Minorias linguísticas e Educação Bilíngue: revisitando os contributos de Marilda Cavalcanti após duas décadas

João Paulo da Silva Nascimento

Mestre em Estudos Linguísticos (UERJ)

Danielle Reis Araújo

Mestra em Estudos Literários (UERJ)

Em Estudos sobre Educação Bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil, artigo publicado na Revista Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada (Revista Delta), Marilda Cavalcanti (1999) discute questões importantes sobre bi/multilinguismo, num contexto em que não havia ainda muitos estudos a respeito desse tema no âmbito da Linguística Aplicada brasileira. Dada a efemeridade do tema no contexto da publicação, a autora centra seu olhar em torno de comunidades linguísticas minoritárias – hoje identificadas como “minorizadas” (Lagares, 2018), com o intuito de “apresentar contextos bi/multilíngues de minorias para que o mapa da educação nesses cenários seja desvelado, venha à superfície e possa ter visibilidade” (Cavalcanti, 1999, p. 386).

No texto, são tomadas como sinônimos as expressões “educação/escolarização em contextos bi/multilíngues” e “Educação Bilíngue”, pois, segundo a autora, os contextos envolvendo minorias não necessariamente representam casos de Educação Bilíngue, conforme definem Hornberger (1991), Freeman (1998), Hamel (1989) e Garcia e Baker (1995). Essa ressalva é feita por Cavalcanti (1999), uma vez que não parece suficiente definir educação bi/multilíngue com base unicamente na ideia de que haja mais de uma língua sendo utilizada, seja em modalidade escrita (na qual prepondera a língua dominante, no caso, o português), seja em modalidade oral (na qual línguas minoritárias teriam primazia em vista de muitas serem ágrafas). Posta tal consideração inicial, para fins de atingir seu objetivo, a autora divide seu estudo em três etapas, por meio das quais procede à análise de:

(i) Cenários sociolinguísticos brasileiros que podem ser considerados bi/multilíngues;
(ii) Estudos sobre educação nesses cenários e sobre bilinguismo;
(iii) Contribuições de tais discussões à formação docente para a diversidade linguístico-cultural.

De antemão, apoiada em estudos como os de Bortoni-Ricardo (1984), Cavalcanti (1996a) e Bagno (1999), a autora explora os problemas de uma concepção – utópica, por sinal – monolíngue para as sociedades, dado que se trata de uma concepção que incide sobre o apagamento de minorias, como comunidades indígenas, imigrantes, surdas e falantes de variedades desprestigiadas de português. Sendo essa visão falaciosa, a pesquisadora, consoante Grosjean (1982), considera que o multilinguismo é inevitável, de modo que o monolinguismo, que tem se constituído há muito tempo em Linguística como base dos estudos descritivos, não deveria ser contemplado como a regra, o status quo de comunidades de fala, mas como a exceção (Romaine, 1995).

Por isso, para ela, “o bilinguismo deveria representar a norma” (Cavalcanti, 1999, p. 388), em vista do fato de que há “heterogeneidade mesmo em comunidades consideradas monolíngues, uma vez que geralmente há variedades regionais, sociais e estilísticas dentro do que é considerado como ‘uma língua’” (Romaine, 1995 apud Cavalcanti, 1999, p. 393). No entanto, mesmo após duas décadas de sua crítica, de acordo com Nascimento (2021), isso ainda se mostra um desafio na formação de profissionais de Letras, tendo em vista que a maior parte dos currículos dos cursos de licenciatura e bacharelado em Letras ainda conservam visões essencialmente monolíngues ao abordar temas como formação de professores, dentre outros.

Além disso, Cavalcanti (1999) justifica seu recorte para as comunidades minoritárias, alegando que, ao se falar em bilinguismo, há, ainda, muitos estereótipos atinentes às línguas de prestígio na sociedade (e.g. inglês). Dessa maneira, visando à fuga de um “bilinguismo de elite” (Cavalcanti, 1999, p. 387), a autora focaliza cinco comunidades:

  1. indígenas,
  2. de imigração (e seus descendentes),
  3. de fronteira com países hispano-falantes,
  4. surdas (usuárias de Libras) e
  5. bidialetais/“rurbanas”.

Considerando cada um desses grupos como comunidades bi/multilíngues minoritárias, isto é, maiorias tratadas como minorias por falarem uma língua ou variedade de baixo prestígio e/ou invisibilizada frente à língua de prestígio (Bortoni-Ricardo, 1984; Bagno, 1997; 1999), Cavalcanti (1999) analisa, sem ser prolixa, os fatores que caracterizam os cinco grupos como tal. É importante destacar, ademais, que a afirmação de tais comunidades linguísticas como minorizadas ainda constitui um dos problemas glotopolíticos da contemporaneidade, o que parece aludir à vivacidade inadequada do mito do monolinguismo em nosso país, a qual, em muitos cenários, dificulta a promoção e efetivação de políticas linguísticas.

Em relação às comunidades indígenas, a autora aborda a discussão que marca o genocídio linguístico-cultural de povos autóctones desde a chegada e a invasão das terras brasileiras pelos colonizadores – evento responsável pelo desaparecimento de cerca de 1.130 línguas. Enfatiza também a importância da revitalização e da preservação das línguas indígenas que resistem, seja com poucos falantes, seja na configuração morfossintática de variedades de português que emergiram de situações de contato linguístico, considerando que isso seja um fator de recrudescimento para o ensino bi/multilíngue (Maher, 1996).

Seguindo, Cavalcanti (1999) menciona a situação de línguas vindas para o Brasil a partir de movimentos migratórios, como o momento de escravização de negros africanos em face do insucesso da escravização indígena nos primórdios do Brasil Colônia e o momento em que se impulsionou a busca por mão de obra estrangeira, por volta de 1836, para desempenhar trabalhos no setor da agricultura. Em ambos os momentos da história brasileira, como destaca a autora, diversas línguas (e.g. línguas africanas, italiano, alemão, japonês etc.) vieram a coexistir com o português.

Apesar de o português brasileiro ser nitidamente um sistema emergente de contatos linguísticos variados, Cavalcanti (1999) recupera informações que acompanham um caminho de repressão contra falantes estrangeiros e seus descendentes, retomando acontecimentos como o desaparecimento de línguas africanas devido à escravização e a perseguição por que passaram imigrantes italianos, alemães e japoneses no período ditatorial do Estado Novo (1937-1945).

Essa crítica feita pela autora em 1999 mostra-se ainda pertinente e mais urgente nos dias atuais, haja vista o crescimento do fluxo migratório (natural e forçado) para o Brasil, que vem impulsionando cada vez mais discussões em torno do ensino de Português para refugiados, um tema tangenciado por tensões não só linguísticas, como também políticas (Baalbaki; Rebelo, 2021).

No tocante às comunidades de fronteira, em que o português concorre com outras línguas, a maioria de origem hispânica devido à geografia brasileira, Cavalcanti (1999) menciona o baixo teor de pesquisas no âmbito da Educação Bilíngue que incidem sobre tais situações. O mesmo é dito a respeito de comunidades surdas, que, para a pesquisadora, ainda encontram dificuldade para ter reconhecido o status linguístico da Libras, bem como outros direitos linguísticos (e.g. ensino de Português como L2, disponibilidade de profissionais tradutores-intérpretes de Libras <=> Português em diferentes contextos etc.).

Entretanto, cabe ressaltar que hoje, após mais de duas décadas da publicação de Cavalcanti (1999), os estudos sobre ambas as situações de contato linguístico já são mais numerosos, mesmo que ainda possam ser consideradas como comunidade bi/multilíngues minoritárias. Ainda assim, apesar de haver mais estudos a respeito dessas comunidades nos últimos anos, é possível pensar a respeito das dificuldades de formulação, promoção e asseveração de direitos linguísticos por meio de políticas (sócio)linguísticas efetivas, inclusivas e ajustadas às demandas do contemporâneo (cf. Altenhofen, 2013; Nascimento, 2021).

Por fim, Cavalcanti (1999) aborda também o caso de comunidade bidialetais/“rurbanas” (cf. Bortoni-Ricardo, 1985), que seriam aquelas “compostas por populações de origem rural que vivem na cidade e que falam alguma variedade estigmatizada de português” (Bortoni-Ricardo, 1985 apud Cavalcanti, 1999, p. 393). Trata-se de comunidades postas à margem do que é considerado “padrão” de língua (em geral, variedades das grandes metrópoles) e que merecem atenção, dado que “o bilinguismo de minorias e o bidialetalismo de maiorias, na prática, ainda estão naturalizados como invisíveis (Cavalcanti, 1996b, 1997a)” (Cavalcanti, 1999, p. 396).

Observamos, neste caso, avanços em prol do que Bortoni-Ricardo (2004, p. 38) chama de “pedagogia culturalmente sensível”. Esses avanços, em geral, podem ser apontados como frutos de inúmeras pesquisas no âmbito da Sociolinguística Variacionista, as quais têm estabelecido interfaces com a questão do ensino de Língua Portuguesa, levantando a bandeira de que

é necessário que se faça uma reavaliação do lugar da norma padrão, ideal, de referência a outras normas, reavaliação essa que pressupõe levar em conta a variação e observar essa norma padrão como o produto de uma hierarquização de múltiplas formas variantes possíveis, segundo uma escala de valores baseada na adequação de uma forma linguística, com relação às exigências de interação (Callou, 2007, p. 17).

Tendo delineadas tais situações de bi/multilinguismos minoritários, Cavalcanti (1999) avança em sua discussão a respeito da Educação Bilíngue, apontando que tais questões são ainda tratadas com invisibilização. Como exemplos, assinala que constantemente comunidades indígenas são tratadas como se já não existissem; comunidades imigrantes, de fronteiras e bidialetais são abordadas com estereótipos de legitimação negativa pela diferença e comunidades surdas não são reconhecidas pela via sociolinguística, mas por concepções patológicas: problemas ainda factíveis após duas décadas de publicação do estudo resenhado aqui.

Cavalcanti (1999) critica a composição de escolas monolíngues em cenários bi/multilíngues, “onde as línguas da comunidade convivem com a língua da escola, muitas vezes de forma imperceptível aos participantes ou de forma não reconhecida pelos mesmos em suas representações sociais” (Fairclough, 1989 apudCavalcanti, 1999, p. 399). Como forma de repensar essa situação em favor de investimento em uma educação bi/multilíngue, Cavalcanti (1999) direciona seu olhar para a premência de considerar:

  1. O perfil dos estudantes e sua capacidade ativa;
  2. Diretrizes curriculares de cursos de licenciatura em Letras em prol da formação de professores a partir da prática e da realidade culturalmente diversa;
  3. Questões discursivas de relação de poder e de representações sociais que atravessam uso(s) de língua(s).

Diante desses pontos, a autora ratifica sua tese de que não há comunidades de fala heterogêneas e que, por isso, “os contextos multilíngues e, por extensão, multiculturais, no Brasil não são minoritários e devem fazer parte da educação de professores” (Cavalcanti, 1999, p. 408). Tais questões, inclusive, vêm sendo abordadas em pesquisas recentes na área de Linguística Aplicada, visando ao pensamento do que, de fato, se caracteriza por Educação Bilíngue nos dias atuais, quando tem havido grande proliferação de escolas bilíngues em línguas majoritárias, mas ainda poucas discussões a respeito da universalização de metodologias e práticas bilíngues para comunidades linguísticas minorizadas — o que assinala a premência e a atualidade das reflexões teóricas de Cavalcanti (1999).

Referências

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Publicado em 25 de julho de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, João Paulo da Silva; ARAÚJO, Danielle Reis. Minorias linguísticas e Educação Bilíngue: revisitando os contributos de Marilda Cavalcanti após duas décadas. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 28, 25 de julho de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/28/minorias-linguisticas-e-educacao-bilingue-revisitando-os-contributos-de-marilda-cavalcanti-apos-duas-decadas

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