"Débora, é porque aqui não pode falar, né?"

Debora Cristina da Silva Cruz Conceição

Professora do Colégio Pedro II, mestra em Educação (UFF)

A escola que há tempos já vem sendo pesquisada, indagada, questionada sobre a escuta e respeito aos interesses dos estudantes, desde antes da pandemia, com ela acabou por calar ainda mais as nossas crianças. A começar pelo uso das máscaras, que, além de esconder o que dizem os sorrisos, abafam a palavra em todos os sentidos.

Ela já era cheia de nãos! Não sobe aí, menino! Não mexe! Não pula! Não corre! Não tira o sapato! Não demora! Não, não e não! Mas agora tem mais: não fica perto do colega! Não compartilha seu material! Não encosta nele! Não mexe nisso sem lavar as mãos! E eles, sim, seguem firmes, todos esses nãos...

Quando cheguei por lá, este ano, o silêncio gritava os medos, traduzidos em recomendações pelas paredes. Os cartazes dessa vez não diziam: Sejam bem-vindos! Esqueceram de saudar as crianças! Mas por toda parte elas são lembradas do que não devem no espaço da escola.

A cena que trago para esta escrevivência ocorreu logo nos primeiros dias após o retorno presencial em 2021. Só pra relembrar: criado por Conceição Evaristo, o termo escrevivência traz a junção das palavras “escrever” e “vivência”, mas a força de sua ideia não está somente nessa aglutinação; ela está na genealogia da ideia, como e onde ela nasce e a que experiências étnica e de gênero ela está ligada, explicou a escritora e educadora. “A escrevivência não é a escrita de si, porque esta se esgota no próprio sujeito. Ela carrega a vivência da coletividade.” Este texto talvez estivesse passeando por minha mente em diferentes outras situações, mas resolvi descansá-lo e refletir mais, observar mais, conversar mais com os pequenos e tentar ouvir o que “falavam seus pensamentos” por trás das máscaras. Não sei se deu certo, mas eis que surge a oportunidade de mostrar a outros o que ficou para essa criança em especial, de quem contarei aqui: um menino negro, forte, curioso, um pouco perguntador e que parecia querer mais que os outros saber logo de tudo por ali. Seu nome: D. Ele me falou sobre tubos de ensaio logo nos primeiros dias e perguntava se eu já havia tomado “a tal vacina”, que a mãe havia falado com ele.

Eu já havia feito alguns passeios pela escola, apresentando os ambientes, contando o que poderíamos fazer e lembrando também o que não poderíamos (afinal, as regras fazem parte). Mas, por mais que eu tentasse trazer possibilidades de invencionices, os nãos gritavam nas paredes em formas de imagens e palavras ainda não compreendidas pelas crianças...

Voltamos para a sala e conversamos sobre as observações delas, que me falavam dos medos, do vírus e dos tiros. O primeiro dava medo por ser invisível, o segundo dava por também nem sempre se fazer ver. Diziam ser “perdido” e chegar como o vírus, assim de supetão! Elas não falaram muito. Eu, nervosa, falava mais, lembrava das regras, falava do vírus, da água e sabão, do álcool, de ainda não poder liberar os brinquedos, o parquinho, os abraços... E, enquanto eu falava, pensava: como se, algum dia, eles precisassem de minha permissão para essas situações. As crianças se reinventam, burlam, criam, elas acontecem e dão lição, nos ensinam...

Um dia desses mesmo, cada um escolheu um brinquedo para “brincar” sozinho em sua mesa e, curiosamente, três crianças pegaram telefones. Elas se ligaram! Cada uma de sua mesa, mas falavam, trocavam!

“K., você vem na minha casa?”

“Vou, sim, é só sua mãe falar com a minha no WhatsApp.”

“Tá bom, vou pedir pra ela, tá, tchau!”

Diálogos outros ocorreram, e as crianças me mostravam que não precisavam de minha autorização para inventar...

E então saímos novamente da sala. Hora da refeição, e dentre tantos cartazes com os nãos, eis que D. para diante de um deles, se aproxima, toca, olha pra mim e faz uma pergunta e volta o olhar para o cartaz: “Débora, é porque aqui não pode falar né?”.

Por alguns segundos eu pensei ter esquecido as palavras dentro da sala com todas as explicações que havia dado, com todas as regras de que havia falado, e fazia pouco tempo. O olhar dele para mim foi triste, e eu só consegui respirar e dizer: “É quase isso! É quase isso!”.

E de fato parecia ser mesmo. Não sentar perto, não tocar, não emprestar, não trocar... O que iriam eles, então, fazer naquele lugar? Como poderiam conversar, se as vozes já não eram permitidas diante daquele cartaz? Estávamos voltando ao passado e usando a máscara do silenciamento agora em nossas crianças (Kilomba, 2021)?

Esse menino me fez repensar tanta coisa! Me fez olhar, escutar através de seu olhar, tocar o olhar dele com o meu, que se sensibilizava naquela hora. Em seguida me calei. Segui com eles para o refeitório. O olhar dele e a imagem do cartaz agora estavam em mim e eu com eles, sem respostas.

A escola já buscava tirar a voz que nunca precisou dar às crianças

A pandemia só deu uma “ajudinha” nesse sentido. Ainda se podia ter risadas, ainda podia ter caretas, mãos dadas nas brincadeiras de roda, os pique-pegas, os desenhos no chão com giz ou carvão. Mas já tinha gente que não gostava muito de ver os movimentos das crianças, e agora põe a culpa no vírus. A pandemia nos tirou para além das vidas, mas o que fazemos com isso? A vida era normal? O que é agora? O que quer a escola? Não se pode nem mesmo jogar bola?

Pensando em mudar um pouco o cenário, ofereci cores e deixei nas mãos dos verdadeiros artistas para que trouxessem suas vozes com as tintas. Eles entenderam e olharam com sorrisos nos olhos suas criações. Eu entendi que precisava ainda mais deles. Que juntos possamos olhar, trocar, burlar e, acima de tudo: falar!

Gratidão a D., que, através de seu olhar, me trouxe um outro!

Referências

HERMÍNIO, B. A escrevivência carrega a escrita da coletividade”, afirma Conceição Evaristo. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP). São Paulo, out. 2022. Disponível em: http://www.iea.usp.br/noticias/a-escrevivencia-carrega-a-escrita-da-coletividade-afirma-conceicao-evaristo.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

Publicado em 10 de outubro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

CONCEIÇÃO, Debora Cristina da Silva Cruz. "Débora, é porque aqui não pode falar, né?". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 39, 10 de outubro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/39/debora-e-porque-aqui-nao-pode-falar-ne

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