Formação continuada de professores alfabetizadores: implicações de uma comunidade de prática após o isolamento social
Caroline Michele Brunken
Professora e gestora da Escola Municipal Dr. Hans Dieter Schmidt, de Joinville/SC, mestranda em Educação (PPGE/Univille)
Rita Buzzi Rausch
Professora no PPGE/Univille
Esta pesquisa está vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho e Formação Docente (Getrafor) do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade da Região de Joinville (Univille). Ela traz por objetivo compreender as implicações de uma comunidade de prática à formação continuada de professores alfabetizadores e à aprendizagem das crianças após isolamento social causado pela covid-19. O intuito dessa compreensão emerge principalmente após reconhecermos as lacunas de aprendizagem nas turmas de alfabetização causadas por esse isolamento social.
O foco da análise centra-se na perspectiva histórico-cultural, compreendendo a infância como condição social de ser criança. Buscamos, dentro da compreensão das implicações à da comunidade de prática formação continuada de professores alfabetizadores e à aprendizagem das crianças, apresentar preceitos de uma escola da infância que, a priori, se embasa na Antropologia da criança, na Sociologia da infância, na Psicologia e na Pedagogia, elementos que consideramos essenciais para uma prática pedagógica centrada na criança.
Ao trazer para o centro da prática pedagógica a alfabetização em contexto de letramento, enfatizamos a importância da formação continuada de professores direcionada para esse processo. Essa pesquisa contou com o seguinte referencial teórico: Gatti (2010), Nóvoa (2019), Rausch (2008), Imbernón (2010) e Cochran-Smith (2012). Esses autores nos auxiliaram na discussão dos aspectos relacionados à formação continuada de professores, no conhecimento profissional docente de professores reflexivos, na identidade docente, na experiência e na práxis pedagógica. Fundamentada na teoria histórico-cultural, a pesquisa apresenta conceitos de Vygotsky (1987) para defender a escola da infância, assim como a aprendizagem e o desenvolvimento da criança. O conceito de criança e infância são apresentados pela Sociologia da infância de James e Prout (1997). No que tange à alfabetização e ao letramento, trazemos os pressupostos teóricos de Soares (2020).
A pesquisa é qualitativa do tipo pesquisa-ação, realizada por meio de uma comunidade de prática. O campo empírico foi uma escola da Rede Municipal de Joinville e envolveu 5 professores alfabetizadores, com seus respectivos estudantes. Os procedimentos de produção de dados foram: a análise documental, a observação na comunidade de prática, a observação de planejamento e a entrevista. Após a produção dos dados, foi realizada uma análise de conteúdo e elencadas as seguintes categorias: formação de professores, trabalho colaborativo entre as professoras, identidade docente, prática pedagógica e olhar singular das professoras para a aprendizagem das crianças.
Além disso, a pesquisa apresentou significativos efeitos nos processos teórico-práticos em torno da ação docente, conforme os passos da pesquisa-ação, possibilitando afirmar que o processo formativo propiciou a reflexão crítica sobre as práticas, bem como um movimento de mudança em direção às práticas pedagógicas de alfabetização e letramento, aproximando cada vez mais a unidade aos preceitos de uma Escola da Infância e, também, a garantia do direito à aprendizagem das crianças.
Caminhos metodológicos
Parafraseando Saramago (1985, p. 233), “a viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa”. Esse talvez seja um dos sentidos da pesquisa, tornar-se memória e narrativa de uma prática estabelecida na unidade escolar. Para que isso fosse possível de forma significativa, a presente pesquisa teve sua abordagem qualitativa na tradição da educação marcada pelo nascimento da Antropologia, mais especificamente da Antropologia interpretativa, tal como o estudo da cultura.
A abordagem qualitativa na educação apresenta-se de diferentes formas e em contextos diversificados para a produção e a análise de dados. A abordagem privilegia, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação. Dessa forma, cumpre-nos destacar algumas denominações:
Utilizamos a expressão investigação qualitativa como um termo genérico que agrupa diversas estratégias de investigação que partilham determinadas características. Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objetivo de investigar os fenômenos em toda a sua complexidade e em contexto natural (Bogdan; Biklen, 1994, p. 16).
Diferenciada da pesquisa quantitativa, principalmente por sua abordagem, a pesquisa qualitativa, conforme Lakatos e Marconi (1996), trata de uma pesquisa que tem como premissa analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade do comportamento humano e ainda fornecendo análises mais detalhadas sobre as investigações, atitudes e tendências de comportamento. Assim, o que percebemos é que a ênfase da pesquisa qualitativa está nos processos e nos significados, um leque de elementos que não podem ser reduzidos a operações variáveis.
Assim, destacamos que, ao escolhermos uma pesquisa qualitativa, torna-se fundamental apresentarmos o tipo de pesquisa que será adotada dentro da abordagem, uma vez que a escolha possibilita a busca e a apreensão de um fenômeno com maior profundidade que auxiliará no desenvolvimento da pesquisa.
A presente pesquisa busca uma ampla e aprofundada interação entre os participantes, com foco de prioridade nos problemas apresentados e nas soluções a serem encaminhadas com uma ação concreta. A palavra de ordem é processo, no qual o objeto de investigação se apresenta por uma situação social e por problemas de diferentes naturezas que podem ser encontrados na situação. Convergindo com todas as ações apontadas anteriormente, utilizou-se a pesquisa-ação entendida como
um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (Thiollent, 1986, p. 14).
A pesquisa-ação é utilizada para a resolução de um problema prático, fazendo com que haja uma tomada de consciência dos agentes envolvidos na atividade investigada, gerando a produção de conhecimentos no envolvimento aprofundado de estudos relacionados ao objeto de investigação e/ou aos problemas que forem se apresentando no decorrer da pesquisa.
É justamente isso que se pretende com essa pesquisa, que supere a lacuna entre teoria e prática e que, pela escuta do conhecimento, se possa amenizar os problemas encontrados no processo de alfabetização. Contudo, com o objetivo de que a prática pedagógica possa virar uma cultura, existe um processo fundamental que é a formação de professores. Ela se constitui a partir do reconhecimento dos diferentes saberes trazidos pelos professores e pela tomada de consciência dos agentes envolvidos na atividade investigada, a partir dos instrumentos de produção de dados, rica, significativa e minuciosa nos detalhes do processo, caracterizando-se como abordagem qualitativa (Bogdan; Biklen, 1994). Esta pesquisa também se inspira em uma tipologia complementar que é a pesquisa-formação. Com base nisso, a pesquisa-formação é definida como sendo uma metodologia que contempla a possibilidade de mudança das práticas, bem como dos sujeitos em formação. Assim, a pessoa é ao mesmo tempo objeto e sujeito da formação (Nóvoa, 2019).
Para tanto, faz-se necessário um grupo de professores que se comprometam a participar do processo de aprendizagem coletivo dentro de um espaço compartilhado. A composição do grupo se justifica como procedimento de produção de dados – a Comunidade de Prática 1, pelo fato de que sua formação se dará com pessoas que se comprometem a participar do processo de aprendizagem coletivo dentro de um espaço compartilhado que é a escola.
A partir do diagrama da página anterior e em concordância com Wenger (1998), ao ser membro de uma comunidade de prática, os participantes desta pesquisa construíram conhecimentos técnicos e desenvolveram habilidades associadas às atividades realizadas em sua função. Assim, os participantes desempenham um papel ativo, não constituído apenas pela ação ou pela participação, mas para a necessidade de produzir conhecimento, adquirir experiência, contribuir para a discussão ou fazer avançar o debate acerca das questões abordadas.
A quantidade de horas e encontros realizados durante a comunidade de prática aconteceram nas aulas atividades, com sede na própria escola. Para compor o processo formativo, foram realizadas leituras complementares para análise, discussão e tomada de decisão pelo grupo. Consideramos também os momentos de pré-conselho e conselho de classe, como momentos formativos e ricos em discussões sobre aprendizagem. Além disso, foram realizadas análise de planejamento, observações de aula que auxiliaram no aprimoramento das práticas pedagógicas e no processo mesmo formativo.
A presente pesquisa teve como procedimento de produção de dados: a análise documental, a observação na comunidade de prática, a observação de planejamento e a entrevista. Seguimos, portanto, um cronograma e uma organização temporal conforme ilustrado no quadro abaixo:
Quadro 1: Cronograma do processo de produção de dados
No que tange à análise documental, vale ressaltar que os documentos analisados são documentos que marcam legalmente o período letivo, exigidos por regimentos, portarias, pareceres, entre outros, pois regem a educação e marcam o final do período letivo.
Os documentos constituem também uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas evidências que fundamentam afirmações e declarações do pesquisador. Representam ainda uma fonte “natural” de informação. Não são apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto (Ludke; André, 1986, p. 39).
Dentre esses documentos, fazem parte também aqueles que a rede municipal adota para registro, monitoramento e análise de resultados. No caso específico da Rede Municipal de Ensino de Joinville, utiliza-se o EVN, Sistema Escola Via Net e o Google Sala de Aula.
As observações das práticas pedagógicas realizadas pelas professoras alfabetizadoras foram, de forma respeitosa e minuciosamente discutidas, analisadas e interpretadas na comunidade de prática, uma vez que, na pesquisa-ação, a capacidade de aprendizagem está associada à investigação. Isso porque, como protagonistas, os sujeitos da pesquisa, as ações investigadas envolvem produção de material, circulação de informação e tomada de decisão coletiva (Thiollent, 1986).
Destacamos a importância da coerência do planejamento das professoras, a partir do que fora observado, assim como o cuidado com a delimitação do objeto de estudo para que não existissem distrações e se mantivesse o foco na investigação e na sua configuração espaço-temporal. As discussões foram registradas por meio de gravação de áudio. Utilizamos gravação de vídeo nas práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula para serem utilizadas nas discussões da comunidade de prática.
A entrevista foi realizada ao final da pesquisa e teve como objetivo levantar as principais aprendizagens e as ressignificações resultantes da comunidade de prática. A entrevista, semiestruturada, teve um roteiro (que fora anexado à proposta). As respostas dadas pelas professoras foram gravadas para posterior transcrição e análise.
Como procedimento de análise dos dados utilizou-se o método de análise de conteúdo, que, conforme Bardin (2009), torna-se um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Para legitimidade da análise foi obedecida a seguinte organização:
- A pré-análise;
- A exploração do material;
- O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação.
Para Franco (2005, p. 17), “o que está escrito, falado e mapeado, figurativamente desenhado, e/ou simbolicamente explicitado será sempre o ponto de partida para a identificação do conteúdo, seja ele explícito e/ou latente”. Portanto, a análise de conteúdo requer que as descobertas tenham relevância teórica, implicando em comparações contextuais a partir da sensibilidade, da intencionalidade e da competência teórica do pesquisador. Para isso, a análise de conteúdo se fundamenta na linguagem, entendendo-a como uma construção real de toda sociedade e como expressão da existência humana, sobre a qual se elabora e se desenvolve as representações sociais no dinamismo interacional.
A análise de conteúdo se constitui não só de perguntas e objetivos de investigação, como também de dados importantes para compor a pesquisa e ganhar um corpo documental. Assim, na presente pesquisa, utilizamos diferentes dados que por hora se tornam naturais para a pesquisa, como por exemplo: o planejamento das professoras e os dados de aprendizagem das crianças. Outros, provocados pela pesquisadora, são: a entrevista final e os elementos obtidos a partir das discussões na comunidade de prática. Para Bardin (2009), não só o princípio da homogeneidade e da pertinência deve ser observado, mas para a sua análise, o princípio da representatividade também é fundamental. Já para a análise dos documentos produzidos por ação do pesquisador, o mesmo autor se refere ao princípio da exaustividade.
Em seguida, cumpre ao pesquisador a seleção e a análise dos documentos com o objetivo de levantar as categorizações. Assim, realizou-se uma leitura flutuante (Bardin, 2009), permitindo a consolidação em quadros de análise temática. Após isso, com uma leitura mais aprofundada, foram analisadas contextualizações teóricas.
A pesquisa foi implementada em uma escola da rede municipal de Joinville, conforme carta de anuência. A escola está localizada no bairro Jardim Paraíso. O bairro Jardim Paraíso tem aproximadamente 18.559 mil habitantes e conforme os dados da Secretaria de Assistência Social está entre os quatro bairros da cidade de Joinville com mais famílias em situação de extrema pobreza. A escola atende, atualmente, 26 turmas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. No quadro de professores, apenas 24% são professores concursados efetivos na Rede Municipal de Ensino de Joinville. Nesse aspecto, ressalta-se ainda a importância da formação continuada na escola. Tivemos a satisfação de contar com a participação de todas as professoras do 1º e do 2° ano.
Trajetória da pesquisa
Com o objetivo de conhecer o processo inicial de alfabetização das crianças, apresentamos os dados referentes ao diagnóstico realizado com as crianças do 1° e do 2° ano, com o foco na alfabetização, buscando aferir os níveis de alfabetização no componente de Língua Portuguesa. O número de crianças matriculadas no final do período letivo é sempre maior, tanto no 1° como no 2° ano. Chama a atenção a diferença de 52,76% nas matrículas do 1° ano, realizadas durante o período letivo, quando comparada a do 2°. Nesse período, a unidade escolar apresentou seu pico de atendimento em 2018.
Do ano inicial de levantamento para a pesquisa em 2016, houve um aumento no número de matrículas para o 1º ano de 7,75% se comparado ao número de 2020. Quando analisamos os dados do 1° ano isoladamente, percebemos que os números apresentados sofreram uma oscilação, variando de uma taxa de 24,07% em 2017 para uma taxa de 2,88% em 2020, a menor apresentada na linha histórica. Podemos justificar esse percentual mínimo em 2020, porque o ensino, na maior parte do período letivo, estava em regime remoto e, mesmo com o retorno às atividades presenciais, os pais poderiam optar por permanecer nele com a criança. Dessa forma, independentemente se a família havia mudado de lugar, a criança não precisava ser transferida.
Ao analisarmos os dados do 2° ano, os números apresentados oscilam de 24,39% em 2016 para uma taxa mínima de 3,12% em 2020. Interessante que a taxa mínima no 2° ano ocorreu em 2021, ano que voltamos para o presencial em regime híbrido e algumas crianças com comorbidade permaneceram no remoto. Vale ressaltar que o número de crianças que permaneceu no remoto foi mínimo se comparado ao das crianças que voltaram para o presencial, mesmo em regime híbrido.
Quando analisamos as transferências realizadas no 1° ano durante essa linha do tempo, podemos observar que há uma média de 27 crianças transferidas por ano. Levando-se em consideração que as turmas do 1° ano são constituídas por 25 crianças, estamos falando de uma turma inteira de crianças transferidas. Os dados ainda se intensificam e se tornam mais complexos em 2021, quando 34 crianças são transferidas. Esse dado, em específico, pode refletir também uma fragilidade em relação ao processo de alfabetização, pela descontinuidade no processo.
Durante todo o período analisado, percebemos que a situação da unidade escolar, em termos de retenção, apresentou uma queda durante a linha histórica, principalmente quando comparada às taxas de 2016. Entretanto, ainda que as taxas tenham diminuído, a grande preocupação se dá quanto à qualidade do processo de alfabetização. Para justificar a preocupação na qualidade, percebemos que, mesmo antes da pandemia e do distanciamento social, a escola já mostrava fragilidades, seja pelos dados descritos anteriormente – de aprovação, retenção e transferências –, indicando rotatividade e descontinuidade de processo nas turmas de alfabetização, seja pelos resultados das avaliações em larga escala do Programa Mais Alfabetização.
Conforme a planilha (que será apresentada mais adiante), quando observamos os resultados da avaliação formativa do Programa Mais Alfabetização (PMALFA) de 2019, 100% das crianças concluintes do 2º ano do Ensino Fundamental, período final do ciclo de alfabetização, apresentaram um desempenho insuficiente, ou seja, níveis 1, 2 ou 3 no exame de proficiência em leitura (Brasil, 2019). Desse total, cerca de 36 crianças foram classificadas no nível 1, o que significa que são incapazes de localizar informação explícita em textos simples de até 5 linhas ou identificar a finalidade de textos como convites, cartazes, receitas e bilhetes. Notamos também que a taxa de aprovação de 2020, quando comparada a do ano de 2016, diminuiu no 1º ano. Isso se justifica a partir da legislação vigente. Nela, descreve-se que a reprovação para o 1º ano do Ensino Fundamental se dá a partir da infrequência (maior que 25%). Já no 2º ano, houve uma diminuição de 2,62%, quando comparada ao mesmo período.
Para o 2º ano, percebe-se que a taxa de aprovação se eleva em 5,2%, quando comparada aos anos de 2016 até o ano de 2020. Entretanto, vale ressaltar que a maior aprovação se deu no ano de 2020, período de atividades escolares não presenciais, quando as orientações da Secretaria Municipal de Educação foram dadas às unidades escolares pela Portaria Nº 785/2020 (Joinville, 2020).
Em relação às professoras, a partir das reflexões apresentadas por elas, reconhecemos a importância de o processo formativo colaborativo ter um momento específico, com foco em discussões e análises aprofundadas nos conceitos de alfabetização e letramento:
são processos cognitivos e linguísticos distintos, portanto, a aprendizagem e o ensino de um e de outro é de natureza essencialmente diferente; entretanto, as ciências em que se baseiam esses processos e a pedagogia por elas sugeridas evidenciam que são processos simultâneos e interdependentes. A alfabetização – a aquisição da tecnologia da escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento, ao contrário, a criança aprende a ler e escrever envolvendo-se em atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e escrita (Soares, 2020, p. 27).
Consequentemente, compreender que a alfabetização em contexto de letramento é entender que o gênero textual deve ser o eixo central de todo o processo, pois é a partir dele que ocorrerá a elaboração e a aplicação do planejamento para as classes de alfabetização, é tarefa árdua, pois deve-se, ainda, levar em consideração o ritmo de desenvolvimento e da aprendizagem da criança. De repente, como um estorninho (pequeno pássaro), nossa formação no céu, em compasso com o voo, nos apresenta à criança e à sua aprendizagem. É impressionante o quanto isso faz com que nossas asas batam numa rapidez de piscar de olhos. Bem ali, retratamos toda a preocupação que se coloca a nossa frente, por meio daquela criança.
As professoras defendem a arte de ensinar e lindamente reconhecem a criança como sujeito potente, pois todas aprendem. Ritmo e tempo de aprendizagem descrevem a preocupação do que fazer e do que é possível fazer quando há um achatamento do tempo pedagógico. É compreensível a angústia, porque, como já descrito aqui, são 200 dias letivos não vividos em sua totalidade dentro da escola. O tempo pedagógico da escola foi organizado a partir do regime híbrido, onde as crianças uma semana estavam na escola e na outra em casa, realizando atividades pedagógicas sem o professor.
Há, entretanto, algo muito interessante do que está exposto na fala: a preocupação em fazer com que todas as crianças avancem em relação à aprendizagem. Não tínhamos respostas prontas, porém ao conversarmos e discutirmos sobre o problema, chegamos aos seguintes questionamentos: 1) Quem é essa criança que não avança? 2) Quais instrumentos precisamos usar para diagnosticar e acompanhar a sua aprendizagem? 3) O que precisamos analisar no planejamento e na prática do professor para que essa criança avance na sua aprendizagem?
A partir desses questionamentos, percebemos a importância de aprofundar na avaliação formativa. Além disso, precisamos acompanhar o processo de aprendizagem das crianças, com dados concretos, que nos possibilitem fundamentar o planejamento pedagógico. Dessa forma, compreendemos que
avaliação da aprendizagem é uma prática rigorosa de acompanhamento do educando, tendo em vista sua aprendizagem e, consequentemente, o seu desenvolvimento. A avaliação da aprendizagem é um ato rigoroso de acompanhamento da aprendizagem; ela permite tomar conhecimento do que se aprendeu e do que não se aprendeu e reorientar o educando para que supere suas dificuldades e carências, visto que o importante é aprender (Luckesi, 2011, p. 376).
A avaliação formativa da aprendizagem que nos dá subsídios para ampliar a nossa capacidade de observação do que as crianças já sabem, coerentes com a realidade e fundamentados pelo currículo. Assim, entendemos a importância em trazer a fala de uma das professoras:
O que nos falta é ter um instrumento que nos auxilie a compreender o que a criança já sabe. Nós aplicamos as hipóteses de escrita, mas fica nisso. Precisamos de algo mais minucioso para que possamos saber onde a criança está de fato na sua aprendizagem e a partir daí tomar as decisões necessárias no planejamento (Professora Alfabetizadora Simone, Diário de Aprendizagem, 2021).
Foi necessário tomar as decisões diante da observação da prática e a partir do diagnóstico de aprendizagem sobre a alfabetização inicial das crianças. Precisávamos ter informações concretas sobre a aprendizagem para que as ações fossem realizadas e aplicadas, a partir do que as crianças já sabem. Era fundamental que as propostas pedagógicas e as intervenções fossem pontuais e sistemáticas, uma vez que o tempo pedagógico presencial, com a professora, fora reduzido pelos protocolos de saúde.
O planejamento das propostas pedagógicas se complicou na condição do regime híbrido, por várias razões. Podemos destacar que as atividades eram disponibilizadas pelo WhatsApp e/ou nos tablets da escola, dificultando a sua resolução, porque o arquivo disponibilizado era em PDF. Além disso, as propostas apresentadas deveriam se aproximar da zona de desenvolvimento proximal da criança, no entanto, a intervenção não era feita, uma vez que muitas famílias não conseguiam realizar a ação cuja competência pertence à escola. Por isso, a importância em enfatizar o planejamento em sequências didáticas.
Construa um planejamento para uma semana ou uma quinzena, ou para o tempo necessário para estabelecer uma sequência adequada das atividades que possibilite desenvolver as habilidades e os conhecimentos pretendidos para aquela fase do processo de aprendizagem das crianças (Soares, 2020, p. 301-302).
Apresentamos essa consideração, justamente porque os roteiros foram organizados e planejados, para cada duas semanas, com a preocupação de que na primeira semana, a criança realiza as atividades na escola e na outra em casa. Porém, precisamos entender que em cada turma tínhamos dois grupos diferentes, que frequentavam a escola presencialmente em momentos alternados. Além disso, dispúnhamos de um terceiro grupo que realizava todas as atividades de forma remota. É interessante ressaltar que os dois primeiros roteiros, do início de fevereiro, foram elaborados pelas professoras em dezembro de 2020, mesmo sem terem coletado nenhum dado em relação à aprendizagem das crianças. Para o planejamento, as professoras regentes se dividiram na elaboração das atividades de acordo com os seguintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais e Ensino Religioso.
A elaboração do planejamento por sequência didática permite ao professor também uma melhor visibilidade da aprendizagem das crianças. Contudo, exige do professor uma ampla compreensão do currículo, das habilidades e dos conhecimentos que deverão ser desenvolvidos e adquiridos pelas crianças. Para tanto, é necessário compreender que
planejar é definir, passo a passo, o caminho capaz de desenvolver nas crianças as habilidades e conhecimentos para que se tornem alfabetizadas, leitoras e produtoras de textos […] esse caminho passo a passo é uma sequência didática: a organização, de forma ordenada e articulada, das atividades para atingir determinadas habilidades ou conhecimentos (Soares, 2020, p. 302).
Nessa compreensão, chegamos ao ponto central da pesquisa, que é a formação de professores. Sabíamos que seria por meio dela que conseguiríamos elaborar uma proposta pedagógica que pudesse minimizar os impactos do momento em que estávamos vivendo. Uma formação de professores que privilegiasse os conhecimentos e as experiências de cada professora, na qual o foco fosse aprimorar a aprendizagem da criança e as suas chances na participação e na contribuição para uma sociedade diferente e democrática (Cochran-Smith, 2012).
A preocupação com lacunas de aprendizagem resultantes da forma como a educação foi organizada para o período de pandemia, com sistema não-presencial e, em seguida, de rodízio para aulas presenciais com o regime híbrido, reforça ainda mais a importância de um processo formativo colaborativo entre os professores alfabetizadores, por meio de uma comunidade de prática. Uma ação que exigirá dos participantes uma “proposta crítica de intervenção educativa, uma análise da prática do ponto de vista dos pressupostos ideológicos e comportamentais subjacentes” (Imbernón, 2010, p. 49).
Nosso grupo buscou encontrar as rotas necessárias para alcançar a aprendizagem das crianças. O impulso se deu dessa forma, garantindo que, ao final, nenhuma de nós chegaria da mesma forma. Isso tem um significado tão importante e essencial que, com certeza, nosso pouso não seria num lugar qualquer, mas em um lugar muito especial. Por isso, a importância de a escola e os professores compreenderem a importância do olhar, da escuta e dos vínculos.
Considerações finais
Realizar uma pesquisa sobre formação continuada a professores alfabetizadores, a partir de uma comunidade de prática após isolamento social foi, sem dúvida, um voo e tanto. Temos a consciência de todas as dificuldades enfrentadas para se construir uma formação de professores, principalmente quando ela ocorre na escola. Para que a formação aconteça de forma regular e significativa é necessária uma organização da equipe gestora e pedagógica, pois esse aspecto demonstra o quanto a união de toda a equipe é necessária, para além dos participantes da comunidade de prática, por isso apresentamos os bastidores de como ocorreu a organização. O cotidiano da escola tem um movimento muito dinâmico e intenso, resultante da ação de muitas pessoas em torno de um mesmo propósito.
A complexidade e a sistematização dos passos desta pesquisa-ação nos fizeram realizar a formação continuada das professoras alfabetizadoras por meio da comunidade de prática. A decisão em criá-la, viabiliza um meio para a elaboração do conhecimento na troca entre os mais experientes e os mais jovens, gerando o fortalecimento entre os profissionais da educação (Wenger-Trayner; Wenger-Trayner, 2015). Assim, fundamentadas na importância de que todos nós trazemos as experiências e as vivências da imersão no mundo e na cultura, com intensidades diferentes, entendemos que elas nunca podem ser desconsideradas na prática pedagógica, mas valorizadas e potencializadas dentro do contexto de formação continuada.
Buscamos, dentro da compreensão das implicações à formação continuada e à aprendizagem das crianças, apresentar preceitos de uma escola da infância que a priori se embasa na Antropologia da criança, na Sociologia da infância, na Psicologia e na Pedagogia, elementos para sua constituição. Ao trazer para o centro da prática pedagógica a alfabetização em contexto de letramento, enfatizamos a importância dessa formação direcionada ao processo.
Nessa rota, descobrimos a importância da análise dos dados tão necessária para a realização desta pesquisa. A falta de documentação pedagógica dificultou, mas não impediu a realização de ações pedagógicas importantes para a qualificação do processo pedagógico descrito por este estudo. Aprofundar nossas concepções sobre alfabetização e letramento tornou-se fundamental. Principalmente quando os dois conceitos se entrelaçam nos diferentes espaços e práticas pedagógicas, possibilitando uma alfabetização em contexto de letramento. Essa concepção prioriza o gênero textual e põe em foco o ensino em função da aprendizagem simultânea da alfabetização inicial e seus usos para a leitura e produção de textos. Entendemos que, como professores, nossa aprendizagem também é um processo.
Conhecemos, estudamos e discutimos textos que possibilitaram que nossas discussões tivessem consistência teórica, a ponto muitas vezes de confrontarmos nossas concepções e ressignificá-las. Nossos estudos e discussões foram ao encontro da fundamentação teórica desta pesquisa. Fortalecemos o pressuposto que toda criança aprende e a importância da criança na centralidade do planejamento.
Nosso olhar singular e sensível refletiu também sobre as nossas ações pedagógicas e percebemos o quanto é importante esse olhar singular sobre a criança e o fortalecimento de outros conceitos. Com certeza, não somos mais as mesmas, a escola não é mais a mesma. Esse voo possibilitou metamorfoses necessárias. Houve um impacto significativo em toda equipe e escola. Permanecemos com a comunidade de prática. Outras ações, para além desta pesquisa, estão fazendo parte do nosso cotidiano. Reconhecemos a complexidade do processo de alfabetização inicial e o quanto ele auxilia na aprendizagem das crianças, com o nosso olhar sensível e atencioso às mães.
Dessa forma, nasce o Projeto Hans Dieter Furta-Cor, com o objetivo de ajudar na saúde mental das mães de crianças autistas. Uma ação emergente e pontual que, para nascer, foi necessário que sentíssemos na pele o que uma criança autista não compreendida pode fazer. Assim, nos colocamos na posição de aprendentes junto às mães, pois elas nos ensinam como podemos, de fato, respeitar as crianças na sua singularidade.
Entendemos, como escola, que é por meio da imersão nas linguagens culturais que as crianças aprendem a ser e a comunicarem-se com os demais. Dessa forma, a alfabetização e o letramento são reconhecidos como processos de descoberta e de construção de conhecimentos que se criam a partir de questões e perguntas percebidas como significativas pela criança e que devem ser promovidas, apoiadas e mediadas pelo professor.
Ao fim de todas as ações propostas, o grupo compreendeu que a linguagem escrita se constrói por meio da prática efetiva: aprende-se a ler, lendo, aprende-se a escrever, escrevendo e, também, aprende-se a ler, escrevendo e a escrever lendo. Porém, a unidade de funcionamento da linguagem escrita é o texto que engloba todas as demais estruturas, que se correspondem e se manifestam em situações reais de uso, por variadas situações da vida. Assim, chega-se à conclusão de que não se trata apenas de uma elaboração de “novos métodos”, mas de uma reestruturação completa da maneira de pensar e organizar as práticas pedagógicas em salas de aula. Essa reestruturação acontece a partir de uma conscientização e de uma análise das práticas pedagógicas realizadas pelos próprios professores em formação continuada.
Referências
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Publicado em 15 de agosto de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
BRUNKEN, Caroline Michele; RAUSCH, Rita Buzzi. Formação continuada de professores alfabetizadores: implicações de uma comunidade de prática após o isolamento social. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 31, 15 de agosto de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/31/formacao-continuada-de-professores-alfabetizadores-implicacoes-de-uma-comunidade-de-pratica-apos-o-isolamento-social
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