pela música, arte, folclore e símbolos nacionais, de modo que seu projeto desenvolvimentista tivesse, obrigatoriamente, uma vinculação nacionalista. Por esse motivo, a preferência do crédito e da formação de nichos de produção era para o capital nacional, além da necessária estatização das maiores indústrias do país. Ademais, para Vargas, o desenvolvimento econômico passava também pela melhoria de condições para os trabalhadores e trabalhadoras, uma vez que o desenvolvimento de um capital produtivo não pode prescindir do trabalho (Leite, 2019, p. 311).

Lee (2008) e Pavlova (2001) informam que em 1926 houve duas tentativas de criação da primeira escola de dança em território brasileiro para formar bailarinos que, posteriormente, fariam parte do corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A primeira ocorrera com a proposta de arrendamento do Theatro Municipal pela empresa La Teatral, de Walter Mocchi, empresário teatral italiano que atuou no período áureo do teatro lírico no Rio de Janeiro e São Paulo; nessa proposição haveria uma cláusula que se comprometeria em contratar um(a) professor(a) de renome internacional para criar uma escola e um futuro corpo de baile na então capital do Brasil. Esse acordo se deu contratando a bailarina russa, coreógrafa e professora de balé Julie Sedowa para dirigir a então Escola de Bailados. Foram iniciadas as aulas no mesmo ano de sua fundação, mas suas atividades foram encerradas em pouquíssimo tempo em função do retorno de Sedowa à Europa após a temporada lírica entre julho e agosto.

A segunda proposta, apresentada pelo casal de bailarinos e coreógrafos russos residentes no Brasil Pierre Michailowsky e Vera Grabinska, teria sido recebida com desinteresse pela Direção de Patrimônio do Theatro Municipal ainda em 1926.

Mas foi em 1927, com Maria Olenewa, bailarina, coreógrafa e professora de balé, fundadora da Escola de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (que formou o primeiro corpo de baile oficial do Brasil), que o então diretor de Patrimônio do Theatro Municipal, Raul Lopes, teria recebido a proposta de criação da Escola de Bailados que objetivava formar bailarinos para atuar nas temporadas líricas anuais, desobrigando assim o empresário concessionário de contratar bailarinos para esses espetáculos. O que diferenciou a proposta de Olenewa da anterior foi que ela trazia um projeto que não acarretaria custos aos cofres da prefeitura; dessa forma, foi aceite de imediato (Lee, 2008). Dessa forma, a consolidação de uma escola e, consequentemente, a formação profissional de bailarinos brasileiros passou pela discussão de construção e preservação de um ideal nacionalista sob as condições materiais que abarcariam suas relações políticas e econômicas.

Muito pode ser debatido e pesquisado a respeito da formação de bailarinos no Brasil, ainda mais se tratando de um país que dança em seus variados contextos, espaços e finalidades. No entanto, foi com a fundação da escola vinculada ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro que houve um marco inicial da formação profissional de bailarinos e que direcionou consigo o estudo e a construção da historiografia em Dança sobre as bases do balé clássico no Brasil. Apesar de concretizar o início dessa formação profissional, a própria Maria Olenewa não deixou trabalhos escritos que pudessem ser organizados e publicados a posteriori, de maneira que pudesse compor uma antologia sobre o seu pensamento (Pavlova, 2001). Tampouco foi identificada uma organização de eventuais publicações de Vaslav Veltchek, responsável pela fundação da Escola de Bailados do Theatro Municipal de São Paulo, datada de 1940.

É importante destacar que as atividades da recém-inaugurada escola ocorreram em abril de 1927 e, para a sua manutenção, as atividades estiveram no âmbito público e privado. Essa separação se deu por turnos: manhãs para atividades da prefeitura com aulas gratuitas e à tarde atividades particulares com cobrança de mensalidades. Embora os seus esforços tenham levado à apresentação do seu primeiro espetáculo em novembro desse ano, a condição econômica a que Olenewa se submeteu lhe custou não apenas a venda de seus bens pessoais, como também a sua saúde, o que ocasionou o seu afastamento durante os dois anos subsequentes.

O retorno de Olenewa à direção da escola de bailados se deu em 1930 com um balé, ou bailado, brasileiro fortemente atravessado pelos debates a respeito de questões de raça e de caráter nacionalista sobre as camadas de representações que começaram a surgir enaltecendo símbolos nacionais e a construção de figuras para a representação de indígenas e elementos folclóricos para um repertório cultural denominado brasileiro que já apareciam no final da década de 1920, como o balé A festa indígena. De acordo com Pereira (2003, p. 100), esse balé foi criado por Pierre Michailowsky e Vera Grabinska originalmente para a Companhia de Ana Pavlova, que se apresentou também na cidade de São Paulo em 1928. Com música de Carlos Gomes, em seu programa dizia se tratar de uma “encenação do folclore indígena do Brasil”. Dadas as exceções de representatividade que aparecem na história, sejam de gênero ou de raça, do ponto de vista da narrativa foi através de uma dança clássica oriunda e reformada a partir da estrutura social de países, em que seu império se fundou e fortaleceu a partir da expropriação e opressão de grupos sociais minoritários, que vai ser narrada uma história nacional e, por vezes, a própria história da dança. Nem a dança nem o estilo dão conta de representar uma dança brasileira como totalidade, nem a narrativa da história condiz com a veracidade material dos fatos sobre a figura e a condição em que a população brasileira foi concebida e estruturada.

A história da Dança narrada sob a ótica ocidental, sobretudo nas primeiras publicações disponíveis no Brasil, além de ter favorecido a vinda de um pensamento equivocado diante uma falsa linearidade evolutiva de como a dança se constituiu, como demonstrou Silva (2012) em seu estudo sobre a historiografia da Dança, levou a um movimento dicotômico nas questões sobre as origens das relações desiguais e hierárquicas entre sujeitos. Silva (2012) identificou que, antes da década de 1980, pouco se encontrava de consistente sobre a história da Dança; em sua maioria era produzida no exterior ou por estrangeiros, e esses livros que se tornaram aportes teóricos eram em parte influência dos balés importados e, posteriormente, da dança moderna americana, dentro de um período com a preocupação de consolidar essas práticas no país, fortalecendo narrativas históricas dessas importações, deixando as histórias nacionais quase sempre no esquecimento. Para essa autora, a falta de produções literárias teria servido como ferramenta para poder estereotipar artistas e pesquisadores da dança como pessoas com falta de intelectualidade, o que serviria também para alimentar um dualismo entre mente e corpo, teoria e prática entre os próprios profissionais.

Durante as primeiras décadas em que foi despertada a preocupação em registrar e compor a história da Dança no Brasil, foram publicadas bibliografias sob o domínio de um grupo seleto e preocupado em eternizar a história de quem e por quem podia e/ou pertencia a essa esfera de poder ou que de alguma forma pudesse contribuir para a manutenção de seus ideais. Por outro lado, artistas minoritários estiveram na memória e história por meio da experiência do real, em uma escrita marcada no corpo, coreograficamente, sobre a oralidade que atravessou e é atravessada por um corpo não apartado da sua realidade social, tendo ele se constituído a partir da sua relação com as mudanças e variações que o seu próprio tempo lhe impôs.

As transformações sociais também implicam o processo de aprendizado e desenvolvimento do ser humano, e a dança como expressão do movimento acompanha esse processo e o faz ser parte integral na sua própria forma de comunicar utilizando o corpo globalmente. Lukács (2010) apontou que a arte, assim como diversos ramos da ciência, não possui uma história imanente que resulte exclusivamente de sua dialética interior; ela também é determinada pelo curso de toda a história da produção social em seu conjunto.

Essa relação complexa entre arte e sociedade se enriquece por seu envolvimento artístico-pedagógico, que ocorre concomitantemente ao desenvolvimento e à transformação social. Dessa forma, a dança se torna meio e produto para compreender e (re)conhecer a si e o meio em que está inserida. A transformação do ser humano está, portanto, relacionada às influências das relações sociais, como demonstrado por Vygotsky (1999), que compreendeu que a arte não possui apenas a capacidade de alteração do estado emocional imediato, mas também a capacidade de alteração no psiquismo, estimulando tanto sentimentos como outras potencialidades humanas, tendo características complexas construídas ao longo da história. Uma mudança no sistema global dessas relações também conduz a uma mudança na consciência (Vygotsky, 1930).

A dança no Brasil, dessa forma, não está inserida apenas como elemento capaz de interligar interesses político-educativos a inúmeras pessoas; ela também faz parte do próprio contexto histórico e sociocultural, apesar de essa dinâmica social não representar uma totalidade e muito menos participar da profissionalização desses agentes da dança de modo uniforme. Portanto, a dança, ainda que faça parte e esteja direta ou indiretamente associada ao povo brasileiro, sua formação profissional é um fenômeno recente e vem sendo construída paulatinamente; pode justificar até mesmo ausências de produções — principalmente durante a primeira metade do século XX, quando seu ensino, aprendizado e manifestação artística estiveram marcados tanto por uma dança burguesa quanto pela sua locação na capital do país — e até mesmo os aumentos da produção bibliográfica e artísticas mais plurais com a abertura do processo de redemocratização do país e de seus estudos na esfera de nível superior.

Aprendizagem e memória estão, dessa forma, intimamente interligadas, visto que a aprendizagem poder ser compreendida como uma mudança de comportamento decorrente da plasticidade dos processos cognitivos inatos do ser humano — oriundos de fatores biológicos somados à sua relação com o meio ambiente —; a memória, de acordo com Relvas (2009), é a base de todo o saber e de toda existência humana. O sujeito constituirá a sua história individual e coletiva em decorrência da capacidade mnemônica para a construção de novos objetos. A memória, para além da capacidade de recordar e aqui também tornar-se objeto de arquivo, é a capacidade de abstração, planejamento, atenção e julgamento crítico.

Nenhuma invenção e descoberta científica pode surgir antes que aconteçam as condições materiais e psicológicas necessárias para o seu surgimento. A criação é um processo de herança histórica em que cada forma que sucede é determinada pelas anteriores (Vygotsky, 2018, p. 44).

Le Goff (1990) aponta a memória coletiva não somente como uma conquista, mas como objeto de poder. Aqui é importante refletir a ideologia a partir de Marx e Engels (2007); para eles, surge como um falso mapeamento da realidade social e econômica na qual o sujeito está inserido, pois, detendo a burguesia, como classe dominante, os meios de produção, ela também detém os meios intelectuais, o que lhes permite o controle não apenas de mais-valor produzido pela classe trabalhadora, mas também a sua visão de sociedade. Nesse processo construtivo da história da Dança no Brasil, apesar da falta de produções bibliográficas no que pode configurar o início dessa formação do corpo de baile brasileiro, a sua formação estará amparada por via da prática e sua perpetuação por narrativas ideológicas da classe hegemônica.

A produção cultural humana tem sua relação intrínseca com a realidade na forma pela qual se produz a/para a vida e na forma pela qual se atribui significado e leitura sobre ela. Qualquer alteração em uma das formas (base ou superestrutura) trará modificações à outra.

Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. [...] Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade (Marx, 2008, p. 47-48).

Le Goff (1990, p. 411) afirma ainda que “devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”, apesar de que por vezes uma das danças existente e conhecida como balé clássico tenha preservado valores de determinado grupo social e tenha alimentado um imaginário em senso comum, por meio da oralidade, de ela ser a mãe de todas as danças; no momento em que a sociedade brasileira se (re)organiza, a dança é repensada tanto no que concerne a suas relações de produção quanto o sistema político-jurídico e a consciência vão sendo alterados. Essa relação de mudança pode ser identificada dentro até mesmo de o processo de reivindicação da dança estar na academia e como a partir da inclusão de cursos de Dança pelo país vão sendo debatidos esses aspectos representativos e aumentando o número de produções bibliográficas e alcançando debates fora da formação em balé clássico.

É importante salientar que apenas na segunda metade do século XX surgiu o primeiro curso de nível superior em Dança no Brasil, ofertado pela Universidade Federal da Bahia em 1956. Até então, a profissionalização se dava quase exclusivamente nos cursos ofertados pelas escolas de Dança vinculadas aos teatros municipais no eixo Rio e São Paulo, que foi utilizada por bastante tempo pela oralidade como meio de informar, divulgar e preservar conhecimentos ali trabalhados no convívio e formação daqueles profissionais e replicados ao longo dos anos. Embora a narrativa oficializada tenha se mantido sob a égide do balé clássico diante de rememoração, comemoração e manutenção de seus princípios, aproximadas ao texto de Benjamin (1940) para poupar de um destino autômato, seria necessária a interrupção da continuidade dessa composição histórica opressora, pois, diante do apagamento e da vulgarização de danças fora dessa esfera aburguesada para a apresentação do que seria uma dança nacional, para qualquer expressão contrária a esse modelo, abriram-se margens de utilização de um pensamento de dano e vandalização da dança, como se ela fosse única, inalterável, absoluta e universal, o que se assemelha ao que foi estudado sobre os patrimônios por Gamboni (2014) e uma defesa de preservação, reconhecimento e respeito por uma suposta herança benemérita de um passado colonizador próxima ao proclamado por Grégoire (1974) na tratativa por uma conscientização de um juízo de valor para haver denúncias por aquilo que se estipulou como vandalismo.

A Constituição Brasileira de 1988 aparece não apenas como um símbolo das/para as conquistas democráticas, mas de fato abre caminho para uma efetiva cidadania em território brasileiro pela qual é difícil desassociar sua relação intrínseca à cultura e aos valores da sociedade. Foi nesse processo por mudanças que foram iniciadas as discussões a respeito do que viria a ser a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), sancionada apenas em dezembro de 1996. Com a LDBEN, a arte se tornou componente curricular obrigatório na Educação Básica e a partir de então há crescimento na abertura e na procura pelos cursos de nível superior em Dança, podendo justificar, talvez, o predomínio de cursos de licenciatura. Atualmente, no Brasil há cerca de 40 cursos de licenciatura em dança, conforme os dados no e-MEC.

Por certo o profissional da Dança veio travando uma luta por reconhecimento e regulamentação no seu exercício e muitas dessas organizações abriram espaços para serem debatidos e defendidos o fazer e o pensar a dança conforme as demandas sociopolíticas e educacionais que estavam e estão efervescendo desde o começo deste novo século. Apenas na primeira década dos anos 2000, foram abertos 15 novos cursos universitários em Dança e houve crescimento exponencial no setor de publicações de livros atendendo a esse setor. Aqui tratando apenas das antologias, para esta pesquisa foram identificados 116 livros publicados entre 2000 e 2009. Embora essa busca por reconhecimento e atuação pública demandando direitos se faça quando no Brasil há um aceleramento da forma neoliberal na relação de trabalho, como, por exemplo, ocorre na reforma do Ensino Médio pela Medida Provisória nº 746/16 (Ferreti; Silva, 2017), o que vai implicar diretamente o profissional da Dança que, quando chega ao lugar de reconhecimento da sua categoria em busca por direitos que o Estado poderia lhe garantir, há forte precarização dos direitos trabalhistas, abrupta mudança na relação de trabalho e em toda e qualquer garantia de direitos aos cidadãos em todas as esferas, isso acaba por, além de reunir os profissionais da Dança, demandar pautas específicas como a proposta de regulamentação da atividade do profissional da Dança no PL nº 4.768/16 e a reforma da Lei nº 6.533/78, também organizarem grupos por pautas identitárias que acabam gerando, em alguns casos, um identitarismo completamente individualista e individualizado, como na proposição do PLP nº 47/22, fazendo com que já não se reconheçam como classe trabalhadora pertencente a uma totalidade dentro de um sistema socioeconômico que consegue se utilizar dessas construções ideológicas para garantir a sua manutenção na própria troca de prestação de serviço e promover a dissolução das manifestações culturais originárias que tanto não possuem valor de troca para a sociedade capitalista quanto o seu produtor precisa abdicar delas para, na relação de trabalho, marcada a sua opressão, tentar garantir um mínimo para a sua subsistência.

O olhar sobre quem são os profissionais da Dança, a construção dessa memória e composição historiográfica é um olhar de extrema importância para pensar a realidade brasileira, dado que, por mais cômodo e mais comum que seja avaliar as condições de execução técnica e sistematização oriunda de outros países, o Brasil na periferia do capital possui vasta expressão cultural que a dança ora fará parte de modo suscetível ao ensinamento a outrem na sua forma relacional de trabalho, ora estará imbricada a uma cultura mais íntima de seu povo, atravessada por religião, crenças e rituais, dentre outros, que no sistema capitalista são incapazes de ser reconhecidos e valorizados. E, mesmo em âmbitos da academia, ainda há hierarquização dos saberes que privilegia uma linha de pensamento que permeia as universidades para a reprodução de uma lógica liberal.

Dessa forma, demandar reconhecimento do artista profissional na atual conjuntura não se torna o bastante, dado a sua representação ainda estar sobre a institucionalização da memória organizada pela classe hegemônica que preserva seus valores e morais burgueses, privilegiando a linha de pensamento para a reprodução de uma lógica socioeconômica que consegue moldar o exercício e a produção artística de acordo com o seu mercado.

Contudo, apesar de o processo de formação profissional ir de encontro à fundação da escola de danças vinculada ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que preserva a dança clássica na sua estrutura, a dança como área autônoma de pensamento é um fenômeno recente, vindo a ser percorrido a partir da segunda metade do século XX com a abertura do curso de graduação em Dança na Universidade Federal da Bahia, mas que suas produções ganharam maior projeção somente a partir do processo de redemocratização do país e com pensamentos mais plurais somente após os governos progressistas no início dos anos 2000. Ainda que tenha ganhado espaço e venha enfrentando um momento de disputa no chamado pós-fordismo, a dança está diante de um enfrentamento para tensionar e dar condições materiais para haver rupturas com as instâncias que perpetuam e naturalizam as desigualdades e as bases estruturantes dos pilares da dominação hegemônica que, com a precarização do trabalho, encontra limitações para poder gerar uma revisão capaz de dar fim à dependência dessa estruturação e sistematização que marca a história da Dança no Brasil.

Referências

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Publicado em 18 de julho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

LABETA, Ingrid de Melo. O apagamento histórico como construção da memória em dança no Brasil. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 27, 18 de julho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/24/o-apagamento-historico-como-construcao-da-memoria-em-danca-no-brasil

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