As concepções de linguagem e seu impacto na prática docente do Ensino de Ciências
Marize Gelard Reis de Castro
UERJ
Giselle Faur de Castro Catarino
Unigranrio
Muitas foram as transformações ocorridas em torno da concepção de linguagem ao longo da história da Linguística, pois cada momento social e histórico demanda uma percepção de língua, de mundo, de sujeito e essas mudanças interferem no ensino de Ciências. Destaca, Moita Lopes (1994, p. 355) a centralidade da linguagem no processo educacional, de modo que a compreensão da sua natureza é essencial na formação de qualquer professor. A clareza “sobre o papel que a linguagem representa no âmbito educacional” faz-se necessária para o desenvolvimento dessa prática. Em outras palavras, a perspectiva de língua/linguagem concebida na formação interfere diretamente nas práticas docentes em sala de aula.
Na sala de aula das disciplinas de Ciências, o papel da linguagem é deixado em segundo plano, desconsiderando que ela acompanha todo o processo de ensino-aprendizagem e tem impacto em ambos os processos. Segundo Bargalló (2005), os professores de Ciências se queixam que seus alunos não sabem ler e expressar suas ideias por escrito e oralmente, delegando a responsabilidade para os professores da área de linguagens, pois acreditam que o problema não está no modo como ensinam Ciências. É importante que os professores de Ciências façam com que os alunos compreendam a linguagem própria da Ciência.
A linguagem é produto de ação humana, construída ao longo da história dos povos a partir de suas necessidades, trocas e interações. Por meio da linguagem, descrevemos o mundo e interagimos socialmente. Galiazzi (2003, p. 96) afirma que “a realidade é construída pela linguagem que utilizamos para descrevê-la nós mesmos somos produtos da linguagem que aprendemos”.
No trabalho clássico de João Wanderlei Geraldi (1991), o autor aponta três concepções de linguagem:
- linguagem como expressão do pensamento,
- linguagem como instrumento de comunicação e
- linguagem como forma de interação.
Linguagem como expressão do pensamento
A linguagem é a expressão do pensamento ou o “subjetivismo idealista”, conforme Bakhtin (2006) considera o “psiquismo individual”, fonte constituidora da língua, restringindo-se a explicar o fato linguístico resultante de um ato de criação individual (Bakhtin/Volochinov, 2006, p. 64).
Travaglia (1997) explica que a língua é vista como “um ato monológico, individual, que não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que constituem a situação social em que a enunciação acontece” (Travaglia, 1997, p. 21). Diante dessa visão, o não saber se expressar advém do não saber pensar, uma vez que a linguagem traduz o que se constrói na mente, ou seja, a linguagem é considerada o espelho do pensamento. Dessa forma, a língua é concebida como um sistema de normas, imutável, acabado e sem interferência social.
Como consequência, ao adotar essa concepção, os professores preconizam o uso das regras do falar e escrever bem e se restringem ao certo e errado, além de considerarem apenas uma variante – a dita padrão – ignorando, automaticamente, as demais formas que ocorrem no uso da língua de modo que não há uma relação com a língua viva usada no cotidiano. Assim, quem não domina as regras desse sistema é um indivíduo que não organiza de forma lógica o seu pensamento.
Linguagem como instrumento de comunicação
A segunda concepção, chamada por Bakhtin (2006) de “objetivismo abstrato”, ou, conforme Geraldi (1984), a “linguagem como instrumento de comunicação”, considera uma gramática universal a partir dos fatores fonéticos, gramaticais e lexicais, os quais permanecem imutáveis para todos os enunciados, ou seja, um sistema estável e acabado.
Tal concepção ainda se liga à Teoria da Comunicação proposta por Jakobson, em que a comunicação é dada a partir de elementos – emissor, receptor, canal, mensagem, código e referente – e, portanto, considera a língua um “conjunto de signos que se combinam segundo regras” (Geraldi, 1984, p. 41), sendo possível transmitir uma mensagem e/ou informações de um emissor a um receptor, isto é, um instrumento de comunicação, que serve para transmitir uma mensagem ou informação de modo que os envolvidos no ato utilizem os sinais do código de forma preestabelecida e convencionada.
Embora essa perspectiva compreenda a língua como um ato social, ela desconsidera o uso e consequentemente os envolvidos nesse ato – os falantes e o contexto – limitando-se apenas em seu funcionamento interno, e apoiando-se nos estudos estruturalistas. De um modo geral, essa concepção permeou a formação docente por muitos anos, e ainda é a mais vista em sala de aula.
Linguagem como forma de interação
Na contemporaneidade, o redirecionamento teórico em torno dos estudos da língua é baseado, principalmente, nos estudos realizados pelo Círculo de Bakhtin, que postula a linguagem como forma de interação.
Bakhtin/Volochinov afirma que “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (2006, p. 127), “mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações” (Bakhtin/Volochinov, 2006, p. 125). Logo, é impossível compreendê-la sem considerar os aspectos sociais e ideológicos que a constituem.
Desse modo, diferentemente das concepções anteriores, em que a língua era utilizada somente para exteriorizar o pensamento, ou ainda para transmitir informações, a linguagem como forma de interação considera os sujeitos, uma vez que esses “são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos” (Koch; Elias, 2006, p. 10), ou seja, essa concepção situa a linguagem como espaço de interação humana.
Nesse sentido, a linguagem como forma de interação considera “o sujeito que fala e prática ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; e com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistiam à fala” (Geraldi, 1984, p. 41). Além disso, outros aspectos devem ser considerados na enunciação, tais como as condições de produção do discurso, as relações de sentido estabelecidas entre os interlocutores, a intenção, a ideologia, e ainda os discursos que circulam socialmente.
A linguagem, assim, se dá na interação comunicativa entre interlocutores, em dado contexto sócio-histórico e ideológicos, uma vez que os interlocutores são sujeitos que ocupam um espaço social, e, portanto, “produzir sentidos é, então, ocupar uma posição, tornar-se sujeito de um dizer frente a outras vozes” (Gregolin, 2007, p. 68).
As concepções de linguagem que orientam a prática docente
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais (Brasil, 1997), a aprendizagem da leitura, da escrita e da fala da língua oficial no Ensino Fundamental não se restringe à Língua Portuguesa, uma vez que a língua é o instrumental básico do conhecimento. Em Ciências Naturais, oportunidades para ler, escrever e falar são momentos de estudo e elaboração de códigos de linguagem específicos do conhecimento científico. A aprendizagem desse código comporta tanto a leitura e a escrita de textos informativos quanto a apropriação de uma terminologia específica, capacidades que os estudantes desenvolvem conjuntamente, enquanto trabalham diferentes propostas de atividades.
Nas aulas de Ciências, o papel da linguagem muitas vezes é deixado pelo professor em segundo plano, pois se desconsidera que ela acompanha todo o processo de ensino-aprendizagem, interferindo em ambos os processos. Segundo Bargalló (2005), os professores de Ciências se queixam que seus alunos não sabem expressar suas ideias (por escrito e/ou oralmente), delegando a responsabilidade para os professores de Língua Portuguesa, pois acreditam que o problema não está no modo como ensinam Ciências. Entretanto, eles necessitam fazer com que seus alunos compreendam a linguagem própria da Ciência, sendo necessário operar com a própria língua materna. Assim, professores de Ciências são também professores de linguagem.
A linguagem é produto de ação humana, construída ao longo da história dos povos a partir de suas necessidades, trocas e interações. Uma forma particular de ver o mundo que se traduz em mais uma cultura a ser apropriada pelo aluno. Galiazzi (2003, p. 96) afirma que “a realidade é construída pela linguagem que utilizamos para descrevê-la; nós mesmos somos produtos da linguagem que aprendemos”.
Segundo Maturana (2009), a linguagem é um fenômeno biológico desenvolvido ao longo da história humana devido às relações interpessoais que foram sendo estabelecidas em decorrência do modo de vida humano, como a coleta e partilha de alimentos e o envolvimento na criação dos filhos.
A linguagem está relacionada com a comunicação consensual, ou seja, a comunicação decorrente de coordenações consensuais de conduta. Koch (2006) afirma que a linguagem humana tem sido concebida ao longo da história por três concepções: a primeira se refere à linguagem como representação do mundo e do pensamento, sendo função da linguagem refletir sobre a visão do mundo e o pensamento humano; a segunda concebe a função da língua como transmissora de informação, por meio de um emissor que comunica uma determinada mensagem a um receptor; e a terceira considera a linguagem como atividade, ação de interação que permite aos seres humanos praticar diversos atos que podem levá-los a determinados comportamentos, os quais podem resultar no estabelecimento de relações.
Vygotsky (2008) afirma que o desenvolvimento da linguagem ocorre por meio da interação com outro indivíduo. Desse modo, o ser humano se constitui como sujeito e desenvolve funções mentais, tais como o pensamento. Os indivíduos pensam por meio da linguagem. Devido a isso, pensamento e fala não são processos independentes.
A relação entre o pensamento e a palavra constitui um processo que passa por diversas transformações, um movimento contínuo que vai do pensamento à fala e vice-versa até a interiorização do mundo exterior. O pensamento passa a existir por meio da linguagem. Nesse sentido, Charaudeau (2008, p. 7) afirma que “é a linguagem que permite pensar e agir, pois não há ação sem pensamento, nem pensamento sem linguagem”.
Bargalló (2005, p. 27) salienta, sobre como o pensamento auxilia na construção de modelos científicos, testificando que “a relação tão intensa entre pensamento e linguagem faz com que sejam mutuamente dependentes: a linguagem ajuda a construir modelos científicos mais elaborados e estes ajudam a configurar uma linguagem mais precisa”.
De acordo com Vygotsky (2008), a linguagem é social e destaca o papel da interação da criança com os que a cercam para o desenvolvimento da linguagem, pois “a função primordial da fala é a comunicação, o intercâmbio social” (Vygotsky, 2008, p. 6). Segundo o autor, a fala organiza o pensamento e a estrutura da fala não é igual a do pensamento. O pensamento passa por muitas transformações até chegar na produção da fala. Relativo ao significado, a primeira palavra de uma criança é uma frase completa, pois ela expressa todo o seu pensamento em uma única palavra, partindo do todo até compreender o significado das palavras em separado, formando caminhos contrários. Pensamento e fala se unem em pensamento por meio do significado da palavra. Assim, para que uma palavra nova possa ser aprendida ela precisa ter significado para o sujeito.
Moraes (2010) salienta que a função de linguagem vai além da comunicação, com o objetivo de transmitir informações e conhecimentos prontos. Ressalta a importância da linguagem para a aprendizagem na sua função epistêmica. Aprende-se interagindo com a linguagem, seja falando, ouvindo, lendo ou escrevendo.
A linguagem possibilita que as vivências e as experiências do sujeito se transformem em conhecimento, na medida em que o desconhecido estabelece pontes com o conhecido, tornando mais complexos os significados. Essas experiências auxiliam o sujeito a ampliar sua realidade e visão do mundo.
Conclusão
A linguagem constitui o mecanismo fundamental de transformações do desenvolvimento cognitivo, já que participa como mediadora entre o indivíduo, a sociedade e a cultura. A linguagem desempenha um papel mediador da aprendizagem que ocorre nas interações entre os sujeitos, buscando na linguagem a chave da compreensão para as principais questões epistemológicas que atravessam as ciências humanas e sociais.
Estudantes aprendem Ciências quando aprendem a descrever, justificar,argumentar, definir, escrever informações referentes a uma atividade de laboratório,pois o texto científico só tem sentido para o estudante quando ele adquire significado. Essa visão torna-se possível quando o professor passa de reprodutor do conhecimento para professor pesquisador, acolhendo a responsabilidade e colocando-se como um aprendiz de novas formas de atuação, rompendo o processo passivo.
Considerando a importância das concepções teóricas para a organização, planejamento e mediação da prática docente, verifica-se que conscientemente ou não, a concepção teórica do professor, tanto de língua quanto de ensino-aprendizagem, influenciará diretamente sua prática. Nesse sentido, faz-se necessário refletir sobre o processo de ensino-aprendizagem da leitura a partir das concepções teóricas que permearam, e permeiam o ensino.
Referências
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Publicado em 17 de outubro de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
CASTRO, Marizze Gelard Reis de; CATARINO, Giselle Faur de Castro. As concepções de linguagem e seu impacto na prática docente do Ensino de Ciências. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 40, 17 de outubro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/42/as-concepcoes-de-linguagem-e-seu-impacto-na-pratica-docente-do-ensino-de-ciencias
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