Educação e partilha: a Escola no documentário "Pro Dia Nascer Feliz"

Lucas Alves Selhorst

Mestre em Ciências da Linguagem (Unisul), licenciado em Letras - Inglês (Uniasselvi), professor de Inglês na rede municipal de Imaruí/SC

Pro dia nascer feliz: um retrato da desigualdade brasileira

É comum encontrar filmes que tratam de temáticas relacionadas à educação. Fresquet (2013, p. 11) diz que

quando a educação – tão velha quanto a humanidade mesma, ressecada e cheia de fendas – se encontra com as artes e se deixa alagar por elas, especialmente pela poética do cinema – jovem de pouco mais de cem anos –, renova sua fertilidade, impregnando-se de imagens e sons.

Pro Dia Nascer Feliz, documentário brasileiro de 2006 dirigido por João Jardim, expõe os problemas, as contradições e os desafios da educação no país. Os atores do processo educacional relatam suas visões acerca da educação, falam sobre suas angústias e propõem reflexões sobre o tema. 

Quinze anos depois da produção do documentário, a velha educação, que caminha a passos lentos, continua lidando com as mesmas questões: o descaso do poder público, a desigualdade entre os sistemas públicos e privados, a (in)adequação do processo de ensino-aprendizagem, frente às demandas dos estudantes e a desvalorização dos professores, com suas diversas consequências.

Essas questões podem ser vistas sob diferentes perspectivas no filme: das alunas, das professoras e das diretoras das escolas. Essas diferentes perspectivas e a profundidade com a qual as temáticas são tratadas no filme, o torna pródigo em causar reflexões sobre a educação.

Freire, em Freire e Shor (1986, p. 146), diz que “a partir do momento em que entramos na sala de aula, do momento que você diz aos alunos: 'Olá, como vão?' você inicia, necessariamente, um jogo estético”. Esses jogos estéticos estão presentes o tempo todo no filme. Segundo Freire,

outro testemunho que não nos deve faltar em nossas relações com os alunos é o de nossa permanente disposição em favor da justiça, da liberdade, do direito de ser. A nossa entrega à defesa dos mais fracos, submetidos à exploração dos mais fortes. É importante, também, neste empenho de todos os dias, mostrar aos alunos como há boniteza na luta ética. Ética e estética se dão as mãos. Não se diga, porém, que em áreas de pobreza imensa, de carência profunda, essas coisas não podem ser feitas (Freire, 2015, p. 93).

Moser et al. (2019) explicam que o desenvolvimento da capacidade ética e estética do ser humano está relacionado à educação. Diante dessa relação ética/ estética, a educação não pode ser vista como um treinamento, mas deve ser tomada em um sentido mais amplo, como processo de humanização.

Essa educação, ainda segundo Moser et al. (2019), deve ser capaz de promover a conexão do indivíduo com a sua singularidade, assim como com o outro, para que haja tomada de consciência a fim de que se desenvolva uma relação à alteridade.

A análise neste artigo se divide em duas partes: A escola pública: da poesia de Valéria ao sonho de Deivison e A escola (ou o colégio) particular: entre o drama de Ciça e a depressão de Thaís. Esta análise bipartida está, aqui, baseada do conceito de partilha do sensível de Rancière (2009), para que, a partir do que é retratado no filme, seja possível refletir sobre a escola como peça formada e formadora da repartição das partes e dos lugares, fundada na “partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (Rancière, 2009, p. 15).

Educação, estética e desigualdades

Para Martins et al. (2010), na medida em que a televisão se tornou, a partir do golpe de 1964, o principal meio de disseminação do consumo e do entretenimento, as escolas ficaram vulneráveis à indústria cultural do país, o que causa danos à educação, dos quais pode-se destacar o fato de que se ignora que para além da alfabetização escrita, é necessário que se faça uma alfabetização estética em sentido amplo.

Para Martins et al. (2010, p. 6), “o cinema não apenas reconstrói pontes com a história passada, expropriada da consciência dos descendentes do massacre genocida que foi a colonização brasileira”. Ainda segundo Martins et al. (2010), o cinema coloca em pauta outra perspectiva de futuro, pois age como uma força estética produtiva e emancipatória. Portanto, deve-se considerar que há muitos professores e alunos demandando novos métodos de abordagem para o trabalho com audiovisual, que não sejam capazes apenas de entreter pelo que é exposto, mas que tenha perspectiva formativa, pela análise de como a forma estética sedimenta artisticamente a matéria social.

Pensando aqui na imbricação entre educação e estética a partir de um documentário que retrata diferentes perspectivas da educação e, portanto, as desigualdades do sistema educacional brasileiro, pode-se citar Santos (2011, p. 9): “nenhum pensamento reclama tanto a comunhão dos olhares para fora e para dentro como o pensamento sobre a educação [...] a educação é isso mesmo – um permanente movimento da decantação e da intersecção desses olhares”.

Os diferentes olhares que a educação reclama, vão ao encontro da necessidade de se considerar, como explicam Dourado e Oliveira (2009) que todo ato educativo se dá em um contexto de (dis)posições no espaço social, de pluralidade sociocultural, de problemas sociais etc.

Rancière (2009) diz que a educação estética é a maneira pela qual as pessoas podem alcançar uma formação que as permita viver em uma comunidade política livre, isto é, é o caminho para que possam habitar o mundo sensível.

Freire diz que quando olhamos para as desigualdades e pensamos na educação como uma forma de mudança, falamos em educação emancipadora ou educação libertadora, porém não se pode pensar em primeiro educar as pessoas para que depois elas possam mudar a realidade. A educação libertadora é uma das coisas que devem acontecer dentre outras coisas para que a realidade mude. A educação deve acontecer concomitantemente a uma luta mais ampla, que envolva diferentes frentes da sociedade (Freire; Shor, 1986).

Freire também explica que a principal expectativa da classe dominante em relação à escola é justamente a reprodução da ideologia dominante (Freire e Shor, 1986). Nessa linha, pode-se lembrar de Foucault (1996, p. 44) quando diz, “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”.

A escola pública: da poesia de Valéria ao sonho de Deivison

“Aqui, a gente, na maioria das vezes, nem tem chance de sonhar” (Fagundes, 2006). Valéria Fagundes é uma estudante de 16 anos, moradora de uma cidade pobre, que surge andando na rua, em uma feira, com sua amiga Mariana. Depois, aparece no sofá de casa reclamando da falta de oportunidades, inclusive da oportunidade de sonhar.

Após a reclamação desesperançosa, Valéria, em um dos seus atos de contradição, inunda a cena de esperança: puxa o livro Poesia Completa e Prosa de Vinícius de Moraes e diz que gosta da forma como o poeta se expressa, assim como gosta de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Menciona que os outros a acham estranha por gostar de ler.

Figura 1: Valéria, em casa, mostrando o livro de Vinícius de Moraes

Fonte: Captura de imagem do YouTube.

Valéria, moradora de Inajá, município de Pernambuco, mulher de família humilde, é uma estudante de uma escola pública que não se encaixa no estereótipo de poeta (homem, branco, rico, que passou por instituições de ensino renomadas).

O filme explicita a força da jovem poeta ao colocar em cena essa contradição que causa estranheza e a naturalidade com a qual ela lida com essa estranheza pela qual os outros a veem.

Valéria aparece, nesse momento inicial do filme, com a amiga ao lado e a mãe ao fundo. A amiga lê a poesia que em breve será recitada por Valéria. Já a mãe, com expressão reflexiva, se mantém observando a filha que lê:

Eu poderia ser uma adolescente normal, se não tivesse uma família formada por onze pessoas
Eu deveria ter sido uma criança normal, se não fossem as responsabilidades que eu cumpria
Eu deveria gostar do que faço, se não fosse obrigada a fazer
Eu deveria frequentar ambientes de lazer, se não tivesse que trabalhar
Eu deveria reclamar, quando dizem algo que não gosto
Se não tivesse inspiração para descrever cada situação
Eu poderia reivindicar quando sou julgada injustamente
Mas calo-me e a humildade prevalece
Eu deveria ter uma péssima impressão da vida, se não fosse a paixão que tenho pela arte de viver (Fagundes, 2006)

Na poesia de Valéria está denunciada a falta de oportunidades às crianças e aos adolescentes que precisam trabalhar em vez de terem acesso ao lazer. Valéria também denuncia os julgamentos injustos que recebe e em seguida da leitura da poesia alguém, possivelmente o diretor, pergunta o que acontece com ela na escola e ela explica que sua autoria não é reconhecida, pois eles (os professores) acham que ela copiou de algum lugar e lhe dão notas baixas.

Não é por acaso que, no filme, Valéria aparece a maior parte do tempo em casa e fora do ambiente escolar: nas cenas seguintes, ela tenta ir à escola, mas não consegue. O ônibus estava quebrado. Nas duas semanas de filmagem, ela só conseguiu ir à escola três vezes. Esse é o retrato do estudante de escola pública em sua luta pelo estar na escola: os longos trajetos, as dificuldades com o transporte, a descontinuidade nos estudos e a incerteza de cada dia.

Em um processo envolto pelo jogo estético no qual as palavras de Freire e Rancière se encontram (Freire, 2015; Freire; Shor, 1986; Rancière, 2009), pela estética na base da política, conforme explica Rancière (2009, p. 16) como um “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência”, nos tempos da “meritocracia”, do “estude enquanto eles dormem”, pode-se refletir de qual parcela Valéria(s) pode(m) se apropriar na partilha do sensível.

De Duque de Caxias, município do Rio de Janeiro, Deivison de 16 anos expõe outros problemas relacionados à vulnerabilidade social que estão presentes na escola pública: ele diz já ter tido contato com armas e drogas e é apresentado como um causador de problemas na escola.

Professoras e direção discutem o que fazer com Deivison: aprovar mesmo sem notas suficientes, reprovar, ou deixar em dependência? No conselho, as professoras e a direção não dizem tudo: a reprovação de um aluno considerado problemático significa mais um ano deste aluno na escola; a dependência significa levá-lo apenas para refazer algumas disciplinas no contraturno e deixá-lo com tempo livre dentro da escola nas demais disciplinas.

Figura 2: Deivison, após refletir sobre a sua aprovação

Fonte: Captura de imagem do YouTube.

Deivison foi aprovado. Alguém pergunta a ele se isso é bom e Deivison responde, rindo, que com certeza é. Em seguida, ele é perguntado sobre o que aprendeu em História, por exemplo. Ele diz que não aprendeu nada e sua expressão muda: ele se entristece como quem percebe na escola um funcionamento que faz sua esperteza parecer apenas inocência (Figura 2).

Embora ele diga que se envolveu com práticas ilícitas e a diretora afirme que ele sofre indiretamente influência da bandidagem do bairro, Deivison quer seguir carreira militar: mas não quer ser sargento, pois diz que pensa alto: quer ser coronel ou ter a patente maior possível. No ano seguinte (2006), conforme o filme revela no final, Deivison servia ao exército e estudava à noite. Ele havia sido reprovado no ano anterior (2005, em 2004, ele havia sido aprovado para o Ensino Médio, mesmo sem notas suficientes).

A escola (ou o colégio) particular: o drama de Ciça e a depressão de Thaís

Ciça, estudante do colégio Santa Cruz de São Paulo, aparece na sala de aula onde se discute acerca dos espaços em suas relações com as classes sociais. Em seguida, ela diz que não vai na favela, mas que tenta ver um pouco mais das pessoas (pobres) que encontra na rua, e não apenas enxergá-las como um incômodo e fechar a janela (do carro, depois, ela cita mais especificamente as crianças “pedindo” balas, possivelmente se referindo às crianças que vendem balas nas ruas).

Ciça explica que queria fazer um trabalho social, visitar os locais onde as favelas existem, mas não faz, pois ela teria que sair do seu conforto, deixar de ir para a aula de natação, por exemplo. Essa situação é definida por ela como complicada e triste.  

Ela diz que teme ser vista como uma menina que só estuda, o que segundo ela, não é verdade, já que ela também nada, faz yoga e outras coisas. Ciça chora ao falar que ao se dedicar aos estudos, sentiu-se menos interessante para os meninos, já que durante o ano ela só ficou com um menino.

Figura 3: Ciça ao se questionar sobre sua rotina de estudos

Fonte: Captura de imagem do YouTube.

Ciça diz que sua mãe está negociando sua ida para um outro colégio. Segundo ela, este colégio faz parte de uma grande rede. Ela diz que eles querem que ela faça cursinho lá e que saia seu nome no cartaz quando ela passar na faculdade. Ela reclama de como a mãe decide seus passos na educação, sem a sua participação, em um processo bastante marcado por interesses financeiros.

Depois, Ciça, chorando ao falar da pressão que envolve a escola e os estudos, diz que ela mesma se cobra, mas não sabe explicar direito de onde vem a cobrança. Ao ser perguntada sobre o que ela irá fazer ao sair da escola, responde que está entre a engenharia e a medicina, mas acha que irá para a engenharia.

A escola para Ciça, parece representar muito mais que um lugar para aprender, estabelecer relações, amizades e se desenvolver como ser humano. É um lugar fundamental na manutenção da partilha como ela está dada.

Thais, estudante do mesmo colégio, está em fase de recuperação, no fim do ano escolar. Há a possibilidade de ela reprovar de ano, e ela descreve essa situação como sendo de desespero e fala que sente falta de um apoio na escola, o que encontrou na família e em professores particulares.

Segundo ela, nos dias de entrega de avaliações, os banheiros ficam cheios de estudantes chorando, pois eles ficam pensando que não são capazes e que não merecem estar em um colégio bom como aquele.

O filme, então, mostra Thais seis meses antes: ela fala que tem medo da morte, explica que tem muitas perguntas na cabeça que ninguém sabe responder: o que acontece depois da vida? Quem sou eu? O que vai acontecer comigo? Como tudo começou?

Thais relaciona esses pensamentos com a sua depressão. Para ela, com a graça de Deus, o que a ajudou foi ter tido a ideia de conversar com as pessoas, falou com a mãe, com o diretor e com as amigas.

A cena volta para a época das recuperações e Thais diz que depois daquela época que a coisa pegou, (a depressão) veio bem mais forte. Então, explica o que aconteceu: não queria mais ir para a escola e sair com as amigas, não conseguia estudar, na hora das provas ela tinha um branco, um bloqueio, que a impedia de lembrar dos conteúdos.

Ela também relaciona seu problema a um conflito religioso: muitas amigas acreditam na religião, mas outras não acreditam. Sua mãe acredita, mas seu pai não acredita. Para Thais, ter descoberto que o pai não acreditava na religião foi como uma quebra, um tapa na cara, pois ela tinha os pais como base, e agora sente que estava tendo como base uma mentira.

Thais fala da decepção em torno das crenças que estavam sendo impostas a ela, e as crenças do pai, e de que a partir disso o colégio a chamou e disse que ela estava triste e que as suas notas estavam caindo.

Tudo isso acabou em uma crise na escola. Thais diz que procurou a professora de Filosofia, professora que ela define como gênia e diz ser a única pessoa que sabe o que ela está sentindo.

Ao saber que passou de ano, é para o pai que Thais liga. O pai a parabeniza e diz que eles precisam sair para beber e comemorar. O espectador é informado de que o colégio não permitiu que o conselho de classe fosse filmado, então, não se sabe em que condições Thais foi aprovada.

Figura 4: Thais falando com o pai pelo celular sobre a sua aprovação

Fonte: Captura de imagem do YouTube.

Ao falar com o seu próprio celular, de dentro de uma escola particular, Thais expõe uma desigualdade não somente nas escolas públicas retratadas no filme no ano de 2005, mas também com muitas escolas públicas da atualidade, nas quais mais de 15 anos depois, faltam tecnologias e outros itens básicos.

A escola e o colégio: as muitas faces da instituição escolar no documentário

Enquanto as escolas públicas, na maioria das vezes, são chamadas de escolas (e sempre nomeadas como escolas), a escola particular é mais chamada de colégio. Portanto, vemos uma instituição que ora se apresenta como escola, ora se nega como uma (embora se entenda que ambas são escolas e saiba que a palavra colégio não aparece em documentos oficiais). Fica revelado, desse modo, que há um desejo por parte da escola particular de se afirmar como diferente, por isso se nomeia de forma diferente.

O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2021) diz que o termo colégio vem do latim collegium e associa essa origem à colegiado, associação e corporação. O dicionário apresenta quatro definições para a palavra colégio:

1 – Estabelecimento de ensino não superior;
2 – Corporação ou grêmio de pessoas de uma mesma classe;
3 – Conjunto de colegiais ou alunos de um colégio;
4 – Conjunto de eleitores de um círculo.

Para a escola, o dicionário traz a origem também latina na palavra schola, associada ao ócio dedicado ao estudo, ocupação literária, lição, curso e lugar onde ensina. São dadas nove definições:

1 – Estabelecimento de ensino;
2 – Conjunto formado pelo professor e pelos discípulos;
3 – Os professores;
4 – Os discípulos;
5 – Doutrina, sistema;
6 – Seita;
7 – Aprendizagem, ensino, tirocínio;
8 – Método e estilo de um autor, de um artista;
9 – Processos seguidos pelos grandes mestres (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2021).

Embora as duas palavras tenham diversos sentidos, chama a atenção a relação entre colégio, corporação e separação de classes, isto é, o discurso pedagógico atravessado pelo discurso capitalista. Apenas a escola aparece associada à aprendizagem, enquanto o termo ensino aparece associado a ambas.

Pensando nas escolas como as pessoas que as formam, optamos por olhá-las por meio dos seus estudantes. Embora cada estudante seja diferente e configure um ponto de vista diferente da instituição escolar, alguns pontos unem os estudantes das escolas públicas, assim como unem das escolas particulares, ao mesmo que tempo que outros pontos separam os mesmos estudantes (assim como pode se pensar em pontos de ligação e de separação entre alunos das diferentes instituições, públicas ou particulares).

Valéria e Deivison são muito diferentes, mas ambos mostram que na escola há, também, adversidades. No entanto, a escola, para eles, é prazerosa. Deivison ri junto dos amigos das suas mazelas e suas aventuras na escola. Valéria luta para ir à escola. Ela gosta de estudar, de ler e de escrever.

Ciça e Thais também são bastante diferentes: uma é tida como exemplar, a outra tem dificuldade para passar de ano. No entanto, as duas têm a escola como um lugar de pressão e sofrimento. Ciça chora e Thais diz que muitas pessoas choram nos banheiros. Thais diz que tem depressão e associa o desenvolvimento da doença à escola (e às intersecções familiares e religiosas).

Se a escola pública se mostra falha ao não garantir muitos direitos, como o próprio direito de o aluno frequentá-la, como é o caso de Valéria, a escola particular também se mostra falha, quando Ciça, por exemplo, uma aluna estudiosa, demonstra sua alienação em relação às pessoas que ela considera pobres ou moradoras de favelas e de sua falta de disposição para “ajudá-las”. Pode-se perguntar a que se deve esse fato e deve-se pensar para além do “descaso do poder público”, já que é latente, também, o descaso da parcela da sociedade que tem maior poder político, quando essa parcela decide separar seus filhos de outros estudantes em uma sociedade na qual não há lugar para todos. À luz de Rancière (2009) e Freire e Shor (1989) podemos pensar como sendo mais do que um descaso, mas como um plano. Isto é, deve-se, também, se perguntar: a quem o poder público serve?

Ficam as perguntas: a escola particular poderia formar alunos críticos, sensíveis ao outro, empáticos, solidários, com vontade de ver mudanças no mundo? Ou ela só faz sentido como uma instituição de manutenção de uma partilha desigual? Que qualidade é essa que as escolas particulares têm? Como ela é medida? Qual preço os estudantes pagam (emocionalmente) em nome dessa qualidade?

Também chama a atenção como o próprio documentário trata os alunos de escolas (e classes) diferentes, de maneira também diferente: Ciça e Valéria são alunas estudiosas, mas o foco que dão ao futuro, acerca do que se vão estudar ou ser, é muito maior para Ciça do que para Valéria. Deivison e Thais tiveram dificuldades de passar de ano, mas ninguém parabenizou Deivison. Pelo contrário, o jovem foi levado a repensar seu merecimento, a se questionar acerca da sua aprovação. Thais foi parabenizada. Ninguém a perguntou se era bom ter passado, se ela merecia ou se ela havia aprendido algo, como fizeram com Deivison.

Considerações finais

Pode-se dizer que a escola retratada no documentário é uma instituição de muitas faces. Também é visível o quanto a escola se divide entre pública e particular atendendo a uma lógica da desigualdade e de uma partilha injusta dos espaços na sociedade. Vê-se que os desafios da educação no Brasil estão atravessados pela disputa de uma partilha e a definição do que se vende como uma educação de qualidade, é uma educação de manutenção das desigualdades.

A carência das escolas públicas serve, portanto, como uma baliza para que as escolas particulares possam se posicionar e se opor. A escola pública como é, se torna razão para a escola particular existir. Porém, o documentário deixa explícito que há um preço a ser pago por aqueles que são privilegiados: a pressão de manter seus privilégios. E é por isso que tantos alunos choram nos banheiros da escola particular.

Há, porém, para além do verniz da escola particular ou das dificuldades que se impõem sobre a escola pública, muitas questões que perpassam ambas: a forma como os sujeitos estão dispostos como alunos, professores ou direção/coordenação; as relações de amizade que se estabelecem entre os estudantes; a busca dos estudantes pela aprovação, dentre outras.

Desse modo, falar da “escola” requer pensar em uma instituição que é uma ao mesmo tempo que muitas. Por isso, dentre outros motivos, falar de educação é sempre muito complexo, pois é preciso reconhecer cada contexto. Falar da escola também requer reafirmar a necessidade de lutar por uma educação pública de qualidade e de questionar o conceito de qualidade, os reais objetivos da formação que a escola oferece e a forma como essa formação acontece.

Referências    

DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. 2021. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/. Acesso em: 18 dez. 2021.

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FAGUNDES, Valéria. 2006. Depoimento em Pro dia nascer feliz. 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nvsbb6XHu_I. Acesso em: 16 out. 2021.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 1996.

FREIRE, Paulo. Professora sim; tia não: cartas de quem ousa ensinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação: Reflexões e experiências com professores e estudantes de Educação Básica, dentro e fora da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

MARTINS, Aracy Alves et al. Outras terras à vista: Cinema e Educação do Campo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

MOSER, Alvino et al. Ética, estética e educação. Curitiba: InterSaberes, 2019.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo Experimental, 2009.

SANTOS, Ademar Ferreira dos. As lições de uma escola: uma ponte para muito longe. In: ALVES, Ruben. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Campinas: Papirus, 2011.

Publicado em 15 de agosto de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SELHORST, Lucas Alves. Educação e partilha: a escola no documentário "Pro dia nascer feliz". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 31, 15 de agosto de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/31/educacao-e-partilha-a-escola-no-documentario-pro-dia-nascer-feliz

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