Teatro de fantoche: alfabetização científica no contexto dos primeiros anos

Monica Cristina do Amaral Falcão da Silva

Especialista em Ensino e Tecnologias Educacionais (IFMG – Câmpus São João Evangelista), professora da Prefeitura Municipal de Vila Velha

Sandra Regina do Amaral

Doutora em Educação (UFU), professora do IFMG - campus São João Evangelista

O mundo é tecnológico e isso não se pode negar. Equipamentos como celular, smartphone, tablet e computador dão acesso rápido às informações e inovam com tanta rapidez que para muitos é até difícil acompanhar suas funcionalidades. Por outro lado, muitas escolas insistem, ainda nos dias de hoje, numa concepção bancária de educação e na abordagem de uma realidade em retalhos, mantendo-se desconectadas da totalidade.

Se no ensino tradicional priorizava-se a transmissão em massa de conteúdos por meio de um processo de aquisição mecânico e passivo, no qual os professores eram os detentores do saber, com o avanço da tecnologia, urge a necessidade de uma educação mais comprometida com o sujeito. Freire (2019b) defende uma educação libertadora na qual a prática educativa se faz dialógica e problematizadora, de modo a deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente, tornando-o mais crítico e criador.

Entende-se que aos nativos do século XXI se impõe o desafio de romper com um mundo em fragmentos, superar a inteligência cega e manter vivo o embrião da reflexão, no intuito de romper com paradigmas e construir um pensar autêntico (Morin, 2018). Trata-se do exercício da capacidade de pensar certo, de descobrir-se ingênuo para começar a tornar-se crítico (Freire, 2019a).

Diante desse cenário sobre o qual é preciso um olhar crítico e no qual os avanços tecnológicos têm tirado da escola e do professor o papel central de referência do conhecimento, já que os estudantes surfam na internet e superam seus professores (em sua maioria desplugados) no acesso às informações, Chassot (2003; 2018), inspirado pela concepção freiriana, propõe como alternativa a alfabetização científica.

Chassot (2003, p. 91) assume a Ciência como uma linguagem construída por homens e mulheres para explicar o mundo natural no seu contexto social. Nesse sentido, a alfabetização científica “comporta um conhecimento dos fazeres cotidianos da ciência” e pode ajudar a “fazer correções em ensinamentos distorcidos”, já que também diz respeito a acompanhar e a apropriar-se das novidades da tecnologia a favor de melhores condições de vida.

Como explica Krasilchik (2000), a expressão “alfabetização científica” passou a fazer parte da vida de muitos educadores brasileiros na década de 50, quando a escola deixou de atender a um grupo privilegiado e passou a ser responsável pela formação de todos os cidadãos. O que ajudou na compreensão de que era inadequado um currículo que parecia considerar que todos fossem seguir carreiras científicas e um ensino que preparava apenas os mais aptos, identificando e incentivando os jovens considerados talentosos e excluindo os demais, sob a desculpa da necessidade de impulsionar o progresso industrial.

Contrapondo-se à concepção bancária excludente, se institui o movimento Ciência para Todos, buscando relacionar o ensino às experiências dos estudantes para uma maior compreensão das interconexões entre os problemas éticos, étnicos, religiosos, ideológicos, políticos, econômicos, sociais e culturais, bem como os benefícios e riscos de um sistema tecnológico e globalizado (Krasilchik, 2000).

Hazel e Trefil (2005, p. 12) defendem que ser alfabetizado cientificamente “é ter o conhecimento necessário para entender os debates públicos sobre as questões de ciência e tecnologia [...] O fato é que fazer ciência é inteiramente diferente de usar ciência. E a alfabetização científica refere-se somente ao uso da ciência”. A partir do que propõe Chassot (2018), preferimos o termo “sobretudo” em lugar de somente, dando ênfase a sua prioridade sem nos limitarmos a ela.

Nesse sentido, o alfabetizado não precisa deter o domínio de todo o conhecimento científico, mas sim uma visão ampla que facilite a leitura do mundo em que vive e a percepção da necessidade de transformá-lo em algo melhor, detendo o conhecimento necessário para o acesso, acompanhamento e avaliação das novidades científicas e tecnológicas, bem como de suas implicações na vida em sociedade (Chassot, 2018).

Sasseron e Carvalho (2011), ao delinearem o termo “alfabetização científica”, trazem como ponto principal da revisão bibliográfica a necessidade de se renovar o ensino de Ciências de modo a religá-lo à realidade vivida, em vez de restringi-lo a conceitos e métodos, para que o conhecimento científico possa ser utilizado em prol da melhoria na qualidade de vida. As autoras, ao refletirem sobre o contexto das crianças pequenas, apontam ser preciso explorar a curiosidade no processo de apreciação, compreensão e valorização do mundo natural.

Viechenecki e Carletto (2013) lembram que é pertinente às crianças pequenas um desejo e uma curiosidade em compreender o mundo a sua volta, pois nessa busca, ela faz hipóteses sobre os fenômenos do cotidiano. Nesse sentido, cabe ao professor inseri-las na cultura científica, promovendo ações pedagógicas interdisciplinares e contextualizadas que incentive o seu espírito investigativo e a sua curiosidade epistemológica, de modo que as hipóteses possam ser formuladas e confrontadas em prol da alfabetização científica, perpassando pela compreensão das inter-relações entre o ser humano, o ambiente e as tecnologias.

Defende-se assim que a “iniciação à alfabetização científica” pode e deve ocorrer mesmo antes da aquisição da leitura e da escrita, uma vez que o trabalho com as Ciências contribui para o desenvolvimento de sequências didáticas com atividades contextualizadas e desafiadoras norteadas de significados ao universo infantil, que abrem caminho para a posse dos conhecimentos científicos de modo interdisciplinar (Viechenecki; Carletto, 2013).

Pizarro e Lopes Junior (2015, p. 220), ao se debruçarem sobre o processo de alfabetização científica nos anos iniciais de escolarização, destacam a tradição do uso de atividades escritas e reconhecem a importância do domínio da língua materna para que seja possível à criança avançar na construção do conhecimento, mas também apontam para a necessidade de valorização e do uso dos diferentes meios de expressão, considerando que muitas crianças que ainda não dominam a língua materna encontram na fala um espaço democrático de manifestação do que sabem.

Amaral (2017) nomeia como “pré-alfabetização científica” a fase mais inicial e salienta o quanto são significativas as lembranças das aulas nas quais os professores diversificam suas práticas educativas com trabalhos coletivos, discussões em grupos, reflexões críticas, pesquisas, confecções de cartazes, seminários, apresentações teatrais, produção de filmes de animação, poesias, paródias, maquetes e histórias em quadrinhos.

O uso de metodologias variadas como rodas de conversa, produção de desenhos ou textos coletivos, produção de experimentos ou qualquer outra intervenção na qual as crianças precisem fazer escolhas e se posicionar, também são destacados por Pizarro e Lopes Junior (2015), considerando que a articulação de ideias, a investigação, a argumentação, a problematização e a criação, bem como a leitura e a escrita em Ciências, com o engajamento social, se constituem indicadores de uma alfabetização científica.

Na busca da promoção da alfabetização científica por meio de situações problematizadoras e contextualizadas, Berto e Lorenzetti (2019) organizam uma sequência didática estruturada nos ‘Três Momentos Pedagógicos’ (problematização inicial, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento), além de situações-problema, utilizam-se experimentos, vídeos e textos. Os autores concluíram que a intervenção é favorável à alfabetização e sinalizam a mudança de comportamento de muitos estudantes que ampliaram seu nível de participação e envolvimento durante as atividades.

O estudo de Fabrício, Lorenzetti e Martins (2020), ao discutir a contribuição da sequência didática para a promoção da alfabetização científica no 5° ano, utiliza um esquema composto de quatro etapas principais (apresentação da situação problema, produção inicial, módulos e produção final). Nele, salientam a importância da interação com a cultura científica já nos primeiros anos do Ensino Fundamental, oferecendo a oportunidade tanto do aprendizado, quanto da aplicação dos conhecimentos científicos no cotidiano.

Almeida, Amado e Amaral (2022) lembram ainda que até a forma como a sala de aula é organizada impacta na ação educativa, já que as cadeiras em fila prejudicam o trabalho em grupo e a cooperação. Por outro lado, a formatação do ambiente ajuda a manter a lógica tecnocrática que tenta manter o foco no professor. Em contrapartida, na educação com enfoque CTS/CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente), cabe ao professor materializar uma abordagem prática e útil de uma Ciência que lida com problemas/temas pertencentes ao meio sociocultural dos estudantes, favorecendo a descoberta, a pesquisa e a discussão contextualizada sobre os avanços e as consequências, positivas e negativas, da Ciência e da Tecnologia.

A partir de seu estudo, Amaral (2017) pensa a respeito do papel do professor e elenca seis ações geradoras de indicadores de alfabetização científica:

  • articulação entre o conhecimento teórico e a realidade vivida;
  • aproximação do fazer científico por meio da investigação;
  • oportunidade de defesa de argumentos e respeito aos outros;
  • ampliação do repertório comunicativo por meio de utilização de expressões científicas;
  • leitura, produção textual, formulação de perguntas e respostas;
  • reflexão crítica e percepção social sobre as influências da Ciência.

Quanto ao papel da criança no processo de ensino-aprendizagem, Amaral (2017, p. 111) estabelece indicadores que se apresentam ao professor como pontos de reflexão: “Assumiu o papel de produtor; articulou ideias; investigou; fez escolhas; argumentou; tomou decisões; Problematizou; Trabalhou em grupo; socializou parte do que foi aprendido; exercitou a atividade criadora; apropriou-se de ferramentas tecnológicas; produziu conhecimento”.

Diante do exposto, tendo como público-alvo crianças do 4°ano do Ensino Fundamental, elaboramos uma intervenção intitulada Brincando, Reciclando e Aprendendo!, metodologicamente apoiada nos Três Momentos Pedagógicos, em consonância com a perspectiva freiriana de educação e definimos, como objetivo do estudo, analisar o potencial da alfabetização científica na sequência didática.

Metodologia

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa do tipo descritiva que adota, como procedimentos de coleta de dados, a pesquisa bibliográfica e de campo, implementadas como estratégias de investigação: levantamento de material bibliográfico, elaboração e acompanhamento de intervenção pedagógica e análise deles em seus aspectos subjetivos (Gil, 2017).

A intervenção organizada em formato de sequência didática, intitulada Brincando, Reciclando e Aprendendo! (Quadro 1), foi planejada para 18 aulas de 50 minutos cada, mas, conforme evidências nos resultados e diante das fortes chuvas, foi reorganizada e desenvolvida em 12 aulas ao longo de cinco semanas nos meses de novembro e dezembro de 2022.

A intervenção está metodologicamente apoiada nos Três Momentos Pedagógicos, conforme discutem Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2018). A problematização diz respeito a uma discussão inicial que visa relacionar o conteúdo do estudo com situações reais do contexto do estudante, no intuito de aguçar contradições e reflexões. Na organização, sob orientação do professor e com apoio textos e experiências tecnológicas, o estudante irá aprofundar leis, definições, conceitos e relações apresentadas no diálogo introdutório, de modo a incorporá-los em seus saberes. Na aplicação, o estudante tem a oportunidade de apresentar os conhecimentos que vêm sendo incorporados ao interpretar e relacionar conceitos e fenômenos.

Quadro 1: Intervenção pedagógica: sequência didática intitulada Brincando, Reciclando e Aprendendo!

Sequência didática (SD)

Título

Brincando, Reciclando e Aprendendo!

Público-alvo

Crianças do 4º ano do Ensino Fundamental I

Áreas do conhecimento

Geografia (relevo), História (história do município e do Rio Marinho), Ciências (descarte correto dos resíduos, reciclagem e preservação do meio ambiente) e Português (produção textual do gênero roteiro).

Problemática

A região na qual a escola está inserida fica sujeita a alagamento a cada chuva. O rio que fica no entorno tem características de um valão, sendo inclusive utilizado como local de descarte de lixo e outros materiais que poderiam ser reciclados. Entende-se assim como fundamental o desenvolvimento de práticas educativas que colaborem com a conscientização da comunidade e preservação do recurso natural.

Objetivo

Sensibilizar quanto a quantidade de lixo gerado, a degradação do ambiente e seu impacto na qualidade de vida, além de estimular práticas de reutilização e reciclagem de materiais.

Problematização

Aula 01

Após as boas-vindas a aula terá início com um diálogo mediado pela pergunta problematizadora: “Vocês sabiam que este “valão” é um rio?”. Não cabe ao professor concordar ou discordar das respostas, mas sim estimular reflexões. Dependendo de como o diálogo siga, pergunta-se ainda: “É certo descartar o lixo neste espaço?”. Em seguida, orientar o trabalho de pesquisa: Investigar junto aos familiares e amigos, como era o Rio Marinho, para continuarmos a conversa na próxima aula (aulas de 50 min.).

Organização do Conhecimento

Aula 02

No dia seguinte, na biblioteca, inicia-se a aula com socialização das informações coletadas e exposição de imagens/reportagens selecionadas pela professora de como era o Rio Marinho e tipos de resíduos retirados dele.

Aula 03

Escrita dos relatos e montagem de um jornal mural com os relatos e imagens.

Aula 04

Aula expositiva dialogada sobre o relevo da região e consequências da chuva e exposição de imagens/reportagens sobre alagamentos na região da Grande Cobilândia.

Aula 05

Promoção de Mesa de conversa (descarte correto dos resíduos): um morador antigo, um funcionário da Secretaria do Meio Ambiente e um Coletor (caminhão de lixo).

Aula 06

As crianças irão elaborar placas com mensagem de preservação do ambiente e descarte correto dos resíduos. Material disponibilizado pela professora.

Aulas 07, 08 e 09

Passeio pelo bairro, fixação das placas e visita a empresa de reciclagem. Palestra sobre reciclagem e reaproveitamento de materiais.

Aplicação do Conhecimento

Aulas 10, 11 e 12

Produção de texto/roteiro em pequenos grupos (máximo 5) para teatro. Gênero textual: diálogo. Valorizar os diferentes saberes, os que ainda não são alfabetizados contribuem com ideias.

Aula 13

Continuação da produção de texto/roteiro e correção ortográfica paralela (com atendimento nos grupos). Orientar as crianças para trazerem os materiais para construção do fantoche (caixa de leite, tampinha, barbante, fitas, botões, retalho de tecido...).

Aulas 14, 15, 16 e 17

Confecção de fantoches com caixa de leite (cada grupo construindo seus personagens). Ensaio do teatro (leitura do roteiro conforme personagens) e gravação do vídeo.

Aula 18

Apresentação do vídeo para a comunidade escolar.

Constituem-se sujeitos da pesquisa crianças que cursam o 4° ano do Ensino Fundamental de uma escola do sistema municipal de Vila Velha/ES. A fundamentação teórica, a análise dos roteiros e os diálogos desenvolvidos durante a intervenção, são elementos fundamentais para a compreensão e a identificação dos pressupostos que orientam a alfabetização científica e seus indicadores, interconectados com a realidade das crianças.

Resultados e discussão

A sequência didática teve início com o levantamento do conhecimento prévio das crianças a respeito do “valão” que fica no entorno da escola, tendo como pergunta problematizadora: “Vocês sabiam que este 'valão'; é um rio?” De um modo geral, todos se mostraram surpresos e interessados em saber a utilidade dele. Levantamos como hipótese que era usado para tomar banho, lavar roupa e brincar. Dando continuidade, foram orientados a fazer a pesquisa junto aos familiares de como era o Rio Marinho.

Na aula 2, percebemos, a partir das devolutivas, que muitos pais já conheceram o rio como valão, pois na maior parte dos relatos ficou evidente a contribuição dos avós, que contaram a história do rio entrelaçada com suas memórias de infância e juventude. Eles confirmaram a hipótese de que seus avós tomaram banho, lavaram roupa e brincaram no rio e acrescentaram à conversa a questão da utilidade do abastecimento de água dessas casas. Complementando o que eles conseguiram descobrir com a família, foram apresentados vídeos e reportagens mais antigas que tratam das consequências do descarte indevido dos resíduos sólidos. Eles se mostraram muito interessados, atentos na apreciação dos vídeos e participativos durante a roda de conversa.

Conforme previsto, na aula 3 fez-se um mural no intuito de socializar as descobertas. Durante o trabalho e os diálogos a respeito dos alagamentos, surgiu a questão do relevo (previsto para a aula 4). Iniciou-se, assim, de modo informal, uma explicação sobre a planície, relevo predominante em Vila Velha, evidenciando que fatores naturais e não naturais (como o descarte do “lixo”), colaboram para alagamentos. Por coincidência, iniciamos um período de fortes chuvas que perdurou por duas semanas.

Na aula 4, os estudantes chegaram surpresos e comentando. A região de Cobilândia (Vila Velha/ES) que normalmente alaga com chuvas mais fracas, ainda não havia alagado. Aproveitou-se para mostrar que foi diferente dessa vez por causa de uma obra de macrodrenagem que estava sendo realizada pelo governo do Estado. Observaram que o rio subiu bastante, mas que rapidamente a água baixou, por isso não transbordou. Falaram sobre coisas que presenciaram durantes as fortes chuvas e, mesmo sem lembrar o nome, reconheceram a importância da limpeza (macrodrenagem) para que a comunidade sofresse menos os impactos negativos das chuvas.

As vivências decorrentes das fortes chuvas, possibilitaram fazer discussões não previstas na sequência. Por outro lado, apesar do entorno da escola não ter sido tão impactado diretamente com o alagamento, os acessos ao bairro ficaram prejudicados a ponto de precisarmos reorganizar os trabalhos na escola, porque muitos não conseguiam chegar, inviabilizando assim a conversa com os convidados (aula 5) e a visita no bairro (aulas 7, 8 e 9). Por consequência, como já tinha sido produzido o jornal mural com as informações coletadas até então, assim como as placas com mensagens de preservação do ambiente e descarte correto do lixo, o foco era um trabalho com a comunidade. Desse modo, a aula 6 também não foi desenvolvida.

Enfim, em substituição às cinco aulas perdidas, foram desenvolvidas duas aulas expositivas dialogadas sobre a preservação do ambiente, o descarte correto dos resíduos sólidos, as consequências da chuva, a importância de políticas públicas e a importância da atitude de cada cidadão. Dentre as reportagens mais recentes usadas para melhor contextualizar as discussões, uma postagem no Instagram da prefeitura foi realizada sobre a retirada de um sofá do Rio Marinho.

Pode-se dizer que foram seis aulas de participação intensa das crianças e de parceria com outros profissionais da escola. A professora de Educação Especial, que atende quatro crianças na turma, se envolveu colaborando com o trabalho de todos. Outras contribuições fundamentais foram as do bibliotecário e da professora de tecnologia, já que na escola não é possível acessar a internet e passar os vídeos e imagens direto dos sites, tudo precisou ser baixado e organizado com antecedência.

Apesar do trabalho de apropriação das informações disponíveis na internet não ter sido realizado em tempo real e diante da dificuldade de acesso a algumas páginas na escola, que inviabilizou a busca em redes sociais de instituições idôneas, as crianças vivenciaram o uso dessas tecnologias para o acesso a informações.

Na 7ª aula (equivalente à aula 10 da sequência didática), deu-se início à aplicação do conhecimento com as produções dos roteiros. Em acordo com as crianças, o agrupamento foi definido pela professora e cada grupo elegeu um líder e um redator, garantindo assim que os estudantes em processo de alfabetização da língua materna pudessem participar ativamente e manifestar oralmente seus argumentos. Observou-se, durante o processo, que algumas crianças que antes apresentavam problemas de comportamento também mostraram interesse e não tiveram dificuldades em atuar em grupo. 

Dentro do que foi discutido, os grupos tiveram liberdade para decidir o foco da escrita e observar escolhas bem diversificadas, como por exemplo o impacto da chuva, a questão do descarte do lixo e a importância do Rio Marinho. Foi interessante observar que algumas histórias resgataram questões discutidas em sala de aula, mas outras trouxeram informações novas, evidenciando que algumas crianças ampliaram suas pesquisas e agregaram novos conhecimentos por iniciativa própria.

Na 10ª aula (conforme previsto na aula 13), a correção do texto foi realizada junto ao grupo. Assim foi possível fazer observações escritas bem como discutir os problemas ortográficos e dar sugestões de melhorias, momento no qual eles manifestaram domínio do conteúdo ao dialogar com propriedade sobre os assuntos. Para exemplificar a produção foram escolhidos aleatoriamente dois roteiros, organizados e apresentados nos Quadros 2 e 3.

Quadro 2: Roteiro “O rio que acabou virando valão”

Personagem

Fala

José

Rio Marinho é um rio que foi poluído pelo ser humano e acabou virando um valão.

Alice

Eu achei que poluição era só quando colocava fogo nas matas e a fumaça ia para o ar.

José

Não só como o desmatamento, o descuido jogando lixo no rio.

Alice

Quando chove alaga as ruas e casas e o lixo volta para nossa casa, quando o rio abaixa o lixo fica espalhado.

José

É mesmo Alice, temos que valorizar os lixeiros. O rio se encontra poluído e a região em torno dele está ocupada por bairros e muitos moradores.

Alice

Precisamos cuidar do nosso lixo e não jogar no lugar errado. Podia ter uma propaganda. O que acha de fazer cartazes e colar nos postes?

José

Eu te ajudo. Vamos falar com o pessoal e juntar mais gente pra ajudar, assim a gente acaba rapidinho e ainda pode brincar.

Alice

Eba!

Fonte: Construção das autoras (2022).

Quadro 3: Roteiro “O homem sujão”

Personagem

Fala

Yuri

Como o Rio Marinho é sujo! Mas você sabia que antes do homem chegar o rio era limpo?

Gabriela

Não sabia não. Me conta mais.

Yuri

Ah, tá! Como eu disse, era muito limpo. Aí os homens chegaram, jogaram lixo e poluíram muito. A prefeitura tirou um sofá do rio outro dia.

Gabriela

Um sofá?

Yuri

Sim, um sofá! Aí é por isso que o bairro enche de água. Por causa da chuva e do lixo no rio.

Gabriela

Também tem pessoas saindo de casa, por causa da chuva. Isso não aconteceu comigo, mas com muitas pessoas.

Yuri

No ano passado aqui alagava muito por causa da chuva e do lixo, mas agora não enche muito porque tão fazendo uma drenagem.

Gabriela

Espero que as pessoas não joguem mais lixo nem sofá no rio.

Yuri

Nem no chão na rua. Porque aí quando chove vai tudo pro rio e entope tudo.

Gabriela

Eu não vou jogar mais. Tchau!

Fonte: Construção das Autoras (2022).

Na aula seguinte, oficialmente a 11ª, as crianças trouxeram caixas de leite, tampinhas, retalhos e linhas e demos início à produção dos fantoches. Como todos queriam ter seu fantoche foi combinado de cada um fazer o seu, conforme ilustrado na Figura 1. Depois, selecionaríamos dois fantoches para a gravação do vídeo.

Figura 1: Produção dos Fantoches

Fonte: Acervo das autoras, 2022.

Por causa da reorganização das aulas, só foi possível reservar duas aulas para esta parte, para que o vídeo pudesse ser produzido no último dia de aula, não sendo possível o evento de apresentação para a comunidade. No dia seguinte, tivemos as últimas 4 aulas da sequência didática, totalizando quinze aulas de aproximadamente 50 minutos cada.

Foi interessante observar que diante da noção de que aquele era o último dia de aula e consequentemente a última oportunidade de concluir os trabalhos, algumas crianças se ofereceram para ajudar os colegas de outros grupos. A chuva continuava e, diante da falta de alguns e da manifestação de vergonha de outros, os grupos foram se reorganizando para a leitura do roteiro e a gravação do vídeo, ensaiando e lendo juntos. Foi perceptível o envolvimento e a satisfação das crianças com o desenvolvimento da atividade, pois se mostraram responsáveis e comprometidas, dominando o conteúdo.

Entende-se, em consonância com Freire (2019a; b) e Chassot (2003; 2018), que tal prática rompeu com a abordagem tradicional e se fez dialógica e contextualizada, favorecendo a leitura da realidade e a percepção da necessidade de mudança, de modo a transformar o contexto em algo melhor.

Acredita-se que, por meio dessa intervenção, foi possível inovar o ensino de Ciências trabalhando conceitos diretamente ligados à realidade vivida, inserindo as crianças na cultura científica por meio de ações contextualizadas e interdisciplinares, favorecendo a percepção das interrelações entre o ser humano e o ambiente, como destacam Sasseron e Carvalho (2011) e Viechenecki e Carletto (2013).

Corroborando os autores já citados, que se debruçaram sobre o processo de alfabetização científica nos primeiros anos de escolarização, vale destacar a importância do uso de metodologias variadas, que ao contribuírem para o aumento da participação ativa da criança, potencializam o seu interesse, o seu envolvimento e o seu empenho em aprender, além do estímulo à interação com a cultura científica.

No diálogo apresentado no roteiro “O rio que acabou virando valão” (Quadro 2), por exemplo, observou-se já na 1ª fala a noção de que a ação humana vem impactando negativamente o contexto, pois o homem fez com que um rio se tornasse um valão. A outra personagem, por sua vez, surpreende mostrando inicialmente uma visão limitante de poluição e aparentemente alheia à sua ação, ao afirmar “Eu achei que poluição era só quando colocava fogo nas matas e a fumaça ia para o ar”. Mas a noção se amplia ao longo do diálogo e diante da afirmativa “Quando chove alaga as ruas e casas e o lixo volta para nossa casa, quando o rio abaixa o lixo fica espalhado”, estabelecendo uma interrelação entre o ser humano e o ambiente. Adiante, observa-se ainda o engajamento social das personagens, que além de identificarem o problema e pensarem nas causas e consequências, fazem conjecturas de soluções como quando prepararam cartazes para serem colados nos postes.

O grupo que elaborou o diálogo apresentado no roteiro “O homem sujão” (Quadro 3) fez inicialmente escolhas parecidas, ao evidenciarem que foi a ação humana que transformou um rio limpo em um valão, ou uma grande lixeira, já que até um sofá foi encontrado lá. Da terceira fala em diante, ao citar o sofá, o alagamento em tempos de chuva e a importância da drenagem, fizeram conexões com fatos reais, analisaram seu contexto a partir de situações concretas, pensaram na conduta adequada para que as pessoas sofram menos em períodos chuvosos e encerram o diálogo dizendo “Eu não vou jogar mais”.

Desse modo, considerando os indicadores discutidos por Pizarro e Lopes Junior (2015) e Amaral (2017), apontam-se como indicadores de alfabetização científica encontrados no estudo:

  • Articulação entre o conhecimento teórico e a realidade vivida: em vários momentos desde o início da sequência didática;
  • Defesa de argumentos, respeito aos outros e trabalho em grupo: na entrevista com a família, nos diálogos envolvendo o coletivo do grupo e em pequenos grupos na escrita do roteiro e gravação dos vídeos;
  • Ampliação do repertório comunicativo por meio de utilização de expressões científicas: principalmente na conversa sobre o relevo, macrodrenagem e reciclagem;
  • Leitura e produção textual: materializados no mural e por meio dos roteiros;
  • Exercício da atividade criadora e apropriação de ferramentas tecnológicas: apreciação e discussão a partir de produções (áudio)visuais, escrita do roteiro, produção dos fantoches e gravação dos vídeos;
  • Reflexão crítica e percepção social sobre as influências da Ciência: nas conversas paralelas durante diferentes momentos pedagógicos e na escrita do roteiro.

É inegável o aumento da disposição quando a prática educativa encontra significado na vida do estudante. A maioria das crianças não demonstram muito interesse em escrever um texto só porque a professora quer, no entanto, escrever um roteiro para a produção de um vídeo muda o desejo de fazer. Em parte, pela apropriação de recursos tecnológicos, em parte pela socialização e trabalho em grupo, ou talvez porque cada um tem a possibilidade de se sobressair em papéis diferentes, todos dialogam, mas há quem escreve o roteiro, prepara o cenário, constrói o fantoche, dubla os diálogos, manusear o fantoche ou filmar, enfim, o que se percebeu é que todos acabaram se envolvendo e que o teatro de fantoche se apresentou como um meio de expressar o aprendido.

Comentários finais

Diante do exposto, observa-se que a cultura infantil é rica, norteada de conhecimentos, pensamentos e atitudes, que deve ser incentivada por meio de uma educação dialógica e problematizadora, ao contrário do que acontece quando se assume uma perspectiva tradicional, na qual o contexto social e os saberes da criança são negligenciados, como se ela precisasse ser apenas preparada para um agir na vida adulta e não tivesse um espaço e um tempo de ação no presente.

Do conceito de alfabetização científica emerge a percepção de que não basta acumular informações fragmentadas. É preciso construir um saber mais conectado, no qual as informações façam sentido e o estudante, ainda no primeiro ciclo do Ensino Fundamental, já possa usá-lo e saiba se posicionar e intervir responsavelmente em seu contexto. Nesse sentido é importante que o professor entenda que o processo de construção do conhecimento é mediado pelo mundo e, a partir dele, selecione e problematize temas relevantes de modo a inserir a criança na cultura científica.

Assim, em consonância com o objetivo de analisar o potencial de alfabetização científica da sequência didática intitulada Brincando, Reciclando e Aprendendo!, concluímos que ela tem o potencial de favorecer a alfabetização científica. Dentre os indicadores, apontamos: o debate contextualizado sobre os conceitos trabalhados e a realidade vivida, a utilização de expressões científicas, a construção crítica e criativa de roteiros e bonecos de fantoches, a apropriação de ferramentas tecnológicas, o trabalho colaborativo nos grupos e entre eles, a reflexão crítica e percepção social sobre as influências da Ciência e o interesse, envolvimento e alegria no desenvolvimento das atividades, o que nos leva a crer que as experiências vivenciadas durante a sequência didática favoreceram discussões, reflexões e a aprendizagem a respeito das questões e dos conceitos científicos, tornando a interação com a cultura científica significativa.

Nosso desejo é que a intervenção possa apoiar novas práticas que valorizem tanto a cultura científica quanto o contexto da criança. Essas experiências devem ser socializadas, ampliando a discussão a respeito da alfabetização científica ainda nos primeiros anos de escolarização, na esperança de que, de algum modo, venham contribuir para a melhoria da realidade social.

Referências

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Agradecimentos

Agradecemos a toda a equipe do IFMG - Câmpus São João Evangelista, em especial os envolvidos na Pós-Graduação em Ensino e Tecnologias Educacionais.

Publicado em 10 de outubro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Monica Cristina do Amaral Falcão; AMARAL, Sandra Regina do. Teatro de fantoche: alfabetização científica no contexto dos primeiros anos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 39, 10 de outubro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/39/teatro-de-fantoche-alfabetizacao-cientifica-no-contexto-dos-primeiros-anos

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