Reflexão sobre o vazio intelectual na sociedade brasileira provocado pelo sistema de ensino
Frederico Rochaferreira
Membro da Oxford Philosophical Society
O Brasil possui um dos melhores ecossistemas do mundo, isento de catástrofes naturais, e está no topo do ranking mundial em biodiversidade; no entanto, por sua limitação científica, o país vive à margem dos mais importantes campos de pesquisas, fato presente na percepção da população de acordo com dados apresentados pela Pew Research Center (Funk et al., 2020) que mostram apenas 8% da população confiante nas realizações científicas do país a nível mundial, enquanto nos EUA e Reino Unido essa percepção é de 61%.
Similarmente, esse distanciamento científico e tecnológico se estende às demais áreas do conhecimento com consequências dramáticas de perda de competitividade em relação a outras nações. O Ranking Bloomberg (Jamriskom, 2018) e o International Institute for Management Development (IMD, 2021), apontam o Brasil como uma das economias menos inovadoras dentre as 50 analisadas e na última posição no quesito educação entre 63 nações avaliadas, realidade expressa também nos resultados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2021), que mantém o Brasil nas últimas colocações desde a sua primeira participação no ano de 2000 (Inep, 2020).
O pano de fundo dessa inércia científica não é somente o baixo investimento em pesquisas realizado no país, como mostra o Relatório de Ciências Unesco (2021), onde o Brasil aparece com 888 pesquisadores por milhão de habitantes. Dentre esses pesquisadores, muitos optam por deixar o país para aprimoramento e trabalho, enquanto a Coreia do Sul aparece com 7.980, a Nova Zelândia com 5.578, e a Alemanha com 5.212 pesquisadores por milhão de habitantes (Schneegans et al., 2021). Desse modo, entendemos que a questão é literalmente mais básica, pois encontra-se nos alicerces da educação.
O histórico do nosso sistema educativo sempre foi ruim. O Brasil, a rigor, foi o último país do continente americano a ter uma universidade. Somente em 1934 foi criada a Universidade de São Paulo (Vassalo, 2017), embasada nos objetivos de ensino, pesquisa e extensão, e com boa parte do seu corpo docente vindo da Europa e dos EUA. Nomes como Claude Lévi-Strauss, Gleb Wataghin, Felix Rawitscher, Heinrich Rheinboldt, Giacomo Albanese, Pierre Monbeig, Fernand Braudel, entre outros, contribuíram para o desenvolvimento das Ciências em todo o mundo, mas não conseguiram mudar o hábito de ensino no país.
Vazio intelectual
Quase uma década antes da criação da Universidade de São Paulo, Albert Einstein esteve no Rio de Janeiro para algumas palestras. Naquela oportunidade, ele constatou e registrou o fenômeno do vazio intelectual entre os brasileiros. Em uma breve carta ao amigo Michele Besso, Einstein escreveu: "em 1 de junho voltei da América do Sul. Foi uma grande agitação sem interesse verdadeiro. [...] Na realidade, as pessoas de lá são desprovidas de preconceitos, mas [...] vazias e pouco interessantes" (Santos, 2000). Sobre as palestras proferidas no Rio de Janeiro, escreveu Einstein: "O público era composto por militares e diplomatas com as esposas e filhos [...]. O sentido científico era pouco [...]. Eu, para eles, sou um tipo de elefante branco; eles, para mim, são uns tolos" (Marcolin, 2009).
A incompreensão da plateia às palavras e explicações do físico foi registrada por Licínio Cardoso (hoje, nome de escolas e ruas). À época, era professor do Clube de Engenharia e da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Logo após Einstein deixar o Brasil, o professor Licínio Cardoso publicou, em um jornal de grande circulação, um artigo contestando o pequeno livro A Teoria da Relatividade Restrita e Geral, onde Einstein explica de forma simples a "Teoria da Relatividade" sob uma perspectiva geral, científica e filosófica, sem os aparatos matemáticos da Física teórica, com a intenção de que a leitura de seu livro servisse como instrumento de estímulo aos leitores comuns.
Em seu artigo, Licínio Cardoso escreveu:
A cada página da obra, eu encontrava proposições análogas, umas confundindo o objetivo com o subjetivo, outras afirmando coisas de impossível realização, outras estabelecendo conceitos elementaríssimos e velhos como se fossem novos [...] demonstrei que o professor Einstein, confundindo os pontos de vista abstrato e concreto, toma por objetivo o que é subjetivo e vice-versa e não distingue entre ciência abstrata e relações particulares das existências concretas (Santos, 2000).
Na década de 1950, o Brasil recebeu o americano Richard Feynman, pioneiro da eletrodinâmica e da computação quântica, que ganhou o Prêmio Nobel de Física de 1965. Feynman chegou ao Brasil como professor visitante para lecionar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no Rio de Janeiro, ministrando aulas também na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele se surpreendeu negativamente com o sistema de ensino brasileiro. Em suas aulas para formação de professores de Ciência, Feynman descobriu um fenômeno muito estranho: ele podia fazer uma pergunta e os alunos respondiam imediatamente, mas se ele repetisse a mesma pergunta sobre o mesmo assunto por um ângulo diferente, eles simplesmente não conseguiam responder. Esse fenômeno era consequência da aprendizagem realizada por meio da memorização (como atualmente) e não por meio do raciocínio lógico, memorização que também estava presente nos livros didáticos. Ao fim do ano acadêmico, Feynman deu uma palestra sobre suas experiências com o ensino no Brasil em que estavam presentes estudantes, professores de diversas disciplinas, autores de livros didáticos e representantes do governo, argumentando que país algum pode considerar-se civilizado a menos que domine a Ciência, alertando aos estudantes, professores e autoridades do governo presentes no auditório que não se estava ensinando Ciência alguma no Brasil (Rochaferreira, 2015).
Inúmeras foram as reformas (Verri, 2018) pensadas e implementadas na área da Educação em diferentes governos, mas nenhuma atacou diretamente a principal causa do fracasso educacional, ou seja, nenhuma ousou substituir o método didático que incentiva o aluno a memorizar textos e fórmulas por tentativas de fazê-lo compreender as questões. Assim, forma-se um círculo vicioso e nocivo que se retroalimenta em todos os ciclos da formação, com consequências desastrosas para o pensamento lógico. Em 2018, por exemplo, o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (Machado, 2018) realizou diversos encontros com gestores públicos e professores da própria universidade para pensar a crise educacional junto a ações capazes de transformar a educação brasileira e distinguir desafios reais de dificuldades aparentes. Os encontros resultaram em um relatório com considerações evasivas e abstratas:
o problema real a ser enfrentado, no caso, é a inexistência de projetos bem fundamentados, com objetivos bem definidos, nos diversos níveis de ensino e irracionais em um país com tantas carências como o nosso, a expectativa de plena suficiência de recursos em áreas como saúde e educação não parece razoável.
Ora, em um país com tantas carências, a plena suficiência de recursos em Saúde e Educação não só deve ser razoável como imprescindível para a gestação de um ensino de qualidade.
Abordagem didática
O método pueril de ensinar em que o professor não ensina o aluno a pensar, mas apenas a memorizar textos e fórmulas para passar nas provas, continua sendo regra nas escolas e nas universidades brasileiras, como é possível constatar no preâmbulo de uma aula ministrada pelo professor Roberto Machado da UFRJ, em 2015, quando ele fala aos alunos sobre a importância de tirar boas notas nas provas:
"É bom que vocês façam boas provas, pelo menos para não me dar dissabor. Eu passei quase uma semana corrigindo provas porque eu tive muitos alunos e me deu um trabalho muito grande e se as provas são ruins, não é só um trabalho grande, mas um trabalho chato, porque a alegria do professor é ver que o aluno vai ter uma boa nota." Prossegue Machado: "Prova é uma coisa muito fácil comigo, porque eu não peço nada demais, eu peço a coisa mais óbvia, mais simples, mais fácil, só a ideia mais geral do curso daquele semestre, então eu acho que a fórmula para fazer uma boa prova, é vir às aulas e anotar as aulas e se não vier perguntar para as pessoas etc.". "Eu dou provas com duas questões, com direito a consulta, então não há motivo para a pessoa não fazer uma boa prova" (Orselli, 2015).
Fica explícita a preocupação e o objetivo do professor em facilitar ao máximo para que seus alunos tirem boas notas e passem de ano. As palavras de Machado merecem atenção não por ser o pensamento corrente e a prática aplicada nas escolas e universidades do país, mas por seu currículo. Roberto Machado, falecido em 2021, depois de concluir o curso de Filosofia na Universidade Católica de Pernambuco, fez Mestrado e Doutorado pela Universidade de Louvain sob a orientação do filósofo Jean Ladrière. Posteriormente, estagiou no Collège de France, sob a orientação de Michel Foucault, e realizou pesquisas de Pós-Doutorado na Universidade Paris VIII, com Gilles Deleuze, currículo que não foi capaz de modificar a técnica de ensinar embasada na memorização, uma herança colonial deixada pelos jesuítas (Freire, 2022) e que torna a atividade educativa simplesmente ineficiente. Quando o aluno é incentivado a assimilar ideias e a memorizar, está sendo tolhido de pensar e em grande medida será capaz apenas de regurgitar ideias alheias.
Ousar um ensino de qualidade significa mudar métodos e hábitos didáticos, transformando informações de conhecimento em conhecimento de fato, aplicando a experiência prática e a prática teórica em cada disciplina. A aprendizagem deve ser entendida como um fator experiencial. Assim, na classificação das Ciências, aquelas em que cabem experimentos práticos e que deverão complementar a teoria em todos os níveis, em todas as disciplinas. Do mesmo modo, a prática teórica deverá ser aplicada por meio da discussão, do diálogo, do interrogatório e da reflexão, fazendo do aluno um ser pensante e criador de ideias.
Quando falamos em valor do conhecimento estamos nos referindo a uma filosofia do ensino que é fazer pensar. Vejamos a Química, por exemplo: ela está diante de nossos olhos e a pergunta a ser feita é: por que ela é importante? O ensino dessa disciplina e de todas as outras requer essa pergunta como a primeira a ser feita em sala de aula. Ora, a Química é importante, porque tudo se origina dos elementos químicos e ela está presente desde a cozinha até o cosmos. Contudo, se o cosmos está longe de nós, voltemos ao cotidiano para investigar e compreender a importância e a necessidade da água potável, as mudanças climáticas, a energia de combustíveis fósseis, a energia solar para automóveis e casas, os fertilizantes químicos para a produção de alimentos, o valor nutricional dos alimentos, entre outros, que são exemplos de uma visão macroscópica da realidade atual, da interação natureza- homem-sociedade, que por sua vez são resultados de interações a nível atômico, de ligações químicas. Portanto, a esse nível, os exemplos em sala de aula devem ser acompanhados por práticas laboratoriais, pois esse é o conhecimento que tem valor. A união de ambos, teoria e prática, é a premissa fundamental que permite ao aluno ter além da experiência adquirida, consciência dessa experiência como parte indissolúvel de sua existência pessoal, social e profissional.
A abordagem voltada à compreensão e pautada na experiência prática, na prática teórica das disciplinas e no seu valor, encerra em si mesma a didática dos problemas (Nikolić, 2018) em que os elementos constitutivos do ensino são orientados para a resolução de problemas. Nesse caso, o problema é uma tarefa que contém um impedimento cognitivo entre o que o aluno sabe e o que ele precisa saber para a resolução, experiência que o estimula a desenvolver habilidades intelectuais por meio de mudanças conceituais (De Grave, 1996) com o adendo de que toda tarefa deve sempre ser balizada pela consciência moral.
Conclusão
A didática embasada no tripé conhecimento (não na informação do conhecimento), valor do conhecimento e valores humanos, não só possibilita a formação do homem em sua plenitude, mas a descoberta precoce de seus talentos, contributo valioso para a construção de uma sociedade culta, qualificada, mais justa e menos desigual. Todavia, essa abordagem traz resultados distintos independente dos recursos financeiros disponíveis e da vontade política à sua realização, porque o desenvolvimento cognitivo está intimamente ligado à cultura (Moore, 2011) e a aprendizagem estará sempre em conformidade com as diferentes culturas. Assim, em países pouco desenvolvidos, essa é uma tarefa intergeracional, posto que a escola é o reflexo da sociedade, absorvendo e retornando os elementos sociais, seja em sua limitação, seja em seu desenvolvimento.
Por fim, saliento que uma educação pobre, sem qualidade, além de não libertar o homem da ignorância e da submissão, corrobora para uma conscientização coletiva de vingança, que não raro manifesta-se em revoluções sociais autodestrutivas.
Referências
DE GRAVE, W. S.; BOSHUIZEN, H. P. A.; SCHMIDT, H. G. Problem-based learning: cognitive and metacognitive processes during problem analysis. Instructional Science, v. 24(5), p. 321-341, 1996.
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FUNK, C.; TYSON, A.; KENNEDY, B.; JOHNSON, C. Science and scientists held in high esteem across global publics. Pew Research Center, 2020. Disponível em: https://www.pewresearch.org/science/2020/09/29/science-and-scientists-held-in-high-esteem-across-global-publics/.
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MOORE, M. Vygotsky's cognitive development theory. In: GOLDSTEIN, S.; NAGLIERI, J. A. (ed.). Encyclopedia of child behavior and development. Springer. Boston. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-0-387-79061-9_3054.
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VERRI, Diego Dos Santos; LUFT, Hedi Maria. O percurso histórico das principais reformas educacionais no Brasil. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, 2018.
Publicado em 12 de setembro de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
ROCHAFERREIRA, Frederico. Reflexão sobre o vazio intelectual na sociedade brasileira provocado pelo sistema de ensino. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 35, 12 de setembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/35/reflexao-sobre-o-vazio-intelectual-na-sociedade-brasileira-provocado-pelo-sistema-de-ensino
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1 Comentário sobre este artigo
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