Campanha comunitária virtual: uma proposta de organização didática

Kathia Alexandra Lara Canizares

Professora de Português na ETEC/Botucatu – Centro Paula Souza

Com o decreto da pandemia covid-19, em 2020, a comunidade escolar precisou se adaptar à modalidade de Ensino Remoto Emergencial (ERE), articulando as práticas de ensino com os diferentes saberes para o desenvolvimento de competências e habilidades dos alunos.

O documento da Base Nacional Comum Curricular, a BNCC (Brasil, 2018), considera as multissemioses como instrumentos de ensino-aprendizagem. Dessa forma, o gênero “campanha comunitária” instrumentaliza o professor (Nascimento, 2004) como ferramenta para a promoção do desenvolvimento de projetos culturais na escola, facilmente adaptável à condição de ERE e à abordagem da atividade orientadora de ensino (AOE) (Moura et al., 2010).

A AOE (Moura et al., 2010) foi utilizada como estratégia prática para a organização do ensino, conforme reportado por Manzoni et al. (2020). Neste trabalho, foram feitos registros permanentes em diário de bordo, gerados dos encontros síncronos entre o professor e seus alunos (sala de aula virtual, alojada na plataforma Teams), a partir das aulas de Língua Portuguesa, do 2° bimestre escolar de 2021. As trocas assíncronas foram realizadas pelo chat da mesma plataforma.

A AOE (Moura et al., 2010) dialoga com os princípios teórico-metodológicos da Engenharia Didática de Ensino de Língua (Dolz, 2016), com a concepção de gênero textual (Schneuwly e Dolz, 2004) e a de multimodalidade (Rojo, 2012). Os preceitos dessas abordagens fundamentaram o processo de ensino-aprendizagem do gênero textual desenvolvido. Assim, os objetivos de ensino se articularam à motivação do aprender, mobilizando conteúdos curriculares desenvolvidos por meio de ações e operações (coletivas e individuais), para promover nos estudantes a apropriação intencional de saberes, conhecimentos (objeto de ensino), competências e habilidades, necessários ao desenvolvimento de capacidades de linguagem para a produção do gênero textual.

Neste trabalho é relatada a experiência do processo de construção do banner virtual de uma campanha comunitária, proposta nas aulas de Língua Portuguesa, modalidade ERE, com participação efetiva de 17 alunos (de um total de 32), da 2ª série de Ensino Médio (ETIM/ Eletrônica) de uma unidade escolar do interior paulista, com o objetivo de promover competências e habilidades, assim como o desenvolvimento de capacidades de linguagem na produção textual.

Intervenção didática: produção do banner da campanha comunitária

A produção da campanha comunitária começou quando o professor e os alunos foram colocados em atividade de ensino-aprendizagem. Nessa linha, o ensino foi abordado como atividade, contemplando o conteúdo, os sujeitos, objetivos, motivos, necessidade, ações, operações para promover a resolução coletiva de um problema, com contribuições individuais, conforme é descrito no Quadro 1.

Quadro 1: Etapas da intervenção didática para a produção da campanha comunitária, pela abordagem da AOE (Moura et al., 2010)

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Oficina

Objetivo

Atividades

Atividade síncrona

1 hora-aula.

Apresentação do projeto de dizer: produção de Campanha Comunitária de intervenção social

Explicar o projeto de produção do gênero campanha comunitária.

Ficcionalização de um problema para promover motivos e criar a necessidade de aprender.

Ficcionalização registrada na comanda. Explicitação dos motivos e da necessidade de realizar as atividades para promover aprendizado.

Atividade assíncrona

2 horas-aula.

Avaliação formativa: produção inicial da campanha comunitária.

Produzir um exemplar de campanha comunitária para analisar os saberes dos alunos.

Publicação da comanda com instruções para a produção da campanha, propondo o desafio para resolver um problema.

Atividade síncrona

2 horas-aula.

Análise online da avaliação formativa.

Análise de exemplares autênticos de campanhas comunitárias

Observação do plano geral da campanha: linguagem verbal e não verbal.

Percepção do mecanismo de persuasão (argumentação) e sequência injuntiva.

Determinar os conhecimentos que os alunos têm sobre a produção de uma campanha comunitária.

Reconhecer os elementos constitutivos de algumas campanhas comunitárias para estabelecer as regularidades entre elas. Visualizar diferentes formatos (banner, cartaz, folheto) do suporte virtual.

Estabelecer a relação argumentativa entre a linguagem verbal e não verbal da campanha em função da sua finalidade.

Percepção dos próprios saberes, por meio da análise de rascunhos de campanhas produzidos pelos alunos, para reafirmar motivos e necessidade de conhecimentos que faltam ser apropriados.

Análise online de diferentes exemplares reais de campanhas comunitárias veiculadas no ciberespaço.

Orientação sobre a construção da argumentação na campanha com efeito persuasivo.

Atividade assíncrona

3 horas-aula

Produção final da campanha

Produzir um banner com uma campanha comunitária sobre a inserção de literatura de autoria indígena na lista de leitura obrigatória de vestibulares.

Ações e operações. Confecção do banner da campanha comunitária.

Atividade síncrona

2 horas-aula.

Apresentação da campanha e Avaliação somativa

Apresentar o resultado do projeto de comunicação.

Observar o desenvolvimento das capacidades de linguagem na produção do gênero.

Meta. Apresentação online dos alunos e feedback do professor.

Atividades planejadas para a produção da campanha começaram após o esclarecimento da definição de ‘campanha comunitária’, como um gênero textual multimodal. Ele expressa uma situação comunicativa, com a intenção de persuadir e convencer o interlocutor, por meio de verbos expressos, geralmente, no modo imperativo, sugerindo um pedido, uma tomada de posição no sentido de fazer com que o problema seja solucionado. Foram destinadas, para percorrer as etapas de produção da campanha comunitária, um total de 10 horas-aula, cerca de 3 semanas (entre 14/06 e 02/07) com intensa interação assíncrona.

Por ocasião do estudo do indianismo (romantismo brasileiro), a ficcionalização foi facilitada a partir da exposição de uma situação real, apresentando aos alunos uma lista das obras para leitura obrigatória de 2 processos seletivos de vestibular. Assim, a situação-problema foi colocada da seguinte forma:

Após o conhecimento de obras literárias de autoria indígena, como contraponto de obras canônicas da literatura brasileira, como por exemplo, os romances indianistas, percebemos a importância das textualidades indígenas para superar o silenciamento e apagamento histórico. Nessa linha, podemos identificar a ausência de literatura de autoria indígena nas listas de leitura obrigatória nos vestibulares da USP e Unicamp.

Após a percepção do problema de ordem prática, foi proposto o seguinte desafio: Imaginem que vocês foram convidados para promover reflexões sobre “ausência de Literatura Indígena na lista de leitura de livros obrigatória de alguns vestibulares”. Para isso, vocês são convidados a realizar um banner virtual da campanha comunitária que será disponibilizada no blog do Grêmio da escola. A partir desse momento, motivos para os conhecimentos foram promovidos para realizar a intervenção social por meio da campanha.

Os grupos, de até quatro alunos, foram formados por afinidade. Os alunos realizaram encontros assíncronos para produzirem um rascunho do banner da campanha, orientados por questões norteadoras relacionadas ao título, local de origem do anúncio, assinatura (codinome), destinatários, objetivo central, lugar de circulação, veículo e suporte. Os textos apresentados pelos alunos foram analisados de forma síncrona para evidenciar a necessidade de apropriação dos conhecimentos.

Durante a aula síncrona seguinte, foi feita uma análise de insumos linguísticos autênticos (diferentes campanhas), dando ênfase nas dimensões linguísticas e discursivas do gênero, especialmente, nas sequências argumentativas e injuntivas, como mecanismos de persuasão. Apontou-se a necessidade de estabelecer relações argumentativas entre linguagem verbal e não verbal na função de finalidade.

Nessa aula, os alunos expuseram muitas dúvidas relacionadas ao desafio de produção da campanha, por exemplo, se poderiam usar imagens retiradas da Internet. Previamente, havíamos pensado em solicitar a criação também das imagens, mas, após expressarem essa dificuldade, foi explicada a necessidade de registrar a autoria das imagens de forma clara.

Para a realização das ações e operações que os alunos tiveram que mobilizar para a produção do banner da campanha comunitária, foram destinadas 3 horas-aula (1 semana). Durante esse período, foram realizadas várias trocas de mensagens, via chat, relacionadas à construção do banner (folder, folheto) virtual.

As propostas de intervenção social dos alunos foram apresentadas de forma síncrona, chegando, assim, à conclusão do projeto de comunicação. Nessa etapa, foi possível observar a apropriação de saberes, competências e habilidades, assim como o desenvolvimento de capacidades de linguagem para a produção do banner virtual do gênero textual multimodal em campanha comunitária. A consecução dos objetivos iniciais da proposta culminou com o feedback do professor.

A campanha comunitária sobre a inclusão da Literatura Indígena na lista de obras de leitura obrigatória dos vestibulares

A ficcionalização permitiu a colocação do aluno frente ao desafio de engajar-se na produção de uma campanha comunitária e, assim, exercer seu papel de participar de propostas de intervenção social. A experiência desse percurso permitiu que professor e alunos fossem colocados em atividade de ensino-aprendizagem, conforme o planejamento da intervenção didática.

Atividades, ações e operações foram realizadas pelos alunos, individual e coletivamente, por meio de encontros síncronos e interlocução assíncrona. Os banners apresentados estiveram em consonância com a proposta de realizar apelo para incluir a literatura de autoria indígena nas listas de vestibulares, como por exemplo: “Entre 2007 e 2021, nenhuma obra de autoria indígena foi solicitada nos vestibulares da Unicamp e da USP. Solicitamos representatividade indígena nos vestibulares” (Grupox). Alguns trabalhos foram colocados pelos grupos nas páginas de Instagram de uso particular de alguns alunos (Figura 1).

Figura 1: Exemplares de banners de campanha comunitária produzidos pelos alunos

Fonte: Acervo próprio.

Logo no início foi detectada alguma dificuldade na construção da argumentação e adaptação às necessidades específicas do gênero multimodal. Mas o episódio de maior reflexão exigiu uma intervenção não prevista pelo professor: o questionamento de um aluno (aluno X) ao se posicionar em relação ao tema por meio da seguinte mensagem enviada pelo chat:

sobre a "campanha comunitário" eu não acho correto, que os alunos tenham que defender de forma involuntário, a imersão da literatura indígena no programa educacional, vestibulares etc., eu acho que para os alunos defendem uma CC, deve ser de forma voluntário, e não ter relação com as escolas e trabalhos escolares, já que existem alunos que não concordam com essa iniciativa, como eu por exemplo. Mas não me entenda mal, eu sou a favor que a literatura nacional indígena, apareça de forma mais abrangente na educação, e que seus livros estejam no programa de leitura obrigatório, mas eu sou contra que isso seja feito por representatividade, eu tenho consciência de que a literatura indígena pode alcançar a educação brasileira, por meio da sua qualidade, e mérito de seus autores, e se o ministério da educação julgar necessário. Por tanto, eu não posso fazer um trabalho, em que eu tenha que defender algo que não concordo (ALUNO X).

Frente a essa situação, foi dito que ele mantivesse a sua posição ou a mudasse após algumas colocações que o professor faria na próxima aula síncrona, quando foram apresentadas as fundamentações com diferentes legislações, começando pela BNCC (Brasil, 2018, p. 492), que define a progressão das aprendizagens e as habilidades de Língua Portuguesa para o Ensino Médio, levando em conta “a inclusão de obras da tradição literária brasileira e de suas referências ocidentais, em especial da Literatura Portuguesa, assim como das obras mais complexas contemporâneas e das Literaturas Indígena, Africana e Latino-americana”.

Além dessa colocação, fez-se uma explicação sobre as competências gerais da BNCC (Brasil, 2018) e especificamente sobre a 1ª, 9ª e 10ª competência. A intervenção didática, nesse encontro síncrono, permitiu a discussão sobre a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Esse episódio fez contribuições para a prática docente da professora, pois, embora ela apresentasse aos alunos diferentes fundamentações para a realização de atividades escolares, nem sempre conseguia prever possíveis resistências. Contudo, uma grande satisfação para a professora foi quando o aluno X entrou em contato novamente e decidiu participar da campanha comunitária.

Considerações finais

A produção do banner da campanha comunitária para a inclusão da Literatura Indígena na lista de obras de leitura obrigatórias de vestibulares, possibilitou a organização da prática de ensino, visando à apropriação de saberes, à competência e às habilidades necessárias aos alunos para a produção textual desse gênero multimodal, assim como ao desenvolvimento de suas capacidades de linguagens. A professora e seus alunos, no papel de sujeitos do processo de ensino e aprendizagem, foram colocados em atividade frente a um problema. O desafio da proposta de intervenção social, em condições de ERE, gerou a necessidade e a motivação para resolver o problema, mobilizando ações, operações e tarefas para a consecução de um objetivo de ensino, análogo ao da aprendizagem, isto é, o desenvolvimento de capacidades de linguagem durante a apropriação do gênero.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Brasília, MEC/SEB, 2018.

DOLZ, Joaquim. As atividades e os exercícios de língua: uma reflexão sobre a engenharia didática. D.E.L.T.A., v. 32, n° 1, p. 237-260, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/delta/v32n1/0102-4450-delta-32-01-00237.pdf. Acesso em 10 abr. 2021.

MANZONI, Rosa Maria et al. Inovação pedagógica com a atividade orientadora de ensino: uma experiência com a carta argumentativa. Revista de Estúdios y Experiencias en Educación, v. 19, n° 39, p. 275-286, 2020.

MOURA, Manoel Oriosvaldo et al. Atividade orientadora de ensino: unidade entre ensino e aprendizagem. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, v. 10, n° 29, p. 205-229, 2010.

NASCIMENTO, Elvira Lopes. O gênero anúncio institucional de campanha comunitária como objeto de ensino de Língua Portuguesa e instrumento de socialização dos alunos do Ensino Médio público. Evento de Letras da Faccar, 2004.

ROJO, Roxane. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, João. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino. In: SCHNEUWLY, Bernnard; DOLZ, João. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004. p. 61-80.

Publicado em 15 de agosto de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

CANIZARES, Kathia Alexandra Lara. Campanha comunitária virtual: uma proposta de organização didática. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 31, 15 de agosto de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/31/campanha-comunitaria-virtual-uma-proposta-de-organizacao-didatica

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