Aprendizagem colaborativa in progress: a utilização das lives pelo professor em tempos de covid-19
Luciane Medeiros de Souza Conrado
Doutora em Letras, mestra em Ciências da Arte (UFF), professora adjunta do UniCarioca
Renato dos Santos da Costa
Doutorando em Administração (Unigranrio), mestre em Novas Tecnologias Digitais na Educação (UniCarioca), professor EBTT do IFRJ
Em 13 de março de 2020 fomos orientados, pela manhã que, oficialmente, a partir de segunda-feira (16), estaremos em quarentena. Covid-19, uma pandemia mundial que necessita de medidas de isolamento total, única forma possível de achatamento na curva de contágio.
Acostumada com o universo das artes, essa foi a linguagem que escolhi para me estabelecer como sujeito ativo no mundo. Sempre acreditei como Platão e Herbert Read, que a arte deve ser à base da educação e não ao contrário. Platão escreveu sua teoria, consonante com psicólogos, psicopedagogos e agora neurocientistas, por meio da neuroestética:
Toda a graça do movimento e harmonia da vida - a própria disposição moral da alma - é determinada pelo senso estético: pelo reconhecimento do ritmo e da harmonia. As mesmas qualidades, afirmou ele, "entram em grande parte na pintura'" e todas as outras artes, na tecelagem e no bordado, na arquitetura e em toda a manufatura de utensílios em geral; e ainda na constituição de todos os corpos e plantas existentes, pois em todas essas coisas a graça e a ausência da graça encontram lugar (Read, 2001, p. 66).
Vejo, entretanto, que a arte é subjugada como algo supérfluo, como entretenimento ou algo menor, dos outsiders, dos "maluquinhos" ou dos "professores doidinhos", não metodológicos. Mas isso não é privilégio meu. Como Sócrates, também acredito que nada sei, especialmente quando olho para inúmeras teorias e tantos fenômenos a conhecer, a sondar. Há muitos Leonardos, Van Goghs, Steve Jobs, Giottos, Tarcilas, Fridas, por aí. São artistas professores e professores artistas que vão na contramão da história, entendendo o sistema, ainda conteudista, imerso na fragmentação dos saberes e ligado a uma prática cartesiana que impede a interação. Não faço juízos de valor, mas como atriz, aprendi a brincar, a jogar, a me comunicar, a entender que a gente toca o outro e é tocado por meio dos sentidos. Daí a importância de colocar para fora, por meio da expressão corporal, o transbordar do encontro entre professor e educando. Assim, vejo-me construindo a prática docente pela visão não dicotômica entre Ciência e Arte, mas nas duas áreas imbricadas no cérebro humano. Esse jeito de ser, me conduz para soluções infindáveis, para uma coragem quase ‘kamikaze'. A coragem dos que sonham e realizam, dos criativos e criadores, dos que riem dos seus erros e os expõem sem medo, porque sabem que erros e acertos advêm da experiência, por isso a vida e o conhecimento valem a pena.
Caminho pelo mundo com os olhos infantis de Da Vinci, buscando no esplendor da natureza, analogias de sentido, propiciadoras de epistemologia. Paulo Freire também falou sobre isso, chamou de ‘leitura de mundo’, uma curiosidade ingênua que, amadurecida, floresce em curiosidade epistemológica. Assim como eu, alguns de meus colegas fazem o mesmo. Digo alguns, porque o processo de leitura do mundo depende dos hábitos, como disse, certa vez, Pierre Bourdieu. Nossas escolhas, costumes e formas de encarar a vida, assim como a interação nos grupos sociais aos quais pertencem as pessoas que conhecemos, as trocas que tivemos, os livros que lemos, as esperanças que nos alimentam, os fracassos que nos reanimaram, os amores e os desamores que tivemos, enfim, as nossas experiências e tomadas de decisões nos constituem como indivíduos no mundo. Por isso, não faço juízo de valor, pois as escolhas metodológicas que realizamos em nossa práxis profissional dependem de diversos fatores e categorias. ‘Cada um na sua’, diria o ditado popular.
Quando a paralisação se fez necessária a partir do meu habitus, da minha trajetória, do olhar pelo simples que se transforma em instrumento de reflexão da realidade e da construção dela, senti a necessidade de dar uma resposta a isso, formatando-a como algo novo, a fim de colaborar com a dor e as dúvidas dos meus clientes em potencial: meus alunos, as personas que agora, fisicamente, não poderia ter comigo.
No dia 16 de março, tomei uma decisão: daria aulas remotas, usando o meio dos nativos digitais da juventude conectada. Daria, em cada tempo de aula, nos mesmos dias e horários, em formato de live (instrumento de transmissão ao vivo), 1 hora de aula para cada turma. Assim começa essa história.
Estrutura do relato
Quero deixar clara a estrutura que seguirei para que vocês viajem comigo na leitura. Escrevo como Machado, acreditando na estética da recepção, na teoria do efeito do eu implícito do leitor. Sei do seu poder como leitor e não quero retirá-lo. Preciso que você construa novas reflexões, me contradizendo ou até me questionando. Isso é Ciência, para mim. Ciência em interação, baseada na divulgação e no entusiasmo da troca, da chamada aprendizagem colaborativa.
A aprendizagem colaborativa será a referência teórica que virá a seguir, uma proposta que chamo para me ajudar a pensar, cruzar categorias, me fazer compreender os fenômenos. Os olhares alheios nos fazem enxergar o que está nublado, desanuviar nossas paixões, um amor equilibrado e ponderado pela busca da análise com o aval da teoria.
Após as fundamentações necessárias, abordarei algumas constituições técnicas, abrindo o campo de relato: o surgimento do problema e as categorias que esclarecem o problema. Em seguida, relatarei a tomada de decisão e o percurso interativo, por meio das lives no Facebook e do processo que denominei de ‘aprendizagem colaborativa in progress’, uma junção humorada de conceitos vindos das áreas que me compõe: a Educação, a Ciência e a Arte.
Após o relato, apontarei a utilização da metodologia da pesquisa-ação do Thiollent, sob a qual buscarei, nas ações construídas por meio das lives, categorias de análise do processo da práxis entre educando/professor, nos caminhos da chamada aprendizagem colaborativa, algo que continua em progresso como caminho contínuo de implementação de ação, avaliação e novas formas de interação, numa abordagem da aprendizagem interativa, solidária, dinâmica como o fluxo da Ciência, da sociedade, enfim, das culturas humanas. Progresso humilde e necessário diante da inevitável imprevisibilidade do devir.
Após a descrição metodológica, cruzo categorias escolhidas por meio dos discursos em comentários, depoimentos que se formataram e apresentaram inscritas nas redes (formas variadas que vão desde a utilização das aulas e seus registros até outras plataformas, registradas no stories dos alunos e no Instagram). Ao todo, mais de 100 prints de páginas servem de reflexão, além de documentos como mídia espontânea recolhidos do site de O Globo.
Os caminhos percorridos, as hipóteses geradas ou os novos caminhos serão refletidos à luz dos meus parceiros teóricos que compõem a minha análise.
Comunicação, redes e conhecimento
Não é surpresa para ninguém que as tecnologias melhoram e modificam a vida das pessoas. Podem ser usadas em malefício ou em benefício humano, por isso o mundo muda e as pessoas mudam.
O sociólogo canadense Marshall McLuhan disse certa vez que o meio é a mensagem e que a televisão ia transformar a humanidade (o mundo) em uma aldeia global. McLuhan, profeta da teoria da comunicação, previu o assombroso, mas talvez sequer imaginasse o que estava por vir. A internet multiplicou esse alcance. O celular, ligado ao wifi, tornou-se a extensão do sujeito que não consegue mais viver sem ele, diriam alguns. A Neurociência, entre outras áreas, vem buscando conhecer esse fenômeno e as possíveis implicações biológicas, emocionais, psicológicas e neurológicas de sua utilização desenfreada. O sociólogo Z. Bauman se debruçou sobre a sociedade atual, indo em direção à sua liquidez. Modernidade líquida, diz ele, em uma economia mundial flutuante, com diferenças brutais sociais, escancaradas, aceitas e enraizadas em um crescente progresso tecnológico.
Ulrich Beck (2010) falou de uma sociedade que produz riquezas e desigualdades, da mesma forma como produz o risco ao ambiente, à saúde pública, aos mercados, às bolsas de ações, aos confrontos na política e nas erupções endemias da violência ou das pandemias:
Na Modernidade Tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos (Beck, 2010).
Na sociedade dos riscos, já não só o risco, mas a realidade duríssima deve ser vencida (por tudo e todos, ricos e pobres, letrados e iletrados, brasileiros ou não), pois estamos presos a pensamentos desviantes, problemas médicos e psicológicos e psicopatias. Ninguém quer morrer, todos queremos viver. Nossas vidas dependem da consciência do outro: isolamento social é a única medida plausível para a contenção e a diminuição da curva endêmica. Precisamos nos isolar até que nossos hospitais, nossos enfermeiros, médicos, auxiliares, estejam providos de leitos, equipamentos e condições mínimas de atuação. Isso é dito pela Ciência. Eu, como cientista, confio na Ciência. Ela já me provou, muitas vezes, que funciona. Junto com algo que chamo de fé e energia positiva, creio em algo além, como dizia Shakespeare.
“Quem pode, permaneça em casa, por favor”, eles disseram. Sabemos que isso assola a economia e muita gente pode ficar sem pagar contas, sem comprar comida. Mas existe a impossibilidade democrática nas políticas públicas, antes a vida que a economia, pois sem vida não há economia e para manter a vida, qualquer estado, mesmo que seja mínimo, sabe ou deveria saber que precisa agir. A pasta prioritária é a saúde e todos nós, cidadãos, devemos fazer o possível dentro de nossa atuação social.
Em sua maioria, meus alunos são jovens. Eles trabalham e estudam nos horários mais impróprios e muitos não têm computador em casa, só o celular, onde acessam o ambiente virtual de aprendizagem institucional (AVA). Quanto ao Wifi, alguns possuem, mas outros optam pelo plano de dados móveis, que, dependendo se for ou não pré-pago, traz algumas peculiaridades (algumas operadoras oferecem WhatsApp e Facebook ilimitados).
Como afirma Luiz Carlos Affonso, em seu artigo Comunidades de Práticas na internet: casos de sucesso em compartilhamento de informações e produção de conhecimento, existe já um consenso a respeito do desenvolvimento e da democratização da internet. Desde 1995, as redes sociais online fazem parte do cotidiano de um número significativo de pessoas conectadas ao ciberespaço. É um fenômeno até recente, mas que rapidamente se expandiu pelo mundo, tecendo saberes, hábitos e costumes, instaurando práticas e destacando a alteridade.
No Brasil, de cerca de 220 milhões de habitantes, 205 milhões estão conectados aos aparelhos celulares, e a internet tem uma penetração em 105 milhões de celulares, assim como as redes sociais em 140 milhões. Para a utilização das plataformas, analisei os dados de 2019 e percebi que entre as plataformas e redes mais acessadas no Brasil estão, em 1° lugar o YouTube, em 2° o Facebook e em 3° o Instagram (dados do relatório de 2019).
O Facebook, assim como o Instagram e o YouTube, podem fazer as transmissões ao vivo e as chamadas lives. A febre das lives começou há alguns anos e se acentuou com as práticas do marketing digital e com o isolamento. Segundo os entendidos, elas começaram no Periscope do Twitter, até que se disseminaram pelo YouTube, o Facebook e o Instagram (nos stories de 24h).
Como sou usuária dessas redes, cruzei as informações relacionadas à facilidade e a forma intuitiva de usá-las – embora nunca tenha feito uma live em quaisquer das plataformas. O fato de saber alguns dados que construíram as minhas personas, especialmente em se tratando de planos das operadoras de celulares, observei alguns fatores que justificaram minha escolha, entre elas o conhecimento da maior parte da situação dos meus alunos: alguns entraram no primeiro período dias antes da quarentena, mas outros nem aula assistiram, presencialmente. Só tiveram as lives. Os planos de celulares e a gratuidade de dados no WhatsApp e Facebook, a possibilidade de o vídeo ficar gravado na linha do tempo da rede, facilita o aluno que não pode ou não quer assistir na hora. Da mesma maneira, tornar pública a live e me comunicar além do AVA seria mais fácil, dada a quantidade de alunos que já tenho na minha rede, seria mais fácil publicizar o feito.
O que sabia intuitivamente por "arte como experiência", parafraseando John Dewey, pude constatar com os saberes dos entendidos, blogueiros, programadores, youtubers e outros sites na internet. Algumas características tornavam a live do Facebook bastante promissora ao objetivo emergencial. Como devia falar com minhas personas? Assim, pensei em colocar em prática a linguagem youtuber e os mecanismos de engajamento com os educandos.
Uma pergunta que estamos sempre estabelecendo em aula é a seguinte: por que as videoaulas são cansativas, pouco sedutoras e insinuantes? Elas não engajam o aluno, pois estão longe da consonância com todas as indicações das formas com que a plasticidade do nosso cérebro trabalha ou com nossas questões cognitivas, nossa sensibilidade estética e atenção.
Em aulas longas, sem interação, com fundos escuros (para priorizar a palavra, que dura em uma mesma entonação e um ritmo confuso se não tiver o teleprompter), não entram ilustrações, pois acontecem como um teatro mal executado, filmado. Ao contrário, a linguagem do vídeo se estabelece na dimensão da potencialidade magnética visual. O audiovisual conecta nosso cérebro de uma forma especial, por meio das cores, dos sons, dos ritmos diversos postos em situação, incluindo o apresentador. Se esses elementos forem direcionados de forma atrativa e de acordo com as demandas das personas, conseguimos engajar o nosso público. Em geral, a coisa é feita de forma diferente, primeiro pensa-se em passar o conteúdo em um vídeo para depois colocá-lo em uma plataforma para o espectador aluno que irá absorver aquele conteúdo. A aula intermediada pelo meio tecnológico não deixou de ser tradicional, em um sentido conteudista, apenas usou uma tecnologia digital. A metodologia continua a mesma.
A razão dos youtubers encontrarem ressonância em nossos jovens e crianças, de um Felipe Netto e um Lucas Netto serem as xuxas de uma geração, não decorre de sorte, mas de um olhar muito apurado das redes e dos usuários. Os youtubers notaram, na práxis que hoje, que as pessoas querem respostas rápidas, ou seja, querem aplicabilidade. A forma de dizer também é construída de uma maneira especial, de acordo com a persona e o conteúdo, pois forma e conteúdo são indissociáveis.
Usuários, por experiência, entenderam que não se absorve um conteúdo em quase uma hora somente pela linguagem cinematográfica, pois ela cansa quem vê e perde-se o mistério, o glamour e a praticidade. Se não mexe com seus sentidos e as suas emoções, o interesse acaba rapidamente. Você pula dos três minutos iniciais, para mais dois minutos do meio e depois os dois últimos, perfazendo mais três minutos, em uma soma total, o ser humano fica ali, no máximo absorvendo por oito minutos.
Algumas teorias ligadas ao videomarketing e ao cérebro demonstram isso, por isso os youtubers procuram estética, formas novas de dizer e uma apresentação performática, conduzindo seus clientes a uma falsa intimidade.
Vejo muitos professores reclamando dos blogueiros virtuais, youtubers e da “galera” do marketing, por não terem conteúdo profundo. Eu vou na contramão disso. Admiro a forma como essa nova classe profissional entendeu a rede e se apropriou do conhecimento para aplicá-lo na prática, criando-o do seu jeito e a partir das suas demandas. Assim, se não podemos vencê-los, juntemo-nos a eles. Sendo assim, resolvi utilizar o que aprendi por meio da minha observação.
Minha primeira live foi de Arte, Cultura e Educação. No Canva, fiz posts chamando para a live e indicando os horários. Além dos alunos, todos poderiam entrar, pois deixei o meu perfil público, afinal, a educação é democrática e a experiência é positiva. Na primeira live, tive cerca de 740 visualizações, 269 curtidas, 104 comments (o que me leva à impulsão algorítmica). As visualizações não pararam e nem os comentários. Lógico que após duas semanas, as visualizações e as curtidas diminuem, porque a prática foi incorporada nas rotinas dos usuários. Escolhi, desde a primeira live, o cenário limpo, sem muitos elementos, num cantinho da minha sala que também é o escritório e a cozinha (uma espécie de estúdio). Resolvi ficar longe dos livros na primeira semana. Na segunda, fiz a live perto deles, mas confesso que não gostei, pois havia muitos elementos e, esteticamente, eles gritavam e concorriam entre si. Voltei para o lugar anterior na terceira semana e mantive meu jeito artístico (às vezes, me valho de palavrões em sala, confesso que nem falo muito no dia a dia, mas faço o uso teatralmente, em sala de aula, pois gera efeito). Da mesma maneira, pareceu surtir efeito ao vivo, “o melhor dessa aula é que é regida pela norma culta". Lendo assim, parece uma crítica negativa, mas no espaço das redes, em uma educação colaborativa, é ao contrário. Ponto para o engajamento, categoria de análise que será apresentada no próximo tópico.
Como roteiro adotei o "parece que não tenho roteiro, é uma aula e estamos discorrendo sobre um assunto", uma prática muito usada por uma das maiores youtubers do Brasil, a JoutJout, em quem me inspirei. Quando analisamos a sua linguagem, observamos essa construção de “falo de forma reflexiva, como se estivéssemos batendo um papo". Às vezes, o fluxo narrativo e a concatenação das ideias nos vídeos da JoutJout se perdem, mas é proposital. Lembrando que ela grava o vídeo e coloca no YouTube, sem o dado do ‘ao vivo’, proposto pela live. Mas em certo sentido ela quer dar essa impressão ao espectador, que se trata de uma reflexão em fluxo que não foi engendrada, saiu de uma forma espontânea e filosófica. Para isso, ela usa elementos como a não utilização de maquiagem, roupas confortáveis e cenários de casa, mesa, sofá ou o que der. O importante é a construção de uma interação em intimidade. Ela faz sem ser ao vivo em uma estética ‘ao vivo’. Assim, consegue o engajamento das suas personas. Eu resolvi construir esse roteiro, optando pela realidade e pelos perigos do ‘ao vivo’.
Materiais e métodos
Para refletir a respeito da minha experiência em lives, escolho a aplicabilidade da pesquisa qualitativa, em uma pesquisa-ação. A pesquisa-ação, metodologia proposta por Thiollent, trabalha uma ação planejada de caráter social, técnico e educacional, que nem sempre se encontra na metodologia que tem com ela uma semelhança. A pesquisa-ação advém da práxis e da tomada de decisão do pesquisador que age no problema. A reflexão dos dados vai ao encontro não só das categorias para o entendimento do problema, mas também apresenta a ação implementada pelo pesquisador:
Um dos principais objetivos dessas ações consiste em dar aos pesquisadores e grupos de participantes os meios de se tornar capaz de responder com maior eficiência aos problemas da situação em que vivem, em particular sob forma de diretrizes de ação transformador. Trata-se de facilitar uma busca de soluções para problemas reais para os quais os procedimentos incluídos têm pouco contribuído. Considerar a urgência de tais problemas (Thiollent, 1986).
Desenvolvi meu relato usando a pesquisa-ação descritiva, já que trabalho com o problema da adequação do ensino remoto para o estudante presencial em instituição de ensino privada, por ocasião de um afastamento obrigatório. Seguindo a metodologia, não me basearei na comprovação de uma hipótese, em um viés positivista, mas adequado aos métodos quantitativos chamados de raciocínio hipotético leve, que estabelece uma linha de raciocínio e organização ao pesquisador, sem a pressão da busca por certezas finais, mas garantindo um aprendizado e transformações durante o processo. Este relato de experiência esclarece que:
- O objeto de estudo e seu corpus diz respeito à utilização das transmissões ao vivo como instrumento de engajamento do aluno presencial ao ensino remoto, ressaltando a prática da aprendizagem colaborativa. O procedimento foi adotado desde que o problema se apresentou, em 14 de março de 2020. Sendo a primeira live realizada no primeiro dia de aula presencial após a parada. O material ficou registrado em vídeo com os comentários na timeline (linha do tempo) da plataforma Facebook, o que permite levantar visualizações, curtidas, comentários e postagens em que fui marcada, mesmo em outras redes como o Instagram.
- Os comentários e outras formas de interação serviram de material para a comprovação e a indicação de formas de ação educativa, baseada em uma aprendizagem colaborativa em progresso.
- As reflexões se deram a partir das lives de três semanas, perfazendo um total de 44 lives (utilizarei, como dados, somente os produzidos até então).
- As inovações nas lives, plataformas adicionais e mecanismos de divulgação, também serão citadas no relato em prol da reflexão sobre a aprendizagem colaborativa em redes sociais.
- Assim como raciocínio hipotético leve, eu suponho que a implementação das lives impulsionam o aluno a um engajamento na aprendizagem colaborativa e os estimulam a um sentimento de amparo na ausência física do professor. O ambiente online vai ao encontro das necessidades de presença física do educando que escolhe o regime presencial e, com as devidas exceções de dificuldades de acesso às redes, possibilita uma interação e uma colaboração no aprendizado num vislumbrar horizontal e frutífero da relação entre o professor e o aluno.
- Variáveis estudadas: engajamento e seus elementos, persona do aluno presencial, linguagem escolhida para as lives, plataforma Facebook e seu sistema de comments, interação nas redes, cultura educacional, aprendizagem colaborativa, desfragmentação de saberes.
- Variáveis independentes: inovação nas lives, adaptação de roteiros, o gap de entrada de visualizações, a ligação com postagem de conteúdos,
- Questão que norteia o problema: as lives proporcionam o engajamento dos alunos sendo uma resposta positiva para a ausência de aulas presenciais? Seria o dado ao vivo da linguagem e a promoção da interatividade através dos comentários, fatores que proporcionam o engajamento, em direção a uma aprendizagem colaborativa?
Resultados e discussões
Quando decidi fazer as lives, tinha uma questão em mente: como engajar o meu aluno presencial? A cultura educacional da academia, baseada ainda em um sistema conteudista, arraigado corporalmente ao aluno, por meio de um poder disciplinar, se faz sentir por perguntas como: “Vale nota?”, “Quantas linhas para escrever?”, “Colocou o slide lá, professor?”, “Será que fiz certo?”, “Ué, não era um fichamento?”, “O que é uma analogia, professora?”, “Eu tenho que escrever como eu penso, com minhas palavras?”, “Me disseram certa vez: quem eu sou pra achar alguma coisa?”, “Professora, aprendi que isso não é científico, escrever em primeira pessoa do singular”.
A Educação conteudista, em sentido totalitário (como explica Herbert Read), proporciona aos alunos os mesmos conteúdos para que, tendo as mesmas experiências e saberes, todos possam construir uma aprendizagem em direção ao progresso e ao desenvolvimento social. Esse modelo, baseado em práticas educativas ligadas a uma concepção de Ciência cartesiana e sem a dimensão integradora dos saberes, promove, uma hierarquização que afasta o educando do conhecimento. Afasta o professor do aluno, tornando a teoria longe da práxis cotidiana e da urgência de aplicabilidade e do mundo que mudou as novas tecnologias que invadiram o nosso dia a dia. O acadêmico no Olimpo e os pobres mortais na terra, sem nada a contribuir, sem nada a construir.
Isso definitivamente não é o que aprendi nem a forma como me coloco como educadora no mundo. Conforme a minha percepção, a Educação ocorre no viés democrático, freiriano de pensar a ‘leitura do mundo’ e a curiosidade epistemológica. Assim, a aprendizagem ocorre em mão dupla, chegando um momento em que não sabemos se ensinamos ou se aprendemos. Esse é o paradoxo do professor. Estou junto daqueles que se compreendem aprendendo a cada dia. Não há processo de ensino sem aprendizagem. A ação implementada das lives e seu caráter performático traz essa visão do mundo da educação. Para uma aula em live, aberta em rede social, abri meu status de privacidade ao público, colocando-me disposta às críticas. Ver e rever que nada sei, me posicionar humildemente reconhecendo a necessidade de ajuda para me manter ativa em aula, com pelo menos um visitante acompanhando a live durante uma hora. O professor deve quebrar a cultura da ciência longe do grande público, a fim de sentir-se livre para ser ele mesmo, criando para o outro e sendo um sedutor do conhecimento. Como dizia Cazuza, "ser artista no nosso convívio sob o inferno e o céu de todo dia".
A educação é um jogo dinâmico que se perfaz em ação, em conjunto e em progresso. Entramos com a aprendizagem colaborativa, a categoria do engajamento e os comments do Facebook. Vamos aos nossos dados e reflexões:
Dados de engajamento e o efeito de exposição - Dados numéricos até o dia 05/04/20 (domingo). Foi um total de 44 lives (umas aumentaram, pois a internet caiu). Das 44 foram 7.446 visualizações até às 18h13 min, 1.709 comentários, 1.959 likes (curtidas) e 50 compartilhamentos.
Novidade para engajamento - Para redimensionar e aumentar em números o engajamento com a variável novidade procurei uma plataforma para conversar com o Facebook, já que ela só faz live direta com até uma pessoa.
De fato, como sugere a Neurociência aplicada ao marketing, a novidade e a complexidade podem aumentar o engajamento. Segundo Bridger, tornar as imagens mais simples, nem sempre é o fator que influencia no quanto são apreciadas. As evidências mostradas nas experiências apresentam que imagens complexas e novas também podem ser apreciadas. Agora, como entender que imagens familiares são mais apreciadas que imagens novas ou novidades? A novidade envolve muitos sentimentos prazerosos: promoções de novas soluções aos problemas, quebra de monotonia, novas brincadeiras que não conhecemos (memes ou o humor subjacente, quebrando a pretensa seriedade) e a curiosidade (Bridge, 2019).
Percebo que uma inovação da live, compartilhada com outro especialista ou com alguém da área de atuação e do mercado na aula "convencional em live", pode promover essa curiosidade.
Linguagem escolhida para as lives - As lives já possuem uma linguagem subjacente. É o ato do "quem sabe faz ao vivo", da demonstração da vida cotidiana. Ela é simples em sua resposta, não exige muito aparato técnico (aparelhos, câmeras, microfones potentes), pois basta um celular e uma rede Wifi. O mais interessante na live é a sua simplicidade ou pretensa simplicidade. Na prática, isso é ilusão, devido à reconfiguração da live, pensada para transmissões rápidas. Nesse momento disruptivo da nossa história, tem sido feita longamente, em shows virtuais, debates, formas de comunicação e continuidade. No Instagram são 40 minutos só, mas no Facebook não. Mais um motivo da minha escolha.
Resolvi agir como em sala de aula, com linguagem coloquial, mas um pouco colocada e de certo modo ritmada à maneira dos youtubers. Às vezes usando interjeições e, teatralmente, solto um palavrão. Eles colocam risos nos comentários. É proposital, como vimos, o humor faz uma quebra de monotonia e se usado em um espaço para conceitos "epistemológicos" gera uma novidade e uma conectividade.
Os youtubers fazem isso, descortinam algo que parece muito difícil e a gente processa com mais facilidade, a gente se conecta por entender, processar, o complexo de uma maneira leve e o cômico com energia. Como afirma o neuromarketing, outra maneira das imagens serem apreciadas é a reversão de expectativas negativas. O que é isso? Se alguma coisa eu acho difícil de compreender, apresento de uma maneira fácil (Bridger, 2019), por casos, analogias ou brincadeiras, assim, passo a apreciá-la pela surpresa positiva, pela reversão da expectativa negativa.
Para que eles se lembrassem das plantas arquitetônicas de um templo grego, montei com meu tablet e o vidrinho de álcool gel, o templo da Deusa Athena. Eles riram nos comentários e eu também, ao vivo. Aliás, o que faço em sala, resolvi fazer na live: rio, choro, me emociono, canto, falo poemas, xingo o mundo e a falta de generosidade do ser humano, assim como peço desculpas e perdoo.
Pierre Levy apresenta o processo da cognição em um plano fisiológico. A aprendizagem para ele é o processo que transforma informação em conhecimento. Segundo o autor, as pessoas recebem as informações por meio dos sentidos (visão, tato, olfato, audição e paladar), pelos meios de comunicação de massa e outros meios diversos das emoções e das sensações. O cérebro vai processando essas informações e transformando em conhecimento. Por isso, quanto maior a troca de informações maior será a possibilidade de a curiosidade ingênua ser processada em conhecimento (Levy, 2007).
Aprendizagem colaborativa e os dados nos comentários (interação dos comments) - Não houve nenhum comentário negativo, pejorativo ou depreciativo. Em geral, posso dividi-los nas seguintes categorias:
- Elogios, feedback e interação
- Comments de aprendizagem colaborativa
Chamo essa rede, tecida nos comentários, de iscas de aprendizagem colaborativa. Eles dinamizam uma interação e um engajamento, não só comigo, mas com os outros alunos, colegas de faculdade ou outros profissionais, espectadores de várias aulas que entram e acabam ficando para as lives.
Uma situação muito peculiar às lives é que precisamos estar atentos, lendo os comentários e "falando" com os espectadores. Isso promove uma relação de presença virtual, proporcionada pelo “ao vivo”. Abre-se, assim, uma relação entre todos os que estão tendo aquela experiência no ato, voltada para o conhecimento.
Anderson Cruz nos explica sobre a inteligência coletiva, encarada como uma forma de auto-organização e ampliada pela conexão exponencial dos indivíduos no suporte da rede mundial de computadores. Como sistema emergente, a soma das contribuições de cada indivíduo forma o que ele chama de nova ecologia de pensamento, em que as conexões cerebrais, nos suportes das redes, podem gerar novas configurações (Cruz, 2012).
Conclusão
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, disse que ensinar exige respeitar os saberes dos educandos, dando-lhes voz e vez, buscando analogias em suas práticas cotidianas, a fim de estabelecer uma intimidade dos alunos com os currículos e a experiência social. Da mesma maneira, ensinar exige rigorosidade metódica, pesquisa, ética, estética, curiosidade, bom senso e a certeza do nosso inacabamento, afinal a educação é uma aventura em que o professor, como um aventureiro, se arrisca no encontro com o outro, com a Ciência e a Arte, vistas sob um mesmo prisma:
Aqui chegamos ao ponto de que devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento (Freire, 2000).
No momento de consciência total de nosso inacabamento, nos vemos inclinados a estabelecer algo novo, para transmudar à ausência em presença, estimular e engajar nossas personas. Um ditado diz que “mar calmo nunca fez bom marinheiro”, e eu acredito no saber popular.
Durante o confinamento, a busca pelo conhecimento pode ser um alento, uma companhia. As novas tecnologias digitais são hoje um instrumental poderoso de nosso tempo, podem promover encontros que jamais tirarão a potência de um olhar ao vivo, um toque, um sorriso ou um abraço, mas produzirão outras formas de conexão, agora urgentes e necessárias.
As lives no Facebook propiciaram não só uma solução paliativa para o ensino remoto, mas têm me oferecido, como docente, uma visão da potencialidade construtora, metódica e estética, numa interação em favor da democratização da ciência. Ver na prática o que é uma aprendizagem colaborativa estimula, atiça a criatividade, derruba preconceitos e qualquer vestígio do saber-poder. O mais motivador e encantador é saber que nunca nos sentiremos acabados, pois a aprendizagem colaborativa está em constante processo de renovação, configuração e reconfiguração.
O engajamento e a prática do “ao vivo” requerem uma consciência da necessidade de implementação das novidades, do reforço da familiaridade, da composição de uma linguagem estruturada para um objetivo de interação, baseado no conhecimento da persona. Devemos conhecer nosso aluno. Atualmente, não usamos mais na publicidade e no marketing o termo público-alvo, porque conduz a uma generalização completamente infundada diante da nossa sociedade líquida, de riscos, da informação e do espetáculo. O conhecimento da persona, para ações ligadas ao marketing digital, diz respeito à pesquisa de comportamentos, ao olhar atento aos interesses do sujeito, de suas necessidades, de tipos de vida e de demandas. Assim, você pode chegar melhor no aluno, falando a sua língua e mostrando os seus pontos fortes. Quão interessante será essa conexão!
O campo da educação tem muito a aprender não só com a Neurociência, mas com o neuromarketing e a neuroestética. Assim como tem muito a aprender com os youtubers e com a forma como estabelecem conexões, estimulando a curiosidade e o engajamento. Admitir isso é um exercício de desconstrução da visão hierárquica sobre as relações e sobre o entendimento do "domínio do campo". Ao educador é necessário um exercício de humildade, na certeza de ser um ser inacabado. Esse inacabamento profícuo nos faz dar um passo à frente. Aliás, a concepção e o termo in progress, peguei emprestado do conceito de work in progress, muito usado nos negócios e no teatro: eis a aprendizagem colaborativa.
Referências
AFFONSO, L. C. Comunidades de práticas na internet: um estudo de duas comunidades hospedadas em portais públicos brasileiros. 2012. 128f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Master’sthesis, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: http://ridi.ibict.br/handle/123456789/770.
BECK, U. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010.
BRIDGER. Neuromarketing. São Paulo: Grupo Autêntica, 2019.
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Publicado em 29 de agosto de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
CONRADO, Luciane Medeiros de Souza; COSTA, Renato dos Santos da. Aprendizagem colaborativa in progress: a utilização das lives pelo professor em tempos de covid-19. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 33, 29 de agosto de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/33/aprendizagem-colaborativa-in-progress-a-utilizacao-das-lives-pelo-professor-em-tempos-de-covid-19
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