Entre o real e o aparente: sobre indisciplinas, comportamentos e idealizações

Francisco André Silva Martins

Professor de História da rede municipal de Belo Horizonte, professor adjunto da Faculdade de Educação/UEMG, doutor em Educação (UFMG), coordenador do Observatório das Juventudes da UEMG, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Educação de Jovens e Adultos (FAE/UEMG)

Para início de conversa

A profissão docente é marcada por uma particularidade importante: trata-se de uma profissão na qual a grande maioria das pessoas, em alguma medida, vai saber do que se trata, de quem atua e de como atua desde a mais tenra idade. Afinal, é a profissão na qual aqueles que a escolhem já tiveram nuances do seu fazer durante boa parte da vida ao frequentar a escola. Os mais apressados podem dizer que isso é bom, pois quem se torna professor já sabe um pouco do que fazer, do que não fazer – e isso não é de todo errado. Todavia, reforçamos que os professores são sujeitos socioculturais (Teixeira, 2006). Por isso, acreditamos piamente que o fato de ser uma profissão marcada por papeis idealizados de alguma forma possa turvar os olhares dos profissionais que forem fagocitados pela lógica do sistema, a ponto de chegar a promover naturalizações do que é social e historicamente construído no decorrer dos tempos.

O presente trabalho emerge de uma situação real, vivida no chão da escola, e de uma inquietação que, pela proporção do incômodo causado, acabou se materializando em forma de um relato de experiência como reflexão sobre a prática docente e a realidade escolar. Por isso o texto encontra-se escrito na primeira pessoa do singular como demarcador da condição subjetiva das experiências tratadas. Trata-se de uma situação cronologicamente situada, ocorrida no final do ano de 2022 em uma escola pública da rede municipal de Belo Horizonte/MG. A escola localiza-se na regional norte, tem mais de 50 anos de funcionamento ininterrupto e atende públicos que podem se considerar bastantes distintos no que tange às questões socioeconômicas. Com o objetivo focar apenas na potencialidade educativa do debate a ser estabelecido, o anonimato da instituição e das pessoas envolvidas será garantido por meio da utilização de nomes fictícios. Longe de querer prescrever receitas ou elaborar manuais do que seria a maneira certa de fazer em relação à educação, este trabalho condensa minhas reflexões e a retomada de reminiscências a partir de fato vivenciado na escola.

Minha trajetória, até me tornar professor de História, foi bem eclética: fui metalúrgico, técnico em segurança do trabalho e soldador; finalmente me licenciei em História, no horário noturno, em uma faculdade privada em Belo Horizonte. Os estudos foram concomitantes ao trabalho, até mesmo para ter condições de arcar com os custos do curso. Formei-me em 2003 e desde então passei a atuar como professor na área. Leciono a disciplina há aproximadamente 20 anos na Educação Básica, passando pelos Ensinos Fundamental e Médio e pela Educação de Jovens e Adultos.

Atualmente, além do trabalho na Educação Básica, sou professor no curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais. Em 2022, lecionei em turmas do 6° ao 9° ano. Durante minha trajetória docente pude perceber que parte considerável dos estudantes tinha certa rejeição à disciplina e várias foram as vezes que escutei a célebre frase: “Por que estudar algo que já passou? Para que estudar coisas de uma época em que eu nem era nascido?”. Com base nessas experiências, tentei gradativamente dar maior significado à disciplina e com isso passei a usar materiais que tornassem o processo mais significativo. Minha aula é marcada pelo uso de filmes, charges, fotos, fontes históricas variadas que possam reforçar o significado da disciplina e do conteúdo trabalhado. Creio que isso possa incidir no gosto dos estudantes pela matéria e facilitar a aprendizagem.

Por se tratar de uma disciplina que lida com o passado, com aspectos da memória coletiva e de símbolos e figuras antigas, ela quase obrigatoriamente cobra do professor explicações em aulas expositivas, uso recorrente do quadro, exercícios, fichamentos e leituras. Diante disso, tenho como prática avaliar com um montante considerável de pontos os cadernos dos estudantes, pois é algo muito simples: quem tiver o caderno completo, vai conseguir se sair bem na prova e, consequentemente, na matéria. Mas destaco que a prova como elemento avaliativo por si só não prova nada. Todavia, como professor, sou tido como chato em momentos específicos. Quando vou explicar matéria, todos sabem que é um momento importante e quem quiser pode perguntar a qualquer momento. A lógica é tentar promover debates, divergências de opinião, explicitar pontos de vista diferentes, e isso ocorre para que as coisas sejam, de fato, apropriadas. O momento da explicação é o momento da explicação. Em 2022, após explicar a crise de 1929 e a quebra da bolsa de Nova Iorque, fiquei muito feliz, realizado, pois um estudante chegou perto de mim ao fim da aula e disse: “Professor, eu li tudo isso que você falou aqui no livro e não entendi nada; agora, com você falando a coisa, ficou muito mais fácil, entendi tudinho, pode deixar que vou arrebentar na prova”. Depois das explicações, recorrentemente libero as turmas para interagir de maneira mais descontraída, o que me faz ser considerado relativamente popular entre os estudantes. Não tenho problemas em interagir com meus alunos para além da sala de aula, de perguntar e saber deles, de brincar e me manter próximo deles.

Creio que esse preâmbulo fez-se necessário por dizer um pouco da minha prática e do que compreendo como sendo o processo de formação do sujeito, seu papel propositivo no ato educativo como construção coletiva, que suplanta as aulas das disciplinas, mas envolve a escola e a comunidade escolar em seus mais variados atores. Tenho como horizonte a busca por uma atuação docente progressista, propositiva, transformadora dos sujeitos e de suas realidades a partir de suas ações críticas e conscientes de seu papel social. Entendo a construção do conhecimento como processo de mão dupla, de formação dos sujeitos e de mim mesmo, de intervenções e caminhos determinados pela realidade e pelo cotidiano, e por isso tal discussão fez tanto sentido a ponto de, pretensamente, se materializar em algo de acesso público. É papel primaz do educador progressista repensar sua prática e sua realidade; por esse motivo faço tais reflexões.    

Outrossim, retomo os elementos da situação que motivou a escrita de tal texto. Final de ano, provas, recuperações, conselhos de classe e, recorrentemente, nós, professores/as, retomamos as situações vividas durante o ano ao fecharmos nossas notas. Um dia, em um conselho de classe, quando fui perguntado sobre quantas recuperações os estudantes do 9º ano tinham pego comigo, respondi: nenhuma; um colega ficou surpreso, dizendo: “Uai, então você está passando todo mundo direto para não ter o trabalho de dar recuperação. Até a Karine passou? Não é possível!”. Chamou-me a atenção a menção de uma aluna em específico, por mais que ela fosse tida como indisciplinada e descompromissada. Eu percebi que se tratava de uma brincadeira entre colegas; mas não no intuito de justificar, expliquei rapidamente que as disciplinas variam em seu caráter formativo e prático, falei da forma como avaliei os estudantes e me senti mal por isso, pois era como se estivesse prestando contas do motivo pelo qual não havia reprovado ninguém. Por um momento, eu me senti como se fosse culpado pela situação, como se tivesse também que ter estudantes em recuperação ou até reprovação para ser tido como um bom professor.

Após esse ocorrido, fiquei pensando muito sobre a realidade escolar na atualidade, refletindo sobre questões de ordem cognitiva, de ordem comportamental e disciplinar, questões sobre o meu fazer docente, e com isso recapitulei minhas próprias memórias escolares. Uma certeza eu tive: não fui um bom aluno! Era tido como bagunceiro, da turma do fundão, mas me saía bem nas aulas prestando atenção e tirando boas notas nas provas. Eu sempre fiz parte da turma que Carlos Rodrigues Brandão (1999) tão bem tratou em seu texto A turma de trás, aqueles que conversavam muito, que ficavam em grupinhos, que colavam nas provas, que subvertiam regras, mas que na maioria das vezes conseguiam passar de ano sem maiores problemas. Na minha vida escolar, na maioria dos anos tive um caderno para todas as matérias e muito mal organizado. Aí lembrei de um livro lido há bastante tempo e me dei conta do quanto foi importante para mim ter lido uma obra aparentemente despretensiosa, de Rubem Alves e Gilberto Dimenstein (2003), que foram muito felizes ao escreverem “Fomos maus alunos”. Fui reler. Ao retomar a leitura, lembrava-me de minhas experiências na escola e logo era levado a comparar com as experiências que ocorrem hoje nas minhas aulas. Vi algumas similaridades, muitas diferenças, mas é isso: o tempo passa, as coisas mudam. Mas será que nós, docentes, refletimos e comparamos nossas trajetórias escolares e a realidade da escola atual? Empiricamente sou levado a dizer que muito poucos fazem isso.

As experiências vividas por nós são marcadas pelo seu tempo, pela realidade social e pelos valores de cada época. Isso me fez refletir sobre o que seria indisciplina nos meus tempos de escola e o que consideramos indisciplina hoje. Em minha época, falar um palavrão em sala seria motivo de chamar os pais na escola, mas hoje o modo de falar e se expressar dos jovens é dinâmico, marcado por elementos das redes sociais, pelas músicas populares dos funks, e o que podia ser antes um palavrão se torna um cumprimento, por exemplo. Isso não quer dizer que eu esteja aqui advogando pela total abstenção de uma linguagem adequada, pelo privilégio de gírias para alcançar nossos estudantes, mas penso que o reconhecimento do que é cotidiano para nossos estudantes é aspecto importante a ser considerado por nós, educadores.

Discursos saudosistas não são incomuns nas escolas e há quem diga que “era bom no meu tempo, que nós respeitávamos o professor”. Seria essa uma realidade ou uma idealização? Em que medida tais idealizações podem incidir em nossas práticas no cotidiano escolar? A partir das questões apontadas, lembro-me de duas situações vividas por mim na escola e que mostraram o quanto tenho que aprimorar meu olhar para um fazer docente mais próximo e condizente com a realidade dos sujeitos com os quais lido. Essas situações serão abordadas no decorrer do trabalho e servirão como base para as discussões que pretendo fazer.

Ao fechar as considerações iniciais deste texto, outra pergunta me ocorreu e, ao ser relacionada com as questões anteriores, nos ajuda a aprofundar a discussão: em que medida hoje em dia estamos tratando as questões disciplinares como questões cognitivas? Não se trata de relevar indisciplinas, mas de problematizar o que de fato estamos mensurando. Ainda mais após a vivência de uma pandemia da Covid-19, que incidiu diretamente em nossas escolas, nas vidas de nossos estudantes, em nossas vidas e nossos fazeres. O ano de 2022 foi indelevelmente marcado por essa realidade. Por isso, faço aqui uma reflexão a partir de realidades vividas por mim mesmo, com o intuito de minimamente tentar dar conta dessas perguntas.

O caladão que não fazia nada

Por mais democráticos que nos consideremos, temos em nosso cotidiano acordos, por vezes velados, que afetam diretamente nossas ações como educadores; tenho como premissa que não abro mão do meu momento de explicação das matérias e não se trata apenas de um falatório meu, mas de buscar diálogos com o coletivo de estudantes para mensurar o nível de apropriação e o diagnóstico do que já trazem consigo. Consignado a isso, valorizo muito todas as atividades feitas em sala ou em casa; portanto, tenho o caderno dos alunos como ferramenta importante em minha disciplina. Tal realidade fazia com que eu criasse em minha mente um modo ideal de como ser um bom aluno na minha disciplina, até que as coisas mudaram abruptamente.

Certa vez chegou à escola um estudante chamado Gabriel. A primeira imagem era de um garoto introspectivo, calado, que usava roupas pretas de bandas de rock e que mostrava pouca interação com os colegas. Quando ele chegou, já estava no meio do segundo trimestre e, como de praxe, perguntei sobre a outra escola, o que estavam estudando lá, se já tinha as notas fechadas do primeiro trimestre. Expliquei para ele também como avaliava os estudantes, falei das atividades, do caderno e da importância de trazer o livro para as minhas aulas. Ele ouviu tudo sem fazer qualquer comentário. Ao contrário do que comumente acontece com alunos recém-chegados de outras escolas, os quais são precedidos por seus feitos, com o aluno em questão não havia quaisquer problemas apontados, muito menos questões disciplinares.

Já nas primeiras aulas, algumas posturas de Gabriel me incomodaram sobremaneira, pois ele se sentou na última carteira, se deitou, cobriu a cabeça com o capuz e dormiu. Por ser nosso primeiro contato, preferi não tensionar; poderia ser alguma coisa em específico. Ao final da aula, perguntei se ele estava passando bem e ele disse que sim, que estava com sono apenas e que pegaria os temas trabalhados com os colegas. Pensei que estava tudo bem. Nas aulas subsequentes, ele sequer levava o caderno, não fez uma atividade sequer da disciplina durante uns 15 dias. O incômodo foi tão grande que marquei uma conversa nossa, entre mim e ele, na coordenação. Queria dividir a responsabilidade com a coordenadora e entender qual era o problema; será que era comigo? A aula estava ruim? Assim como ocorria na sala, ele não disse uma palavra.

Cada vez mais eu me incomodava com as atitudes do estudante, mas caminhava com a matéria e ele sem fazer nenhuma atividade, sem copiar nada, nenhuma matéria, nenhum esquema explicativo do quadro. Na sala de professores, perguntei a alguns colegas como o Gabriel era nas outras disciplinas e todos foram categóricos: “não faz nada!”. A imagem criada por mim era de um aluno que não me atrapalhava nas aulas, pois sequer abria a boca, mas que teria grandes dificuldades no decorrer do ano quanto às notas. Um candidato a ser reprovado. Passaram-se os dias, as semanas e, com o decorrer do trimestre, eu tinha um trabalho em grupo para ser feito. A atividade se dava nos moldes de gincana, cada grupo deveria se juntar e, de posse do livro didático e de toda a matéria do trimestre, elaborar questões que seriam feitas para os outros grupos. Cada grupo faria perguntas alternadas entre si. Os grupos que respondiam à questão corretamente ganhavam um ponto; caso o grupo errasse, o ponto seria para o grupo que elaborou a pergunta. No momento de organização dos grupos, um burburinho tomou a sala: Gabriel se juntou aos estudantes tido como bagunceiros e que tiravam notas baixas. A galera do fundão. Eu também fui levado pela mesma impressão – pensava que a probabilidade de tirarem nota ruim seria grande.

Passadas as aulas de elaboração das perguntas, era chegado o dia da gincana. Todos os grupos que podiam escolhiam o grupo do Gabriel para perguntar e qual não foi a surpresa da sala, ele respondia a tudo sem consultar o livro, sem sequer pedir ajuda aos colegas. Eu me lembro de um tema em específico: quando perguntado sobre a organização social da França absolutista, antes da Revolução Francesa, ele explicou usando todos os argumentos que eu havia trabalhado na sala, quando aparentemente ele não estava nem aí. Eu fiquei positivamente surpreso, um aluno que não fazia absolutamente nada tinha uma capacidade de reflexão e debate que saltava aos olhos. Ao fim da gincana Gabriel, e seu grupo tiraram a nota mais alta, inclusive acima do grupo tido como sendo dos estudiosos da sala. Aí, os que tinham sido menosprezados é que foram caçoar do restante da sala.

Continuando as aulas, a postura de Gabriel não se alterava, não fazia as atividades, praticamente não tinha nada em seu caderno, mas isso já não me incomodava tanto. Passei a tentar perceber outras nuances de seu comportamento na sala. Já caminhávamos para o final do semestre e estava chegando a avaliação trimestral. Tenho como hábito usar as avaliações trimestrais como forma de preparar os estudantes para possíveis seleções em escolas técnicas federais, caso se interessem após saírem da escola, por isso uso questões que já foram aplicadas em vários concursos pelo Brasil. Aplicada a prova trimestral, sua nota foi total, acertou absolutamente todas as questões, a maior nota da sala. Os considerados estudiosos chegaram a questionar a nota e dizer que Gabriel só tinha tirado tal nota por ter colado. Não era isso, trata-se de um estudante marcado por uma forma diferente de lidar com o processo de aprendizado. No último trimestre, a lógica se repetiu e Gabriel, mesmo sem caderno e sem fazer os exercícios, conseguiu ser aprovado em minha disciplina e com uma nota que considero muito boa.

Ao rememorar tal fato em minha carreira docente, sempre o faço sob a perspectiva da autocrítica, de mobilizar meu olhar quanto às minhas práticas, aos saberes dos educandos e às potencialidades do processo de construção do conhecimento, que vai variar de indivíduo para indivíduo. E todos têm que aprender igualmente? Na mesma proporção? Do mesmo modo? Com as mesmas práticas? A partir desse acontecimento, sempre tenho como horizonte a intenção de observar ainda mais os estudantes, de reconhecer outras formas de aprender e reforçar que são válidas. O fato de Gabriel não atender às expectativas do modo como eu achava que ele deveria se comportar em alguma medida poderia incidir na sua vida? Hoje posso dizer que não acredito nisso; ele teve seu acúmulo e apropriação de acordo com o que lhe foi significativo – e isso já é muito.

Mas as questões em relação ao modo de se comportar de Gabriel não chamaram apenas a minha atenção. No final do ano, em conselho de classe, fui inquirido sobre o comportamento do Gabriel, que eu mesmo tinha reclamado na sala de professores alguns meses atrás, e os colegas foram categóricos ao me perguntarem como ele tinha sido aprovado em minha disciplina. Em linhas gerais, tentei explicar aos colegas o que tinha acontecido e simplesmente disse que em História era um aluno brilhante, que, mesmo sem fazer as atividades, aprendia tudo com enorme facilidade. Alguns colegas compreenderam, outros ficaram desconfiados. Nesse mesmo conselho, tentei puxar o debate com o coletivo de professores sobre as posturas de um aluno e seu desempenho; por mais que inicialmente os colegas tenham se mostrado interessados, pouco fizemos no ano seguinte. Em linhas gerais e com um olhar empírico, ouso dizer que, recorrentemente, confundimos questões de indisciplina com dificuldades cognitivas.

Pedro da égua

Neste tópico do trabalho faço um relato sobre um estudante que esteve comigo por alguns anos, mas que tinha dificuldades muito grandes em relação à escrita e à leitura, dificuldades que refletiam nas várias disciplinas. Pedro era um estudante que estava na escola desde a Educação Infantil. Em sua trajetória, sempre manifestou dificuldades graves e chegou ao 7° ano do Ensino Fundamental praticamente sem saber ler e escrever. Era um estudante criado pela avó, que morava em uma localidade no bairro marcada pela falta de estrutura, com córrego e esgoto a céu aberto e ruas sem calçamento, uma realidade de vida insalubre pela quantidade de lixo próximo à residência, bem como insetos e ratos. Digo isso para termos como horizonte que outros direitos que eram negados à família de Pedro tinham grande potencial de repercutir em sua trajetória escolar. Para além disso, Pedro era um apaixonado por cavalos, por isso, era chamado de “Pedro da égua”. Criava, desde muito novo, junto com o avô, cavalos que eram usados para trabalhar em carroças que prestavam serviço de pequenos carretos pelo bairro. Pedro, aos 13 anos de idade, tinha seus próprios cavalos, tinha sua própria carroça, cuidava de seus animais, tratava, aplicava remédios quando necessário, fazia até parto, segundo ele mesmo disse. Como diversão, ele dizia de seu interesse por frequentar cavalgadas aos finais de semana. Quem não conversasse mais detidamente com Pedro não teria a noção de todas suas experiências.

Apesar de suas dificuldades, Pedro tentava, a seu modo e com sua condição, participar das aulas de História. E um dia acabou sendo marcante para mim como professor e para Pedro; mesmo passados vários anos, toda vez que volta à escola ele se lembra do ocorrido. Eu estava trabalhando com os alunos do 7° ano sobre a Idade Média e abordávamos o processo lento de aprimoramento das técnicas agrícolas naquela época. Um dos avanços que eu sinalizei foi o processo de passar a selar os animais para o arado pelo tronco, de modo a permitir que fizesse menos força e conseguisse maior produção ao arar os campos. Nesse momento, Pedro interveio para dizer que ele sabia tudo sobre aquilo que eu estava falando. A meu convite, Pedro assumiu a aula e deu uma palestra digna de especialista sobre cavalos, sobre o modo de lidar, sobre as doenças, sobre os riscos no lidar com esses animais, sobre os ganhos com a reprodução, falou sobre seu trabalho nas carroças e sobre seu dia a dia.

Ao fim dessa aula dada por Pedro, coloquei-me a refletir sobre quais saberes valorizamos na escola, quais experiências, quais formas de ser e se posicionar. Em se tratando de um aluno que era detentor de laudo psiquiátrico, que tinha fortes dificuldades em todas as disciplinas, na minha disciplina, naquela aula, seus saberes foram muito úteis para que o coletivo de estudantes compreendesse. Pedro participou diretamente da formação de seus colegas e da minha. Eu fiquei extasiado ao assistir a aula, com vários conhecimentos complexos que várias pessoas ali nunca tinham sequer pensado sobre. Após a aula, ficou claro que ele tinha conhecimentos de outra ordem e que eram significativos no seu fazer e viver cotidiano. Naquele trimestre fiz questão de dar a nota total para Pedro; não que isso importasse, mas como forma de reconhecer que outras formas de conhecer e experiências também devem ser reconhecidas como educativas em sua essência. Quando os colegas souberam da nota total mais uma vez fui inquirido: “como um menino que mal sabe ler e escrever tirou nota total em História?”. Fiz o relato da experiência vivida ao coletivo de professores e sinalizei que podíamos usar mais as experiências de Pedro em nossas aulas – o que não sei se efetivamente foi feito.

A trajetória de Pedro diz de um sujeito que não deu continuidade aos estudos pelas suas dificuldades e pelas barreiras impostas pelo próprio sistema educacional, mas que alcançou sua condição como indivíduo singular. Trata-se de um sujeito que está inserido socialmente, por mais que de maneira precária pela sua condição, mas que paga suas contas e que consegue sua sobrevivência por meio do seu trabalho. A última vez que ele esteve na escola fez questão de relembrar a tal aula do cavalo, me disse que estava namorando sério e que estava juntando dinheiro para se casar. Uma realidade que muito me alegrou pela importância dada por Pedro a tudo que ele alcançou e em que se tornou.

As experiências pontuais aqui retratadas serviram como demonstração de reflexões particulares, feitas a partir de elementos da realidade escolar cotidiana, e vão servir também como material de diálogo para colocar em debate nosso fazer docente em suas potencialidades e dificuldades, bem como a instituição na qual atuamos, a escola.

A escola e a realidade social

Como instituição social, a escola é marcada por uma imagem socialmente construída como uma das instituições sociais mais importantes, por ser responsável pela formação das crianças, das pessoas que irão compor as próximas gerações. Tal imagem traz consigo um fator singular que é o que podemos chamar de sacralização da escola, como se ali, naquele lugar, naquele período no qual o sujeito está estudando, não houvesse qualquer possibilidade de influência ou mácula dos males e vícios do mundo que está fora de seus muros. Todavia, há que se considerar que a escola está no mundo e é parte componente dele, o que implica a emergência dos conflitos desse mundo também no seu interior. Como diz Dayrell (2006), a escola é um espaço sociocultural. A escola, como instituição em relação com o meio, não está imune às tensões e desequilíbrios sociais, às desigualdades sociais e econômicas, à crise de valores e ao conflito de gerações (Estrela, 2002). Se entendemos que o papel da instituição é formar sujeitos para se inserir na sociedade, o distanciamento da realidade contribui para uma prática que destoe do que tais sujeitos vão encontrar diante de si ao enfrentar o mundo (Dubet, 2010). Por isso, uma imagem da instituição como espaço sagrado, imaculado e desprovido dos conflitos e problemas da sociedade que a cerca pouco contribui para uma significativa formação dos seus estudantes.

No que se refere à educação, alguns setores da sociedade têm um olhar apocalíptico, que considera a instituição escolar atravessada por uma grave crise que a incapacita a resolver as questões inerentes ao processo educacional e de formação dos sujeitos. Há quem diga na atualidade que a escola, com destaque para as escolas públicas, não mais cumpre seu papel. Essa imagem de uma instituição em crise está diretamente ligada às imagens sacralizadas mencionadas; no passado, a crença de que a escola seria a solução de problemas sociais e mazelas do mundo era praticamente um dogma. Entretanto, apesar de reconhecermos a importância da educação e da formação dos sujeitos, bem como o papel fundante do acesso à educação como ferramenta para inserção social, consideramos no mínimo ufanista a expectativa depositada sobre tal instituição (Bourdieu, 2011). Existem problemas que são de outra ordem e que demandam maior atuação do Estado (Estrela, 2002). A sacralização da escola trazia consigo uma responsabilidade que não caberia exclusivamente a ela.

Diante disso, consideramos que, em grande medida, imagens saudosistas de uma escola do passado – que temos dúvidas inclusive se existiu nos moldes como ela é idealizada –, ao serem rememoradas, servem de sustentação para a imagem atual de uma instituição em crise. Neidson Rodrigues (2003), ao discutir a mistificação da escola e a escola necessária, afirma categoricamente que a instituição escolar tende a se assentar em falsidades quando transforma o passado em veneração e não em algo para ser problematizado e discutido. Então, de que escola estamos falando quando nos remetemos à boa escola de antigamente?

A educação e o acesso ao conhecimento tido como válido e reconhecido academicamente serviram, com o passar dos tempos, como fator de distinção e de manutenção de poder (Brandão, 1992), o que nos faz pensar sobre aspectos da realidade escolar de antigamente. Seriam melhores os alunos? Mais dedicados? Mais competentes? Menos indisciplinados? A escola como instituição serviu, em grande medida, como instrumento de reprodução da realidade social (Bourdieu, 2011). Recorrentemente, quando rememoramos o passado, muitas vezes passamos despercebidos pelos elementos da organização daquela instituição naquele tempo. Trata-se de uma escola que estava organizada com base em mecanismos que serviam como embargo para aqueles que não fossem detentores dos códigos mínimos para ali se manter, o que repercutia em uma trajetória mais obstaculizada para aqueles vindos das classes pobres. Uma pedagogia que Freire (2011) nomeou como sendo dos oprimidos pela sua condição excludente. Muitos obstáculos enfrentados pelos pobres eram potencializados pela ausência ou falta de capitais culturais, sociais e econômicos condizentes com o que a escola cobrava de seus sujeitos (Bourdieu, 2011). Isso refletia em uma imagem dos sujeitos mais pobres como aqueles que não davam conta do que a escola oferecia, por vezes sendo taxados como incompetentes e desinteressados. Reprovações, comportamentos tidos como inadequados, dificuldades tidas como cognitivas, todo e qualquer fator que afastasse o sujeito do que era esperado de um ideal de estudante contribuía para a sua não permanência na escola. Tal realidade se refletia na presença massiva de sujeitos da classe média e alta como aqueles que tinham acesso à educação (Bourdieu, 2011). Tratava-se de uma escola para poucos.

Se voltarmos nosso olhar para o Brasil, veremos que a escola pública reproduzia, e ainda reproduz, muitas práticas que servem de obstáculo para as classes pobres. A década de 1980, em nosso país, é marcada pela redemocratização, pelo fim da Ditadura Civil-Militar e pelo processo de elaboração da nova Constituição Federal, conhecida como a “Constituição Cidadã”. Esse processo se reflete na realidade social brasileira de maneira geral, e a escola não passa incólume. A partir da Constituição de 1988, a educação passa a ser efetivamente reconhecida como direito inalienável de todo e qualquer cidadão. Trata-se de um dever do Estado, da família e da sociedade. Pode parecer algo simples, mas estamos falando de uma mudança drástica quanto ao que se pensa como sendo a educação. Legalmente, passamos a uma concepção que insere todos os cidadãos no direito a estar na escola, independentemente de ser pobre ou rico, de ser branco ou negro, de ser homem ou mulher, de ser heterossexual ou homossexual. A missão da instituição escolar é acolher a todos e lhes proporcionar educação. Mas isso foi algo ruim? Óbvio que não, mas implicou mudanças estruturais que, a reboque, causaram algumas tensões.

Se pegarmos pela memória, aqueles que estudaram antes da década de 1980 vão se lembrar de algumas coisas que aconteciam nas suas escolas, inclusive as públicas. Naquela época, o acesso à Educação Infantil, ao que era chamado de pré-escola ou primário, se dava de maneira muito restrita, pois somente famílias que tinham certa condição possibilitavam isso aos seus filhos. Muitos, ao entrar na primeira série, sequer sabiam pegar no lápis e ao final do ano tinham que saber ler e escrever. Quantos não foram reprovados na primeira série exatamente pela falta desse preparo prévio? A responsabilidade era dos sujeitos que não tinham conseguido o que se esperava como desejável para o ano e eram reprovados. Outra situação recorrente estava ligada ao uniforme. Quem não foi barrado ao entrar na escola porque não tinha o uniforme completo – calça, tênis e meia, camisa com brasão da escola? Quem não estivesse uniformizado voltava para casa, perdia aula por estar trajado de maneira considerada inapropriada. Tal prática incidia com maior força sobre os estudantes das classes populares, que tinham dificuldades financeiras para conseguir o uniforme e, ao perder aulas, recorrentemente, ao final do ano eram reprovados. Quem não levou bilhete para o pai porque não tinha levado o livro para aula? Mas a falta do livro era exatamente pela falta de dinheiro do pai para comprar, pois muitas vezes passava-se o ano sem o livro para estudar ou fazer a lição em casa e muitas vezes os professores não deixavam sentar junto ao colega, o que também significava reprovação.

As reprovações, quando consecutivas, acabavam reverberando no afastamento de determinados sujeitos da escola. Não por não serem aptos a aprender, não por serem desinteressados, mas porque a instituição estava organizada com o foco em um tipo ideal de estudante. Os que não se adaptassem acabavam sendo expelidos. Retomo a situação mencionada de saudosismo da escola de antigamente e dos estudantes de antigamente: de que escola estamos falando? De que estudantes estamos falando? O que era considerado adequado em relação ao comportamento escolar dos sujeitos? As imagens criadas em relação à escola e aos estudantes de antigamente já não condizem com a realidade dos nossos tempos. Elas se quebraram. Nesse sentido, novos papéis e novas imagens são necessários para que a educação cumpra sua função social (Arroyo, 2005).

Ao tratar da permanência desses novos sujeitos na escola a partir da democratização e da universalização do acesso ao Ensino Fundamental, Miguel Arroyo (2005) diz que se torna obrigação da escola reconhecer a sua necessidade de mudar para atender à pluralidade de sujeitos que irão compor sua realidade, pois educação é um direito de todos.

Entre as mistificações e idealizações (rodrigues, 2003), que escola seria possível (Arroyo, 1997) estruturar como efetiva promotora de uma sociedade mais igualitária e justa? Diante do exposto, penso que a necessidade de uma reflexão diuturna sobre a escola e suas práticas seja um passo importante no sentido de garantir a dinamicidade do cotidiano escolar em busca de uma educação pública, laica, de qualidade e de direito irrestrito. Mas estamos nós, professores, preparados para isso?

Sobre o ser professor e o seu fazer docente

Como mencionado, aqueles que escolhem a carreira docente como trajetória profissional estão adentrando uma complexa rede de valores, símbolos, práticas, conflitos e disputas. Ao pretendermos refletir sobre fazeres e práticas docentes, não temos como foco determinar a existência de culpados, de práticas corretas ou equivocadas, de modos de fazer e de não fazer. Longe disso: a proposta é levar cada colega a uma reflexão sobre si mesmo e sobre sua atuação na escola na relação com a realidade em que está inserido e com os sujeitos com os quais se relaciona.

A profissão docente, pelo seu fazer e pelo lugar no qual se estabelece, também é historicamente marcada por idealizações sobre o modo de ser, de se comportar e de atuar na escola; mas, como dito por Inês Teixeira (1996), um elemento central é o fato de estarmos tratando de sujeitos socioculturais que vão ser marcados pelas questões do seu tempo e da sua realidade social, uma profissão recorrentemente comparada ao sacerdócio, vinculada à dedicação incondicional do profissional, a ponto de fazer por amor e sequer precisar receber pelo seu trabalho. Esse processo de sacralização implicou indiretamente uma desvalorização pecuniária do trabalho desse profissional.

Nesse sentido, há que se reconhecer que a profissão é marcada pela necessidade de formação, de dedicação acadêmica, de tempo destinado a tantas atividades que muitas vezes ficam invisibilizadas. Aproveitamos o ensejo para reforçar que a luta por melhores salários e condições de trabalho são tão formativas quanto quaisquer cursos que possamos fazer (Freire, 1997). Temos que lutar pelo reconhecimento profissional. Quem luta educa!

Na atualidade, podemos dizer que a imagem social sobre os profissionais da Educação tem se alterado drasticamente e se divide entre o reconhecimento desse profissional como importante para a sociedade, outras vezes como incompetente por não dar conta de educar as crianças adequadamente e como alguém que quer doutrinar crianças para determinada corrente política. Essa última situação, que trata da atuação doutrinadora do educador, agravou-se com uma corrente conservadora que ganhou força nos últimos anos. Algumas práticas de vigilância de docentes beiram a criminalização da profissão, o que faz com que muitos profissionais tenham receios quanto à sua atuação. Mas... e a atuação dos docentes? Eles seriam mesmo sujeitos incapazes de controlar seus alunos? Em relação aos conflitos ocorridos nas escolas na atualidade, as imagens estão fortemente ligadas a alunos como sujeitos que desrespeitam os professores, bagunceiros, indisciplinados e os professores como pessoas sem autoridade sobre seus alunos, descompromissados com suas obrigações profissionais, um contexto tão superficial que muito pouco consegue abarcar toda a complexidade que envolve a escola e seus sujeitos educadores e educandos. Em relação ao ser professor, estamos falando de uma mudança drástica ocorrida nos últimos tempos. A imagem de ser esse o detentor de todo o conhecimento e do aluno como tábula rasa já não condiz com a realidade que estamos vivendo.

Estamos falando de uma sociedade da informação, dinâmica, na qual o monopólio da informação não está mais nas mãos do professor ou vinculado ao que consta no livro didático. As capacidades mnemônicas muito pouco acrescentam às necessidades cotidianas dos sujeitos. Cada estudante tem nas mãos um computador portátil de acesso irrestrito à internet. Nesse contexto, o fazer docente se torna ainda mais significativo, pois o profissional se torna um mediador no processo de construção do conhecimento. A perda desse monopólio do conhecimento faz com que muitos profissionais acabem inseguros, o que é compreensível pela alteração de algo que durou tanto tempo. Em contrapartida, a autoridade que estava contida no posto e no cargo passa a ser algo a ser construído junto ao coletivo de estudantes; quanto mais significativos os aprendizados, maior a possibilidade de êxito. Segundo Maria Tereza Estrela (2002, p. 12), “a disciplina não é um fim em si mesma. Só poderá tornar-se um fim educativo se der origem à autodisciplina enquanto manifestação de autonomia do aluno como pessoa livre e, por isso, responsável”.

Proporcionar outro papel aos sujeitos educandos está diretamente vinculado ao que Paulo Freire e Ira Shor (1986) consideram como prática progressista, transformadora e compromissada com os sujeitos e com a sua atuação na realidade social. Acreditamos que a inserção profissional em uma prática educativa transformadora tem relação direta com a humildade de nos colocarmos na condição de sujeitos eternamente aprendentes; isso implica, muitas vezes, desnaturalizar o que nos parece natural aos olhos, nos leva a questionar certa arrogância profissional que se sustenta no fato de estarmos na escola há muitos anos e por isso acharmos que já estamos cientes de tudo que acontece ali e como acontece. Uma formação transformadora, de si e de seus educandos, não prescinde dos saberes e conteúdos técnicos, longe disso, mas proporciona aos educandos também a construção de criticidade e conscientização de seu lugar no mundo, da realidade social em que estão inseridos e das lutas que têm que estabelecer se quiserem exercer os direitos que lhes cabem.

Longe de uma prática educativa pautada na libertinagem, desprovida de ordem e planejamento, falamos de práticas docentes que reconheçam os educandos em suas realidades, em seus saberes e experiências e que lhes proporcionem um lugar de intervenção no processo educativo. Tais práticas podem inicialmente causar certo desconforto a alguns docentes, mas creio servir para diferenciar questões de indisciplina, de cognição e de falta de compromisso. Reconhecer outros saberes como válidos, para além do que é unicamente estrutural, é um passo importante para garantir o direito irrestrito de acesso à educação.

“E aí, fessô? Passei de ano?”: trocando ideias sobre nossos educandos

O final do ano dos professores é marcado pela pergunta que dá nome a este tópico: “E aí, fessô? Passei?”. Essa situação de sermos procurados ao final do ano apenas com o intuito de dar recuperações ou aprovar alguns alunos pode, por vezes, nos causar sentimentos de raiva. “Por que esse menino não se preocupou assim o ano todo?”. Vamos debater nossos estudantes? Em outro tópico deste trabalho, retomei dois textos que me ajudaram muito a pensar minha prática docente a partir da retomada de minha trajetória como estudante. Em Fomos maus alunos, livro de Rubem Alves e Gilberto Dimenstein (2003) que se dá na forma de diálogos sistematizados a partir de questões e situações-problema apresentadas, deparei com relatos de pessoas muito bem-sucedidas em seus fazeres que também trataram de problemas vividos na escola, o que as levou a se reconhecer como não sendo bons alunos em sua trajetória escolar. Mas o que é ser um bom aluno?

Se perguntarmos aleatoriamente para pessoas que passem na rua o que é ser um bom aluno, creio que grande parte conseguirá minimamente apontar algumas características do que seria esse sujeito. Acredito que normalmente apontariam características ligadas ao bom comportamento, é aquele que não faz bagunça, que respeita os professores, que se dedica aos estudos, que tem boas notas. Sobre os elementos que compõem esse imaginário, Gimeno Sacristán (2005) diz que é uma imagem de aluno que foi inventada. Tais imagens estão visceralmente ligadas ao processo de escolarização, de padronização, de estruturação, de funcionamento da instituição. Diante dessa realidade, os modos de ser e se comportar na escola partem de quem pensou o sistema, ou seja, o adulto. Os sujeitos estudantes, portanto, foram desconsiderados em suas experiências. Eles não têm em si, inatos, os significados do ser aluno, que são compulsoriamente aprendidos na própria escola. Em grande medida, os papeis idealizados como modo de ser aluno estão distantes do sujeito real, com suas experiências e sua vida fora da escola, o que reverbera em dissonância entre o sujeito ideal e o sujeito real.

Durante todo o processo de elaboração deste trabalho, fiquei pensando sobre isso, e quanto mais o texto avançava mais eu consolidava a convicção de que, assim como os autores mencionados, eu também não tinha sido um bom aluno. Mas com base em que eu cheguei a essa posição? Com base no que a escola esperava de mim como estudante e o que eu realmente fazia, como eu me comportava: matar aulas para jogar vôlei na quadra, indisciplinas várias, de más respostas a professores a não fazer atividades e brigas, dentre tantas outras coisas. Apesar disso, tive a oportunidade de construir uma trajetória de vida que considero exitosa. Mesmo com toda a bagunça relatada só fui reprovado uma vez na vida, por ter que conciliar um curso de caldeireiro e soldador, no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) com as atividades escolares. Fui reprovado com 57 pontos em uma disciplina – Matemática. Hoje fico me perguntando: de que me ajudou ter repetido todas as matérias pelos três pontos que faltaram em Matemática? Todas as vezes que me coloco na condição de interventor na vida de meus educandos, faço questão de pensar sobre a responsabilidade que isso envolve. Alguém que leia o texto pode perguntar: “Então você passa todo mundo? Sem saber, sem fazer nada, sem nem mesmo ir à escola?”. Longe disso, mas procuro mensurar o processo educativo com um olhar mais amplo, o que não implica ser contrário a professores que reprovam por suas convicções, apesar de ser contrário à reprovação como artifício de “aprendizado” ou de amadurecimento. Porém algumas situações me movem a certas perguntas, por exemplo: de que adiantaria reprovar uma aluna de 17 anos que já estava vivendo uma vida junto ao namorado com o consentimento da família porque teve muitas faltas pelas atividades no lar e que acabou sendo prejudicada nas avaliações? Se reprovada, provavelmente ela nunca mais voltaria a escola. Em que tal ato seria educativo/formativo?

O que coloco em debate é: qual nosso papel como docentes? Com isso quero dizer que, ultimamente, não consigo mais pensar sobre as experiências de meus educandos de maneira descolada de minhas próprias experiências formativas, da Educação Básica ao doutorado. Será que sempre fui bom aluno? Na mesma medida, reflito sobre quais estratégias tive que criar para burlar um sistema excludente que sempre quis me expelir por ser egresso das classes populares. Quais seriam as estratégias de nossos estudantes? Quanto ao modo de se comportar, tenho me perguntado recorrentemente: qual o significado da escola para aqueles sujeitos? Os sujeitos refletem suas vivências. Estamos falando de sujeitos que, estando no 6° ou 7° ano do Ensino Fundamental, já são o representante de maior escolaridade da sua família. Seria justo medir as experiências formativas desse sujeito com a mesma régua que medimos as experiências daqueles das classes médias e ricas? Não estou aqui falando de fazer algo inferior, de proporcionar algo menor, uma educação pobre para pobres, mas de reconhecer o mérito e não reforçar a meritocracia.

Um movimento importante, de acordo as reflexões trazidas por Vanize Vieira e Marta Sforni (2010), caminha no sentido de complexificar nossa compreensão sobre a avaliação, o avaliar e os resultados alcançados. Se queremos democratizar a escola, torná-la mais humana, há que se buscar novas formas de avaliar, produzir valor. Para além de um número, pensando a formação de maneira contínua, com uso de diagnósticos para compreender os educandos, dando valor ao processo para reconhecê-los e de maneira formativa para lhes proporcionar consciência crítica e acesso ao conhecimento. Tenho fortes convicções de que nos cabe medir o caminho, ver de onde o sujeito saiu e até onde ele chegou, isso é virtuoso. Garantir a educação de acesso irrestrito não nos permite determinar modos ideais, formas adequadas, se realmente tivermos a ideia da educação como direito inalienável.

E as reflexões continuam...

Ao finalizar este relato de experiência, que envolveu memórias antigas e recentes, meu fazer como aluno e como professor, bem como o diálogo com autores que muito auxiliaram no processo de análise e compreensão da realidade, passa longe a intenção de concluir algo. Creio que o papel maior deste texto está na sua condição de incompletude, como oportunidade de retomada e continuidade por qualquer colega que se incomodar com algo e quiser refletir sobre isso em diálogo com outros colegas.

Todavia, creio que se faz necessário apontar alguns elementos que emergiram com maior destaque e que podem nos ser úteis no cotidiano de nossas escolas. É vital compreender que a escola como instituição é lugar de disputas e conflitos, mesmo que isso implique romper com imagens que nos são tão caras há tanto tempo. Essa escola real se apresenta como muito mais potente e significativa para as experiências formativas que a ela competem. Em relação ao nosso papel como profissionais da Educação, há que se destacar que, mesmo diante de tanta desvalorização, da precariedade de nossos ganhos e condições de trabalho, a responsabilidade que envolve nosso fazer é enorme. Não temos compromisso apenas com os estudantes, mas responsabilidade social. Não se trata de fantasiar um mundo que não existe, mas de nos comprometermos com o que nos compete como ação educativa e com as lutas que temos que empreender. Por mais que possa nos causar medo, uma prática politizada e transformadora torna nosso fazer mais significativo, nos dá sentido existencial.

Nossos estudantes são os atores principais, mesmo que muitas vezes não consigamos enxergar com exatidão quem são, como são ou o que estão tentando nos demonstrar. Um movimento de reconhecimento desses sujeitos em sua condição socialmente existente, de humanamente potentes, capazes de refletir e aprender, já carrega consigo grande potencial subversivo, de transformação social, de mobilização do real com vistas a ser transformado em algo melhor para nossas próximas gerações. Não há um modo único de educar, experienciar, viver, assim como não existem sujeitos padronizados; portanto, pensemos no potencial de romper amarras burocráticas e estruturais.

Se este texto for capaz de sensibilizar pessoas e fazer com que colegas professores se perguntem quantos Pedros e Gabriéis estão escondidos no fundo de nossas salas, ele já terá cumprido seu papel. O convite está posto para todos aqueles que, como educadores, inquietos, reflexivos, querem repensar seu fazer, seu cotidiano, sua escola. Quem venham outros textos que dialoguem conosco e que possamos sempre questionar o que aparentemente nos seja apresentado como realidade cabal.

Referências

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ARROYO, Miguel. A escola possível é possível? In: ARROYO, Miguel (org.). Da escola carente à escola possível. São Paulo: Loyola, 1997.

ARROYO, Miguel. Imagens quebradas. Petrópolis: Vozes, 2005.

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 39-64.

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ESTRELA, Maria Teresa. Relação pedagógica, disciplina e indisciplina na aula. Porto: Porto, 2002.

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho D’água, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

RODRIGUES, Neidson. Da mistificação da escola à escola necessária. São Paulo: Cortez, 2003.

SACRISTÁN, José Gimeno. O aluno como invenção. Porto Alegre: Artmed, 2005.

TEIXEIRA, Inês Castro. Os professores como sujeitos socioculturais. In: DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. p. 179-194.

VIEIRA, Vanize Aparecida Misael de Andrade; SFORNI, Maria Sueli de Faria. Avaliação da aprendizagem conceitual. Educar em Revista, Curitiba, número especial, p. 45-58, 2010.

Publicado em 03 de outubro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MARTINS, Francisco André Silva. Entre o real e o aparente: sobre indisciplinas, comportamentos e idealizações. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 38, 3 de outubro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/38/entre-o-real-e-o-aparente-sobre-indisciplinas-comportamentos-e-idealizacoes

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