Aprendizagem por investigação como ferramenta metodológica para a des/re-construção de narrativas equivocadas

Aline da Silva Xavier Magela

Mestre em Educação Básica (CPII), professora de Geografia da SME/RJ

O presente relato de experiência busca trazer reflexões sobre a importância de estimular o trabalho pedagógico a partir do desenvolvimento da capacidade de investigação dos alunos da Educação Básica, a fim de tensionar as narrativas sócio-históricas equivocadas que impactam as relações construídas no espaço geográfico. Esse movimento é fruto da releitura das competências estabelecidas para a disciplina de Geografia, propostas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Embora haja muitas críticas ao trabalho por competências quanto a suas finalidades formativas atreladas a uma educação neoliberal, no âmbito deste relato, utilizaremos a competência em questão como um recurso metodológico que viabiliza oferecer uma educação colaborativa, democrática e emancipatória aos estudantes da Educação Básica.

Além de estar prescrito na BNCC, há na educação um movimento pedagógico favorável à realização do trabalho por investigação, especialmente voltado para o ensino de Ciências. Com base na produção teórica desse campo, ampliaremos sua aplicação à presente proposta, que se situa na área das ciências humanas, especificamente no ensino de Geografia.

Sobre a importância de criar um ambiente de aprendizagem pautado no trabalho por investigação, encontramos em Azevedo (2004, p. 20) alguns apontamentos de potencialidades dessa competência. Para o autor, o trabalho por investigação tem como objetivo “levar o aluno a pensar, refletir, debater e justificar suas ideias e aplicar seus conhecimentos em situações novas”. Isso significa que os alunos se tornam capazes de operar de forma a interagir com os temas estudados, não apenas como expectador/receptor do conhecimento, mas como protagonista em sua construção.

Em conformidade a essa premissa, Libâneo (2009) traz uma perspectiva mais complexa sobre o trabalho por investigação, ao constatar que essa metodologia desenvolve nos alunos uma série de mecanismos cognitivos que os motiva a estar envolvidos de forma criativa e com certo grau de autonomia no processo de aprendizagem. De acordo com o autor,

Os alunos aprendem a trabalhar com conceitos e a manusear dados, a fazer escolhas, a submeter um problema a alguma teoria existente, a dominar métodos de observação e análise, a confrontar pontos de vista. Além disso, possibilita uma relação ativa com os conteúdos e com a realidade de que pretendem dar conta, ajudando na motivação dos alunos para o aprender (Libâneo, 2009, p. 29).

Amparados na importância dessa competência, desenvolvemos a atividade de Seminário de Pesquisa com alunos de duas turmas do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro. O tema escolhido foi um desdobramento da habilidade proposta para o 2º bimestre: “Reconhecer e valorizar as heranças culturais dos povos originais nas culturas dos continentes americano e africano”, localizada no eixo “Redes, conexões e escalas” da proposta de priorização curricular vigente para toda a rede municipal, no contexto pós-pandêmico, em 2022.

A metodologia de abordagem dessa temática contemplou o quinto item do quadro de Competências Específicas de Geografia para o Ensino Fundamental, proposto pela BNCC, que atribui à Geografia o desenvolvimento da seguinte competência (dentre outras) nos estudantes:

Desenvolver e utilizar processos, práticas e procedimentos de investigação para compreender o mundo natural, social, econômico, político e o meio técnico-científico e informacional, avaliar ações e propor perguntas e soluções (inclusive tecnológicas) para questões que requerem conhecimentos científicos da Geografia (Brasil, 2018, p. 364, grifo nosso).

Considerou-se ainda o cumprimento da Lei nº 10.639/03, que trata da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” na pauta curricular oficial nas redes de ensino de todo o país. Sendo assim, o objetivo geral da proposta de trabalho foi abordar, por meio da metodologia de investigação, a relevância do continente africano na construção sociocultural brasileira, de modo a romper com a visão eurocêntrica distorcida sobre África, e a promover a valorização da cultura africana.

Dessa forma, o tema central das pesquisas propostas aos alunos foi “Desconstruindo o imaginário eurocêntrico sobre o continente africano”.

Desconstruindo o imaginário eurocêntrico sobre o continente africano: metodologia

A proposta dessa atividade se dividiu em quatro etapas:

  • contextualização do tema com os estudantes;
  • atribuição e organização da pesquisa;
  • orientação; e
  • apresentação dos trabalhos.

A contextualização consistiu em apresentar aos alunos a importância de trabalharmos o tema e sua relevância para a compreensão da herança africana na formação cultural brasileira.

Na segunda etapa, que ocorreu em uma aula posterior, os alunos foram divididos em grupos. Cada grupo recebeu um tema para investigar, contendo os tópicos em que deveriam se aprofundar, orientações de como a pesquisa deveria ser feita, modos de apresentação e prazos.

Já a orientação foi realizada com grupos que tinham dúvidas e/ou pediam auxílio na execução da pesquisa. As orientações ocorriam ao final das aulas, e também por meio do aplicativo WhatsApp. Na última etapa, apresentação, os grupos compartilharam o resultado de suas investigações com os colegas da turma, expondo as informações e conhecimentos adquiridos ao longo do processo.

Desenvolvimento

A proposta de investigação feita aos alunos buscou apresentar uma perspectiva decolonial sobre África e as heranças deixadas principalmente na construção cultural, social e econômica do Brasil. Isso foi feito por meio da contestação da narrativa europeia sobre a formação da sociedade brasileira.

As aulas foram conduzidas a partir de questionamentos provocativos sobre o tema. Para isso, foram projetadas imagens (lugares da África, reinos antigos, pinturas presentes nos quadros feitos por colonizadores), a fim de problematizar as narrativas históricas sobre África e estimular a reflexão dos estudantes.

Na aula destinada à divisão dos grupos, cada um recebeu um tema para aprofundamento. Os temas foram pensados de modo a possibilitar aos estudantes o desenvolvimento de uma visão mais realista sobre a riqueza e a relevância histórica da África. Desse modo, foi possível levá-los à compreensão do quanto a narrativa europeia que se construiu ao longo do tempo buscou empobrecer e reduzir a importância e a riqueza do continente africano e de seu povo.

Os temas propostos aos grupos foram:

  • África pré-colonial: civilização egípcia;
  • África pré-colonial: Reinos de Gana e Mali;
  • África pré-colonial: Reino de Axum;
  • África colonial: as potências europeias que colonizaram a África;
  • África pós-colonial: processos de descolonização da África;
  • O islamismo no norte da África;
  • Cultura africana: alguns exemplos de etnias;
  • Governos ditatoriais na África;
  • Representações do continente africano;
  • Aspectos naturais do continente africano.

Cada tema estava atrelado a questões norteadoras para auxiliar na investigação. Elas direcionaram os grupos a situar seus temas no tempo (período histórico cronológico) e no espaço (localização geográfica), além de apresentar as principais características relacionadas ao assunto central da pesquisa.

Ao longo do processo de investigação, alguns grupos utilizaram o recurso da orientação. A principal dúvida que apresentaram foi sobre os processos de seleção de informações e de imagens correspondentes para ilustrá-las.

Na culminância do trabalho, os grupos deram a seus temas uma abordagem própria. As apresentações foram feitas através de projeções, utilizando recursos como Canva e PowerPoint. Os alunos exploraram bem as imagens que ilustraram suas pesquisas. Alguns grupos foram além, e levaram para a turma degustação de comidas típicas de países africanos e música.

Cabe destacar que algumas fragilidades demandaram atenção. A principal delas foi em relação às fontes pesquisadas. Grande parte dos alunos limitaram-se a fazer pesquisas unicamente através da internet, sem a preocupação de referenciar as fontes utilizadas. Não se prestigiou as fontes bibliográficas, especificamente de livros impressos, disponíveis na sala de leitura (biblioteca) da escola, que dispõe de um acervo relevante sobre história e cultura africana.

É interessante destacar que alguns grupos conseguiram fazer conexões interdisciplinares, especialmente com a disciplina de História e Artes.

Resultados alcançados

O trabalho por investigação possibilitou que os estudantes desenvolvessem outras competências fundamentais para um processo formativo social e historicamente crítico. Os alunos mobilizaram princípios do raciocínio geográfico, especialmente os de localização, conexão, diferenciação e distribuição.

A apresentação dos temas no seminário de pesquisa mostrou que eles se apropriaram dos temas investigados, desenvolvendo autonomia, senso crítico, questionamentos e reflexões. Além disso, essa proposta de trabalho possibilitou que os estudantes desenvolvessem responsabilidade, respeito às diferentes visões de mundo e cooperação.

De modo geral, todas as pesquisas apontaram para o entendimento de uma África forte, possuidora de riquezas, cultura e história, protagonista no mundo. Por meio da investigação proposta, os grupos conseguiram demonstrar uma nova percepção sobre a influência e a importância do continente africano, e sobre como a narrativa europeia buscou apagar isso ao longo da história.

Considerações finais

O mundo como o conhecemos hoje é resultado de avolumadas investigações feitas ao longo da história. Apesar de as construções narrativas terem se consolidado a partir da dominação das informações obtidas, é a partir do estímulo à curiosidade e do processo investigativo que se torna possível dar novos sentidos à visão de mundo que nos foi dada como pronta, acabada.

A investigação é essencial para que conheçamos um pouco de nosso passado, e como ele configura nosso presente e futuro. Ela norteia todas as nossas relações (sociais, econômicas, políticas, ambientais, culturais), e, por isso, dominar os mecanismos da pesquisa nos possibilita protagonizar a construção da sociedade que queremos ser, e dos rumos que devemos tomar.

No âmbito da escola, especialmente da Educação Básica, é preciso iniciar os estudantes no processo de pesquisa, respeitando o grau de complexidade de cada ano de escolaridade. Nesse sentido, cada disciplina curricular possui instrumentos metodológicos próprios que tornam possível o desenvolvimento dessa proposta. Na Geografia, dispõe-se do raciocínio geográfico, e também de outras possibilidades de investigar o espaço e as relações que se dão sobre ele.

Diante do exposto, concluímos afirmando que a educação tem papel fundamental de instrumentalizar os estudantes a saber operar com ferramentas investigativas, tornando-os capazes de desconstruir narrativas equivocadas sobre nossa história, desfazer sofismas, combater injustiças e buscar a construção de uma sociedade mais justa.

Referências

AZEVEDO, M. C. P. S. Ensino por investigação: problematizando as atividades em sala de aula. In: CARVALHO, A. M. P. (org.). Ensino de Ciências: unindo a pesquisa e a prática. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. p. 19-33.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 5 maio 2022.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEF, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 9 set. 2019.

LIBÂNEO, José Carlos. Conteúdos, formação de competências cognitivas e ensino com pesquisa: unindo ensino e modos de investigação. São Paulo: USP, 2009. (Cadernos de Pedagogia Universitária). Disponível em: http://www.prg.usp.br/wp-content/uploads/caderno11.pdf. Acesso em: 20 dez. 2022.

RIO DE JANEIRO (Prefeitura). Secretaria Municipal de Educação. Priorização Curricular 2022: Ensino Fundamental. Geografia. Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/14188803/4355205/ApresentacaoPriorizacaoCurricularGeografiarevisado.pdf. Acesso em: 2 abr. 2022.

Publicado em 22 de agosto de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MAGELA, Aline da Silva Xavier. Aprendizagem por investigação como ferramenta metodológica para a des/re-construção de narrativas equivocadas. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 32, 22 de agosto de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/32/aprendizagem-por-investigacao-como-ferramenta-metodologica-para-a-desre-construcao-de-narrativas-equivocadas

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