Conhecimento e reconhecimento terminológico no campo da surdocegueira por profissionais do AEE da Baixada Santista e Vale do Ribeira

Gabriel Silva Xavier Nascimento

Mestre em Educação (PPGE/UFES), professor EBTT (IFSP)

Elizabeth Martins dos Reis

Mestra em Linguística (PPGEL/UFES), tradutora e intérprete de Libras-Português (UFES)

Compreender o uso e a aplicação das terminologias de determinado campo se configura como um dos requisitos para a atuação profissional nas diferentes áreas. Isso se deve ao fato de que as questões terminológicas devidamente fundamentadas com estudos teóricos e empíricos extrapolam a ideia de uma ação prescritiva e realçam possibilidades de atuação com impacto mais significativo e profícuo, além de evidenciarem indicadores que nos permitem localizar lacunas e demandas formativas em diferentes espaços.

Em se tratando de formações específicas no campo da surdocegueira, nota-se ainda uma incipiência de cursos, sobretudo em horários e modalidades que atendam aos professores da rede pública, o que demanda constantemente deslocamentos nem sempre viáveis em busca de formação nesse campo em instituições especializadas. Nesse cenário, a chegada de um aluno surdocego e/ou com deficiência múltipla sensorial nas escolas regulares não raramente é motivo de comoção, em função do pouco ou nenhum preparo do corpo escolar com vistas a assegurar um ensino de qualidade para esse público.

Por esse prisma, o presente trabalho tem como objetivo evidenciar qualitativamente o conhecimento de professores que atuam no Atendimento Educacional Especializado (AEE) em escolas da região sul do Estado de São Paulo, mais especificamente da Baixada Santista e do Vale do Ribeira. A abordagem adotada será do tipo survey, formato profícuo a ser empregado para a investigação de fenômenos em cenários naturais cujas variáveis fogem do controle (Freitas, 2000, p. 1).

Para a realização da pesquisa, empregou-se um questionário via Google Forms, que foi compartilhado com os professores que se encaixavam no perfil e na localização de nosso interesse. Os respondentes foram orientados a não se identificarem nominalmente e a identificarem suas escolas apenas pelas duas letras iniciais de seus nomes, para que fosse possível diferenciá-las. Todos os participantes concordaram com a publicação dos dados coletados, sob a condição de preservação de suas identidades e de suas escolas.

O questionário foi elaborado com a seguinte divisão: 1) Análise de reconhecimento e nível de conhecimento acerca dos conceitos elencados; 2) Formação específica e interesse em formação específica; 3) Experiência com alunos surdocegos. No total, 26 professores que atuam diretamente no AEE responderam ao questionário. Essa amostra inclui profissionais de dez escolas na Baixada Santista (litoral sul de São Paulo), sendo oito da rede pública municipal e duas privadas; bem como oito escolas nos municípios que compõem o Vale do Ribeira (região Sul de São Paulo e oeste do Paraná), sendo cinco escolas da rede pública municipal e três da rede pública estadual. Dos 26 participantes, apenas 5 se identificam com o gênero masculino e todas as demais se identificam com o gênero feminino.

Em relação às divisões do questionário, a seleção dos conceitos-termo foi baseada em tópicos abordados no livro Práticas de interpretação tátil e comunicação háptica para pessoas com surdocegueira (Canuto et al., 2019). Optou-se pelo uso de termos mais simples e corriqueiros nas discussões sobre surdocegueira: surdez, cegueira, surdocegueira, deficiência múltipla sensorial, Libras, sinais táteis, sinais em campo reduzido, escrita na palma da mão, alfabeto datilológico, alfabeto tátil, comunicação háptica, Tadoma, interpretação de/para Libras, guia-interpretação, Audiodescrição, braile, orientação e mobilidade. A escala de avaliação para o reconhecimento dos termos foi organizada em dois eixos: a) nunca ouvi/vi o termo; e b) já ouvi/vi o termo. Em relação ao reconhecimento de nível, foram elencados três novos eixos: a) não tenho conhecimento algum sobre os termos; b) tenho pouco conhecimento sobre o termo; c) tenho muito conhecimento sobre o termo.

Já as seções 2 e 3 partiam de perguntas diretas cujas respostas evidenciavam se o respondente já havia participado de alguma formação específica, se já atendera algum aluno com surdocegueira e, por fim, o grau de importância da demanda para formação nesse campo. Esta foi organizada em cinco eixos: a) nada importante; b) pouco importante; c) de média importância; d) de muita importância e; e) urgente. Ao final do formulário, foi deixado um campo aberto que permitia aos respondentes realizarem quaisquer observações que julgassem pertinentes. Além disso, os participantes foram orientados a responderem ao questionário com base unicamente no conhecimento que detinham no momento da resposta, isto é, sem a necessidade de pesquisar ou estudar os termos previamente.

Dito isso, as discussões aqui elencadas estão organizadas em quatro seções: “Terminologicamente falando” – em que apresentamos um panorama geral dos conhecimentos terminológicos e suas implicações na formação e atuação profissional; “(Re)conhecendo os termos e significando as demandas” – em que elencamos os resultados oriundos da coleta realizada e tecemos reflexões sobre as lacunas e demandas formativas; e, por fim, “Para além do registro terminológico” – em que tensionamos a demanda de formação e preparo para atuação com alunos surdocegos e com deficiência múltipla sensorial no contexto educacional.

Espera-se que essas discussões evidenciem a urgência de maior difusão de conhecimentos no campo da surdocegueira, partindo de uma demanda real no contexto de formação, principalmente de quem já atua no AEE.

Terminologicamente falando

Os estudos voltados para a terminologia, isto é, para a produção e aplicação delimitada de conceitos e ideias em determinado campo, começam a tomar uma forma mais consistente, no Brasil, no início da década de 1990. A princípio, concentraram-se no eixo triangular Brasília - São Paulo - Rio de Janeiro, em espaços acadêmicos de pesquisa: o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), a Universidade de São Paulo (USP) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Nos anos seguintes, se expandiram para o Sul do país, na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e para o Nordeste, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (Krieger; Bevilacqua, 2005).

Tais estudos têm como fio condutor a superação do enfoque prescritivo preponderante nessa área, sobretudo no período tecnicista que se desdobrou a partir da Revolução Industrial. Nas palavras de Faulstich (1998, p. 13), “a terminologia avança como episteme e entra nas universidades com feição de disciplina. Por trás da nova interpretação do significado, existem, inicialmente, atitudes normatizadoras que buscam preservar a ‘boa língua’”.

De acordo com Krieger e Bevilacqua (2005, p. 2), a inserção de linguistas nas pesquisas terminológicas e sua compreensão de que o léxico é um componente natural das línguas catalisou a constituição da terminologia como campo epistemológico. A partir disso, assumiu-se, então, uma postura crítica da forma como se tratava o uso das palavras e a instrumentalização desse campo de saber como potência para a superação de problemas demarcados pelo léxico especializado.

É nessa esteira que o presente trabalho se debruça, ao assumir o conhecimento terminológico como um desdobramento das produções teóricas e empíricas no campo da surdocegueira de forma instrumental. Em outras palavras, percebem-se os conceitos não como algo meramente dicionarizado, mas como potência que resulta do conhecimento e da prática, e nos possibilita mensurar qualitativamente o escopo de atuação de profissionais envolvidos com estudantes com essa característica.

Assim, avaliar puramente os sentidos estanques atribuídos aos termos seria de pouco proveito para as reflexões que aqui tencionamos ao estruturar o questionário para coleta de dados. Interessava-nos fugir das respostas automáticas e aferir, objetivamente e de modo natural, a habilidade dos participantes em reconhecer os termos de forma imediata e avaliar criticamente o grau de conhecimento detido sobre cada um deles.

Essa concepção ressoa com o que Lara (2004) elenca como elementos centrais da terminologia:

Os elementos centrais da Terminologia são os objetos, conceitos, termos e definições. Os conceitos se referem a objetos e são representados por termos – designações dos conceitos – que são descritos através de definições. Não se pode, porém, conceber um conceito a não ser através de uma designação, já que a linguagem é condição mesma do pensamento (2004, p. 235). [...] Sob essa perspectiva, verifica-se que o “termo” não é uma etiqueta colada ao objeto, nem o “conceito” é uma ideia irremediavelmente presa à designação (2004, p. 236).

É nesse caráter dinâmico da terminologia que nos pautamos para alicerçar a noção de que o conhecimento terminológico excede a rotulação prescritiva e dicionarizada e abre espaço para adentramos as possibilidades empíricas de significação e ressignificação de ideias que norteiam as práticas profissionais.

No campo da surdocegueira, a produção e a difusão de conhecimentos são, ainda, um campo de estudos emergente. Reconhecer suas terminologias pode indicar o grau de alcance das produções para além do contexto acadêmico, ao mesmo tempo que conhecê-los pode indicar o impacto das produções no contexto educacional e as lacunas formativas que orbitam a prática docente tanto no AEE quanto nas salas de aula regulares.

Reconhecendo os termos e significando as demandas

Considerando o cenário apresentado e a relevância dos estudos terminológicos na formação e atuação profissional, partimos agora para a sistematização e análise dos dados coletados. Conforme mencionado na introdução, a primeira seção do questionário visava identificar quais dos termos elencados a partir da obra de Canuto et al. (2019) eram de conhecimento prévio dos respondentes e, em seguida, qual grau de conhecimento, em suas perspectivas, eles detinham sobre cada conceito-termo. A escolha desse livro se deve à objetividade com que nele o conteúdo é direcionado e ao teor prático das orientações a partir da experiência dos autores.

A priori, tentar dimensionar ambas as coisas pode parecer uma tarefa relativamente óbvia, pois é esperado que esses profissionais reconheçam termos de cunho básico. No entanto, é preciso considerar pelo menos dois aspectos: a heterogeneidade da formação específica para profissionais do AEE, dado o caráter genérico e amplo de sua atuação; e, principalmente, os requisitos demandados nos editais de contratação desses profissionais em cada município, o que novamente traça um perfil genérico deles, em que se demanda, na maior parte dos casos, alguma licenciatura acrescida de especialização na área da Educação Especial.

Para além disso, é preciso considerar as demandas das próprias escolas e o perfil dos alunos atendidos. A razão disso é que, em alguns casos, a escola pode nunca receber alunos com surdez, cegueira ou surdocegueira. Em outros, o fluxo de alunos com esse perfil e especificidade pode ser recorrente, o que direciona a formação dos profissionais para demandas bem mais específicas, em que eles irão, possivelmente, se especializar.

Tendo em mente essa multiplicidade de contextos e variáveis, a primeira parte do questionário aplicado aos professores para a pesquisa que desenvolvemos ainda se mostra pertinente, por nos oferecer, especificamente, um panorama de conhecimentos e formação sem perder de vista a imprevisibilidade de matrícula de um aluno surdocego nas escolas em que esses profissionais estavam alocados.

A tabela a seguir sintetiza os dados coletados em relação ao reconhecimento dos respondentes e ao grau de seus conhecimentos, que partiu de uma autorreflexão deles em relação aos termos elencados.

Tabela 1: Reconhecimento e conhecimento dos termos sobre surdocegueira em %

Terminologia

Reconhecimento

(%)

Conhecimento

(%)

Nenhum

Pouco

Muito

Surdez

100

0

50

50

Cegueira

100

0

92,3

7,7

Surdocegueira

92,3

11,5

80,8

7,7

Deficiência múltipla sensorial

88,5

19,2

69,2

11,5

Libras

100

0,8

46,2

50

Sinais táteis

100

23,1

61,5

15,4

Sinais em campo reduzido

53,8

42,3

42,3

15,4

Escritas na palma da mão

65,4

34,6

50

15,4

Alfabeto datilológico

61,5

38,5

23,1

38,5

Alfabeto tátil

92,3

19,2

65,4

15,4

Comunicação háptica

30,8

65,4

30,8

3,8

Tadoma

46,2

50

42,3

7,7

Interpretação de/para Libras

92,3

11,5

46,2

42,3

Guia-interpretação

84,6

23,1

61,5

15,4

Audiodescrição

92,3

6,8

73,1

23,1

Braile

100

3,8

3,8

92,3

Orientação e mobilidade

96,2

7,7

73,1

19,2

Observando os dados coletados, é possível realizarmos algumas inferências. Nota-se que, quando se trata de termos que designam especificidades do público-alvo da Educação Especial, a taxa de reconhecimento é total, bem como seus recursos e características. É o caso dos termos surdez - Libras e cegueira - braile. Curiosamente, os sinais táteis também aparecem com 100% de reconhecimento, ao passo que os sinais em campo reduzido foram reconhecidos apenas por pouco mais da metade dos respondentes.

Outro aspecto interessante percebido é o fato de que, embora 100% dos respondentes tenham reconhecido o termo Libras, apenas 61,5% reconhecem o termo alfabeto datilológico que é, basicamente, um dos componentes elementares de representação da língua oral em sinais (Quadros; Karnopp, 2004). Uma hipótese possível que explicaria esse resultado seria o não reconhecimento do termo tal qual apresentado, visto que ele é popularmente conhecido como alfabeto manual. Essa hipótese pode ser reforçada ao contrastarmos esse resultado com os dados relativos ao grau de conhecimento sobre a Libras, visto que metade dos respondentes indicam ter muito conhecimento sobre a língua de sinais e 46,2% alegam ter pouco conhecimento. Considerando que o alfabeto datilológico é um dos elementos básicos e estruturais da Libras, pode-se concluir que a maioria o domina consideravelmente.

Já o reconhecimento dos sinais táteis pela totalidade dos respondentes é corroborado pelos 92,3% que declararam reconhecer o alfabeto tátil, visto que este é um dos recursos utilizados no primeiro, sendo, portanto, interdependentes. Em complemento a isso, percebe-se que quanto mais próximos os conceitos são dos termos surdez e cegueira, separadamente, mais são reconhecidos, por estarem associados respectivamente a eles, como é o caso de surdez - Libras - interpretação de/para Libras, e também de cegueira - braile - audiodescrição - orientação e mobilidade.

Na contramão disso, à medida que os termos se aproximam especificamente da surdocegueira como campo de estudo e atuação, tanto o reconhecimento quanto o grau de conhecimento deles diminuem consideravelmente. O caso mais drástico pode ser observado no reconhecimento dos termos comunicação háptica e Tadoma, apontado por, respectivamente, 30,8% e 46,2% dos respondentes. Os dados ficam ainda mais expressivos quando os contrastamos com o grau de conhecimento: mais da metade (65,4%) alega não ter conhecimento algum sobre a comunicação háptica, e metade alega o mesmo em relação ao Tadoma.

Vale mencionar, ainda, que conceitos como Libras, audiodescrição e interpretação de/para Libras são fortemente reconhecidos pelos profissionais analisados, embora apenas 50% indiquem muito conhecimento sobre Libras, 23,3% sobre audiodescrição e 42,3% sobre os processos de interpretação envolvendo a língua de sinais. Esses dados podem ser justificados pelo fato de que uma parte considerável dos respondentes é contratada para demandas específicas de interpretação para alunos surdos. Além disso, a prática dos três termos é fortemente difundida nas programações televisivas e mídias em geral, o que facilita o reconhecimento tanto na perspectiva legal (Brasil, 2000; 2002; 2005; 2015) quanto na social.

Seguindo para os aspectos de formação específica para atuação no campo da surdocegueira e experiência com os alunos surdocegos, 76,6% dos respondentes alegam nunca terem feito qualquer curso na área. Ao todo 74,4% nunca atenderam alunos surdocegos no AEE, 22,2% já trabalharam diretamente no atendimento com esses alunos e um dos respondentes (que corresponde a 3,7% da amostra total) afirma atualmente estar atendendo um aluno surdocego.

Ao refletirmos sobre esses dados, é possível, ainda, estabelecermos uma relação entre oferta-demanda. Não se pode afirmar com precisão o número de surdocegos no Brasil. Por estimativa, o levantamento realizado no Censo de 2000 indica 128 mil – cerca de 0,075% da população brasileira – pessoas cegas e surdocegas no país, sem, no entanto, diferenciar ambos os grupos. Tais números se mostram aquém da média mundial.

Uma alternativa empregada no embasamento de novas reinvindicações e dispositivos legais voltados para pessoas com surdocegueira, como é o caso do Projeto de Lei nº 2.260-A/19, que busca instituir o Dia Nacional da Pessoa Surdocega dentre outras providências, se pauta em um quantitativo estimado a partir da comparação com dados dos Estados Unidos (The Teaching Research Institute, 2008).

Na relação de proporção, estima-se que o Brasil tenha pelo menos 28.500 surdocegos, partindo do período censitário mencionado. A esse número, se aplica margem de erro para mais, dado o contexto sócio-histórico brasileiro e a precarização do sistema de saúde pública em diversas regiões do país.

Ainda assim, o percentual de alunos surdocegos mostra-se drasticamente pequeno em comparação aos outros alunos público-alvo da Educação Especial.Isso se reflete diretamente na pouca experiência dos respondentes em relação a esses alunos. Da mesma forma, a pouca demanda por profissionais especializados torna menos frequente a busca por formações específicas, salvo quando são ofertadas em rede ou procuradas pelo interesse específico do próprio profissional.

Outro fator importante a se considerar é que, ao contrastarmos o percentual e as respostas individuais dos seis respondentes (22,2%) que já tiveram experiências no atendimento com alunos surdocegos e do único respondente (3,7%) que atualmente atende um aluno surdo no AEE, identificamos que apenas este alega ter realizado um curso ou mais no campo da surdocegueira. Isso significa que os seis que atenderam alunos surdocegos não estão contidos no grupo que alega ter tido alguma formação, implicando que suas experiências se deram em nível precário, sem conhecimento prévio terminológico ou prático que os auxiliasse no atendimento.

A precarização dos conhecimentos terminológicos e práticos para o atendimento de alunos cegos é refletida no interesse e na demanda por cursos de formação, conforme se pode observar no gráfico a seguir.

Gráfico 1: Interesse e demanda por formação sobre surdocegueira.

Tendo em vista que 51,9% dos respondentes consideram a formação muito importante e 44% deles a consideram urgente, é possível inferirmos sobre a demanda que a formação nesse campo tem apresentado, principalmente para os que já atuam no AEE.

No entanto, é preciso consideramos que uma das variáveis que pode ter influenciado nas respostas dessa última pergunta se deve ao confronto entre as expectativas que se tem em relação a esses profissionais, dado o caráter genérico de suas formações e o real conhecimento apresentado por eles. Isso pode ser evidenciado pelo recorte de observações deixadas por alguns dos respondentes ao final do formulário e transcritos abaixo.

Este questionário me serviu de alerta sobre o quão pouco eu sei sobre esses conceitos. Eu me senti bastante despreparada, não que exista um preparo definitivo, é sempre um desafio, mas eu entendi que posso receber esse aluno em algum momento e o que sei não é suficiente para auxiliá-lo (Respondente 7, 2022).

Quando atendi um aluno surdocego eu não tive formação. Busquei algumas leituras e experiência com os colegas, mas ele permaneceu pouco tempo na escola. Por alguma razão eu não voltei a buscar formação nessa área depois. Participar dessa pesquisa me ajudou a colocar isso como meta (Respondente 13, 2022).

Respondendo aqui eu senti que sei muito pouco sobre o tema. Sei que são termos comuns para quem atua na área. Preciso me preparar melhor. Vou começar a buscar mais sobre esse tema. Vou guardar as perguntas para testar minha própria aprendizagem futuramente (Respondente 23, 2022).

Essa pesquisa só me deixou mais ansiosa por formação, mas é difícil encontrar. Geralmente são presenciais e distantes e infelizmente não temos o direito de nos afastarmos do trabalho para isso. Precisamos de incentivo (Respondente 25, 2022).

Essas observações indicam o movimento de reflexão iniciado a partir da participação na coleta de dados e as inquietações que, de alguma forma, podem catalisar o direcionamento desses profissionais na busca por mais formações e informações no campo da surdocegueira. Evidenciam, ainda, o interesse pela formação e algumas das mudanças estruturais que devem acontecer no sistema educacional para que tal público possa alcançá-la: oferta de cursos em modalidade não presencial, direito a afastamento para dedicação cursos e custos para deslocamentos.

Os cursos voltados para a atuação com alunos surdocegos são concentrados em instituições especializadas, como o Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Dado o teor prático envolvido no uso de recursos táteis, mesmo nos casos em que são ofertados virtualmente, tais formações demandam uma carga horária prática presencial orientada por profissionais experientes. Essa especificidade, ainda que necessária, dificulta o acesso de pessoas de fora do Rio de Janeiro.

Para além do registro terminológico

Compreendemos que o conhecimento terminológico se constitui a partir de uma episteme que inter-relaciona seu domínio com as práticas e reverbera na busca por soluções que qualificam uma educação significativa e de qualidade para pessoas surdocegas de todo o país.

Os dados aqui apresentados e as reflexões que tencionamos a respeito da incipiência de formação específica sobre surdocegueira que contemple um maior número de profissionais, sobretudo daqueles que estão atuando no contexto educacional, nos acende um alerta. É urgente o provimento de mais estudos que corroborem os aspectos teórico-práticos docentes e, principalmente, a ampliação das redes, a difusão desses conhecimentos e a viabilização de formação docente nessa seara.

Ainda que a amostragem de participantes da pesquisa ora apresentada corresponda a uma parcela pequena de profissionais do estado de São Paulo, a heterogeneidade da distribuição desses profissionais em escolas de 18 municípios da região sul e litoral sul do estado denotam o preparo insuficiente para um atendimento de qualidade para os alunos surdocegos, diante da imprevisibilidade de matrículas.

Por fim, os dados apontam, ainda, para um reconhecimento considerável das práticas voltadas para pessoas surdas e com cegueira. Isso se deve, possivelmente, à estruturação, já relativamente avançada, em relação às diretrizes e dispositivos legais que norteiam a inclusão desses grupos. Ao mesmo tempo, os resultados da pesquisa denunciam o pouco reconhecimento em relação às práticas com pessoas surdocegas, mesmo nos casos em que esses alunos já passaram pelas escolas dos professores respondentes.

Satisfatoriamente, o pouco preparo dos profissionais participantes é inversamente proporcional ao interesse deles em ter acesso à formação, o que abre possibilidades para pensarmos em estudos futuros sobre os formatos em que as formações sobre surdocegueira têm sido ofertadas, o alcance que elas têm conseguido e as implicações que sua ausência têm provocado nos processos de escolarização de pessoas surdocegas.

A alternativa para isso recai sobre o poder público, uma vez que se mencionou a impossibilidade de os profissionais se ausentarem de seus postos de trabalho para fazer cursos, seja por questões de demanda local ou por falta de recursos financeiros destinados à formação. Cabe, portanto, às secretarias municipais e estaduais proverem formas de trazerem tais formações para o âmbito local.

Ainda que o quantitativo de matrículas de surdocegos seja um fator imprevisível a curto prazo, o acesso à escolarização adequada é um princípio constitucional que será respeitado com a presença de profissionais qualificados que possam atender a esses cidadãos, principalmente na rede pública.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, p. 2, 20 dez. 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm. Acesso em: 28 fev. 2022.

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 25 abr. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10436.htm. Acesso em: 28 fev. 2022.

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em: 28 fev. 2022.

BRASIL. Projeto de Lei nº 2.260-A, de 2009. Câmara dos Deputados Brasília, 2009. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1792950. Acesso em: 28 fev. 2022.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: 7 jul. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 28 fev. 2022.

CANUTO, Beatriz Santana et al. Práticas de interpretação tátil e comunicação háptica para pessoas com surdocegueira. Rio de Janeiro: Arara Azul, 2019.

FREITAS, Henrique et al. O método de pesquisa survey. Revista de Administração da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 35, n. 3, 2000. Disponível em: http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1138_1861_freitashenriquerausp.pdf. Acesso em: 28 fev. 2022.

KRIEGER, Maria da Graça; BEVILACQUA, Cleci Regina. A pesquisa terminológica no Brasil: uma contribuição para a consolidação da área. Debate Terminológico, n. 1, 2005. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/riterm/article/view/21287. Acesso em: 28 fev. 2022.

LARA, Marilda Lopes Ginez de. Linguagem documentária e terminologia. Transinformação, Campinas, v. 16, p. 231-240, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tinf/a/f6BDPM7bxnQhvX78jDcGpdP/abstract/?lang=pt. Acesso em: 28 fev. 2022.

QUADROS, Ronice Muller de; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua brasileira de sinais: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

THE TEACHING RESEARCH INSTITUTE. The 2007 National Child Count of Children and Youth who are Deaf-Blind. The Helen Keller National Center: Sands Point, New York. The Hilton-Perkins Program: Watertown, Massachusetts – 2008. Disponível em: https://documents.nationaldb.org/products/2007-Census-Tables.pdf. Acesso em: 28 fev. 2022.

Publicado em 01 de agosto de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, Gabriel Silva Xavier; REIS, Elizabeth Martins dos. Conhecimento e reconhecimento terminológico no campo da surdocegueira por profissionais do AEE da Baixada Santista e Vale do Ribeira. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 29, 1 de agosto de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/29/conhecimento-e-reconhecimento-terminologico-no-campo-da-surdocegueira-por-profissionais-do-aee-da-baixada-santista-e-vale-do-ribeira

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