Avaliações escritas no ciclo de alfabetização e as marcas de autoria

Brunele Almeida de Araujo

Professora da SME/RJ, pedagoga (UFRJ), especialista em Educação Infantil (PUC-Rio), especialista em Alfabetização (UFRJ)

Rejane Maria de Almeida Amorim

Professora associada da Faculdade de Educação (UFRJ), bolsista de Produtividade Acadêmica (Cecierj), doutora em Psicologia da Educação (PUC-SP)

O presente estudo é fruto da atuação pedagógica nas turmas de 1° ano do Ensino Fundamental, em 2018 e no 2° ano do Ensino Fundamental, em 2019, em uma escola da Rede Municipal do Rio de Janeiro, localizada na Rocinha, maior favela da América Latina.

O projeto político-pedagógico (PPP) da escola percebe como necessário interligar esse processo de aprendizagem ao que nos é dado como marco da identidade do território no qual a escola está inserida. Nesse olhar, identificamos que a questão da oralidade e da escrita, as novas formas de linguagem e comunicação, são apresentadas aos nossos alunos de maneira muito mais abrangente do que geralmente é apresentada nos livros didáticos e referenciais teóricos.

Na comunidade da Rocinha temos um ritmo próprio na língua no qual percebemos fortes traços do sotaque nordestino em suas diferentes nuances. Sendo assim, consideramos que a escrita jamais pode se separar da oralidade, assim como a comunicação se faz na interação cotidiana entre as crianças, a comunidade escolar e os profissionais que lá atuam.

A gestão escolar incentiva a construção de portfólios de escrita que, durante o ano letivo, carregam a história daquele aluno e de sua turma. O portfólio é um caderno de uso individual, que traz textos escritos feitos pela criança, apontando seu percurso no processo de alfabetização, desde o início até o fim do ano letivo.

Nas primeiras semanas de aula, construímos uma lista de temas que as crianças gostariam de estudar. Em um primeiro contato com a escrita na escola, as crianças são convidadas a escrever sobre o que gostam e sobre o que lhes emociona. Em um segundo momento, a alfabetização se alinha aos objetivos e intencionalidades.

Em contrapartida, bimestralmente a turma realiza provas padronizadas (de leitura, escrita e  Matemática) vindas da SME/RJ. Tais provas têm critérios de avaliação pré-estabelecidos, baseados em habilidades do Currículo Carioca. Nosso esforço pedagógico é tornar todo e qualquer registro significativo, mesmo dentro de avaliações oficiais.

Outros instrumentos de avaliação, criados pelo professor, devem ser inseridos no sistema da SME/RJ para que também constem dele. Assim, temos a liberdade de complementar essa avaliação com nossas fontes documentais.

Considerando nossa prática, nossos esforços e o resultado obtido, construímos uma pesquisa cujo objetivo é analisar a autoria presente nos textos de crianças do 1° e do 2° ano do Ensino Fundamental, nas produções escritas em provas oficiais realizadas pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ) e em escritas realizadas em seus portfólios.

O problema da pesquisa se constituiu em analisar, à luz de Smolka (2012) e Castro (2008; 2011), dentre outros autores, as marcas de autoria que os estudantes adotam para escreverem seus portfólios. Consideramos de extrema relevância para o campo educacional pesquisar avaliações em larga escala, a fim de contextualizá-las em uma prática pedagógica que valorize a autoria e o protagonismo infantil.

Para o processo de investigação, a metodologia segue um percurso qualitativo de pesquisa realizada no ambiente de trabalho, utilizando como instrumento de análise as produções textuais de crianças acompanhadas por dois anos seguidos, no 1° e no 2° ano do Ensino Fundamental, nos anos de 2018 e 2019.

De acordo com André (2001), compreendemos a pesquisa como um estudo de caso uma vez que só inciamos a pesquisa quando todo o processo já havia acontecido.

Dessa investigação emergiu uma categoria de análise que permitiu traçar um caminho de pesquisa que reflete sobre a necessidade que as crianças têm de dizer mais do que o que foi solicitado, de escrever o que faz sentido e lhes emociona, para além de uma atividade prescritiva. Foram justamente os seus textos que despertaram o desejo de escrevermos sobre a experiência vivida, trazendo à baila o que queriam comunicar.

A escrita na alfabetização: políticas e concepções

Ao longo de nossas vidas, temos contato com avaliações em larga escala. Desde muito jovens já ouvimos falar na temida palavra: prova. Ao ingressar no 1° ano do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, as crianças começam o primeiro contato com uma avaliação quantitativa, que verifica suas proficiências em leitura, escrita e Matemática, em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Em contrapartida, há todo o trabalho dentro de sala de aula, com autonomia do trabalho docente pela unidade de ensino e guiado por suas questões subjetivas e históricas, alinhadas ao projeto político-pedagógico (PPP) da escola. O ensino do processo de escrita da turma é inspirado no que diz Collelo: “em primeiro lugar, cai por terra a separação radical entre o aprender a escrever e tornar-se produtor da escrita (Collelo, 2007, p. 167).

Todo aluno é considerado autor de seu próprio texto, produtor de cultura e protagonista no processo de escrita. Cada produção é valorizada e incentivada, sem ênfase no erro, mas sim no processo, no diálogo, na subjetividade e na evolução cognitiva.

Smolka (2012) nos diz que a alfabetização é um processo discursivo, ancorado no letramento, nas condições e nas possibilidades concretas de imersão em práticas de leitura e escrita. A autora entende a concepção de linguagem como prática social de sujeitos em interação.

Para exemplificar de onde partimos com a turma, nosso primeiro projeto, alinhado ao PPP, às habilidades propostas no Currículo Carioca do 1° e 2° ano do Ensino Fundamental e na BNCC, foi sobre “o mundo que nos é preexistente”.

Nesse projeto, as crianças escolheram saber mais sobre os dinossauros e assim começou nossa história juntos. Os alunos tiveram a liberdade de escrever sobre suas curiosidades e trazer suas experiências. No começo, vieram os desenhos e as garatujas. Depois, as primieras hipóteses de escrita, cada qual em seu ritmo. Com práticas como rodas de leitura, pesquisas, brincadeiras, rodas de conversa e registros, começamos o uso do portfólio, constituído como instrumento complementar das notas oficiais da SME/RJ, que nos ajuda a entender os avanços do processo de alfabetização.

Vygotsky (1991, p. 69) chama a atenção para o espaço da escrita na escola e alerta que:

Até agora, a escrita ocupou um espaço muito estreito na prática escolar, em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal.

Para criar um cenário potencializador da escrita, saindo de um exercício mecânico, conforme fala Vygotsky (1991), produzimos ovos de gelo, com miniaturas plásticas de dinossauros dentro de cada um. Exploramos o espaço escolar para encontrá-los. Falamos sobre bing-bang, fósseis, as diversas espécies de dinossauros e sua extinção. Imersos nesse universo, saímos pela escola à procura dos ovos. Quando os encontramos, ficamos horas no pátio brincando até que os ovos descongelassem e finalmente nascessem os filhotes de dinossauros. Ao subir para sala de aula, começamos um registro cheio de significado.

Figura 1: Crianças no pátio com ovos de dinossauro de gelo

Fonte: Arquivo das autoras.

A partir da utilização dos brinquedos e da impregnação do significado, imaginando que aquela representação em gelo fossem mesmo ovos de dinossauros, o portfólio virou o grande tesouro pessoal de cada criança.

De acordo com Smolka (2012), o sentido que as crianças atribuem à escrita e a seus esquemas de interpretação é variado e depende das experiências passadas bem como dos conhecimentos adquiridos.

A introdução contextualizada da escrita proporcionou uma relação de autonomia, segurança, autoria, prazer e orgulho, fortalecendo a autoestima das crianças e a segurança para escreverem sem medo do erro. Portanto, a avaliação enviada pela SME/RJ também funcionava como instrumento de fortalecimento da autoestima das crianças, já que a prova era formulada sobre o nível de habilidades que a turma já dominava. Então, se desfez a pressão da prova, pois elas percebiam que sabiam muitas coisas e tinham muito a dizer.

Para Smolka (2012), a escrita sem função explícita na escola, perde o sentido e não suscita o desejo de ler e escrever. O desafio em relação à avaliação externa é não perder o sentido para as crianças, virando um momento de tensão.

De acordo com Vygotsky, “uma coisa é certa – o desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá, conforme já foi descrito, pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras” (Vygotsky, 1991, p. 77), assim, uma classe de alfabetização não deve estar descolada do universo lúdico e criativo.

O autor ainda alerta sobre as questões metodológicas e adverte:

o segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural. Uma vez que ela é atingida, a criança passa a dominar o princípio da linguagem escrita, e resta então, simplesmente, aperfeiçoar esse método (Vygotsky, 1991, p. 77).

Atentas a essas questões teóricas, ponderamos que avaliações externas e avaliações processuais da escola podem se conectar, se conseguirmos tornar a escrita um momento de dizer o que desejo, expressar meus sentimentos e comununicar o que quero.

Análises das escritas das crianças: uma leitura para além do caráter avaliativo

Ao lermos e relermos os 33 portfólios dos alunos, agrupamos suas escritas nas provas oficiais e nos textos de seus portfólios em uma categoria de análise que abarca e expressa o que sentimos quando lemos esses textos. Essas produções nos conduzem para lugares, possibilidades, emoções e narrativas muito subjetivas.

A categoria denominada 1) “Quero escrever sobre o que gosto, o que me emociona e está na minha vida atual” reúne sete textos que se destacaram, cada qual com uma situação autoral distinta. Desses textos, três são resultantes das avaliações enviadas pela SME/RJ e quatro são escritas realizadas na sala em diferentes contextos.

Esclarecemos que tanto a escola quanto os estudantes não serão identificados a fim de preservar suas identidades.

Quero escrever sobre o que gosto, o que me emociona e está na minha vida atual

A grande variedade de textos nos ajudou a compreender os traços de autoria e a singularidade presente no discurso de cada criança. Por outro lado, eles dificultam nossa escolha para a pesquisa, dada a quantidade de material. O trabalho de leitura e releitura, a seleção por meio de traços mais marcantes e a necessidade de fazer um recorte, possibilitaram que definíssimos uma categoria que demonstra o quanto os alunos queriam falar de coisas que gostavam e sabiam. É importante ressaltar que, de acordo com Colello (2007, p. 180),

o estudo das diferentes dimensões da escrita (cognitiva, afetiva, sociocultural, pedagógica e linguística) favorece a revisão das tradicionais posturas. A aprendizagem da língua, e em particular, o seu processo de produção passam a ser vistos no rol da complexidade de um sujeito autor que traz consigo os elementos da cultura (saberes, interesses, familiaridade com as práticas sociais letradas, conhecimento das formas de uso, da escrita e valoração dessa modalidade de linguagem) e as marcas do processo de aprendizagem.

As escritas dos estudantes trazidas neste artigo corroboram os estudos de Colello (2007), destacando a complexidade do sujeito autor e de seu discurso potente, histórico, cultural e social, longe de um mero registro para cumprir uma avaliação.

As duas primeiras produções escritas fazem parte do portfólio e a última foi retirada da avaliação escrita da SME/RJ. Conforme anunciamos, o portfólio, mesmo estando fora do contexto das avaliações formais, faz parte do material avaliativo que irá complementar o conceito bimestral do estudante.

No Texto 1, a aluna escreve sobre um filme de terror a que tinha assistido no final de semana. Escolhemos esse texto de escrita espontânea, mas que parte de um desejo de escrever, o que consideramos fundamental.

Figura 2: Texto 1

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do texto 1:

“História de terror

Penuais. Era uma vez uma história de um menino chamado Jorge. Um dia o menino chamado Jorge fez um barquinho de papel e estava chovendo e eu botei minha capa de chuva amarela e fui. Botei meu barquinho para nadar e caiu no bueiro. Quando eu fui pegar o barquinho apareceu um palhaço e comeu a mão do menino.”

Observam-se, neste resumo do filme It, a Coisa, os aspectos marcantes para a aluna que complementa seu registro e desenha a história em quadrinhos. Algo nesse filme a motivou a escrever, pois é um tema que ela sabe e gosta. Nesse material, a ortografia e a lógica gramatical estavam em segundo plano. O importante era escrever sobre o tema. Segundo Smolka (2012, p. 117),

Se tomarmos, então, o texto – e suas condições de produção como unidade de análise, isto é, da análise fonética, ortográfica, lógica ou gramatical, deslocarmos o enfoque para a questão da constituição do sentido e perguntarmos: como a criança se colocou nesse espaço de interlocução? Que posição ela assumiu para escrever o que escreveu? - vamos perceber indicadores de uma intensa atividade mental, cognitiva, discursiva, que revelam uma dialogia, que revelam a elaboração da relação pensamento/linguagem no processo da escritura.

A relação entre o que queria comunicar com o que deixou registrado foi de grande sucesso. A escrita é perfeitamente compreensível. Em relação à correção, a proposta era atender ao aluno individualmente, fazendo-o pensar sobre a escrita.

Longe de nos aferrarmos ao que podemos ou não corrigir, ver uma estudante de 1° ano fazer um registro de um filme, utilizando ainda outro gênero textual (tirinhas) em seu registro, nos aponta para o despertar da escola para temáticas e escritas livres que abarcam um universo sempre diverso e nem sempre acessável pelo professor.

No Texto 2, a aluna faz um relato sobre o passeio ao Planetário em seu portfólio.

Figura 3: Texto 2

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do Texto 2:

“Registro do passeio ao Planetário

No dia 10/10/2019, a gente foi para um passeio do Planetário foi muito legal

Teve um tablete gigante e uma cápsula e uma roupa de astronauta e uma balança. Também tinha filme e os planetas. Foi muito legal.

A gente lanchou e foi para o parquinho depois do lanche mais não deu porque chuveu e o parquinho ficou molhado. Por isso que não deu e todo mundo ficou triste, menos as mães.

Mais foi legal mesmo assim.”

Ao ler o Texto 2, percebemos que a aluna gostou do passeio e que destacou algumas coisas que viu por lá, porém percebemos que a espera maior era pelo parquinho do Planetário, mas infelizmente choveu e as crianças não conseguiram brincar. Ela ainda relata que todos ficaram tristes, menos as mães, que já queriam ir embora. É possível observar o olhar da aluna sobre os atores que estavam no passeio: colegas e responsáveis; enquanto o primeiro grupo se frustrou pela expectativa criada, o segundo grupo queria ir embora mais cedo para suas casas e seus trabalhos. De acordo com Castro (2011, p. 139),

diferentemente da autoria, a autorização está ligada a ações como determinar, permitir, as quais, por sua vez, definem quem pode praticar algum ato ou exercer determinado direito. Ao arrogar exclusivamente parasi o direito de conceder autorização para que a escrita exista em seus domínios, a escola não só regula a distribuição dos discursos, como também institui práticas de escrita que separam os sujeitos a partir de poderes assimetricamente constituídos.

No limite, essas práticas afastam a escrita de seus potenciais constituidores, em nome de um exercício de imitação de modelos e de atendimento à norma culta da língua.

Tecendo um diálogo com Castro (2011), é de suma importância falar sobre a autorização. A criança é livre e tem direito de escrever o que gosta, o que lhe faz sentido. Como já foi dito anteriormente, o desafio pedagógico foi sempre tornar a classe escritora, incentivar para que a comunicação fosse estabelecida, independentes e a escrita estava atendendo aos padrões da língua.

No texto das alunas, percebe-se falta de pontuação, ou seja, uma escrita ainda fora dos padrões convencionais gramaticais e de concordância. No entanto, nada disso impediu o leitor (no caso, a professora da turma) de entender a mensagem escrita. Esses textos mostram marcas de escuta e a liberdade de dizer/escrever o que deseja, mesmo que seja para mostrar que percebeu que as mães não estavam com tanta disposição para o passeio ser mais longo.

O Texto 3 é parte da avaliação escrita enviada pela SME/RJ. A única questão da prova traz uma tirinha com três quadrinhos que indicam início, meio e fim, sobre a qual as crianças devem escrever uma história com lógica. Podemos ver uma menina mexendo na terra, o que sugere que semeou. No quadro seguinte, ela usa um regador para molhar e no último já vê flores e sorri.

Figura 4: Texto 3

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do Texto 3:

“A menina e as plantas

Meu nome é Vhitória, eu moro na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Eu vi um vaso sem planta e eu pensei: “Bom, esse vaso está vazio! É melhor eu plantar rosas [...] – Já sei! Vou pegar as sementes de rosas!” – Eu disse. Então, peguei essas sementes e fiz um buraquinho com a minha pá para colocar as sementes dentro da terra.

No dia seguinte reguei a planta às 11:50. Meu pai me chamou para ver o tempero do almoço dele: o Balanço Geral RJ com o jornalista Tino Jr.

Quando terminei de regar a planta atendi o chamado do meu pai.

Já chegou 15:00, hora da novela Bela a feia. Vi muitas rosas e cantei: “Gira, gira rosa, gira tão formosa, balança, balança caímos no chão”. Essa é a minha história, mas espera, você estaria perguntando o “porquê” de estar passando Balanço Geral RJ, só tenho um motivo: eu não tinha TV a cabo.

Fim.”

Na escrita do aluno, percebe-se claramente que a criança traz um fato do cotidiano que gostaria de relatar: o Balanço Geral RJ. O programa de noticiário é o “tempero” do almoço do pai, que não mora na mesma casa que ele e ele ressalta, ao fim do texto, que o leitor deve estar se perguntando o porquê de ele assistir ao programa. A resposta é prontamente dada: ele não tinha TV a cabo e outras opções de canais. De acordo com Smolka (2012, p. 109),

Uma análise, então, dos processos e das circunstâncias de produção dos textos pode revelar, além de condições do cotidiano da criança, aspectos de sua atividade mental, discursiva, bem como a relação que ela vai desenvolvendo com a própria escrita – para que e como ela pode usar (e ampliar a utilização de) esta forma de linguagem.

Outros aspectos significativos são a música e o jogo de idas e vindas no texto, que mostram que o aluno não está querendo escrever sobre outras coisas, nesse caso escrever sobre o que vai acontecendo em sua vida. Esses aspectos reforçam que ele queria escrever sobre o que conhece, usando marcas autorais e usando como estratégia a oportunidade de escrever a seu favor, encontrando uma motivação própria.

Percebe-se que o aluno já conquistou as noções de pontuação e as exibe, orgulhoso, em várias partes do texto. Ele conseguiu extrair da tirinha: vivências cotidianas, conteúdo de Ciências sobre plantações, repertório musical e rimas, alinhado à temática. Ainda buscou uma interlocução com o leitor do texto. Segundo Castro (2008), a autoria como condição nas produções de texto é uma atitude do escrevente. Sobre ela, interessam três traços:

(a) haver motivação própria por parte de quem escreve, ainda que esta motivação possa ter sido despertada/alimentada por provocações vindas de agentes externos; (b) haver liberdade para que o autor tome decisões relativas aos textos, mesmo que em diálogo com orientações determinadas de fora; e (c) o autor assumir publicamente o texto como seu, responsabilizando-se por ele perante os demais interlocutores sociais (Castro, 2008, p. 3).

Desse modo, os três traços trazidos por Castro (2008) estão claramente notificados na produção textual. A criança, dentro do que foi sugerido pela SME/RJ, teve uma motivação autoral e a incluiu dentro da história. Apesar dos padrões exigidos na correção, houve liberdade para que escrevesse do seu jeito, até mesmo ultrapassando os limites de linhas da folha. Por último, o texto carrega marcas vivenciadas pela criança, reflete segurança e autonomia presentes no processo de escrita diária do portfólio do estudante.

Ao observar os textos do portfólio e os textos da prova escrita da SME/RJ, pode-se notar que, apesar de as propostas não dialogarem entre si, os alunos escrevem de forma muito parecida, trazendo os três traços de autoria definidos por Castro (2008) e imprimindo seus discursos no texto.

A autorização defendida por Castro (2011) e seu impacto na escrita dos estudantes é percebida em toda a produção dos alunos. Além da oralidade, característica da sala de aula, os alunos conseguem escrever aquilo que os emociona, incomoda e está na vida cotidiana deles. Portanto, foi autorizado desde sempre que revelem seus traços de autoria e criem estratégias para ultrapassar os limites propostos nas atividades diárias em sala de aula. Sendo assim, a segurança em ser lido e ouvido sem julgamentos e punições, por estarem aprimorando a escrita e possuírem ainda equívocos, omissões, redundâncias gramaticais, de pontuação e ortográficas, proporciona uma experiência escrita impregnada de sentidos, vivências e autoria. Castro (2011, p. 139) diz que

a desautorização a que estão submetidos constantemente os estudantes em sua formação básica atinge fundamentalmente os aspectos mais flagrantes da subjetividade: sentimentos, posições ideológicas, elaborações próprias a partir de experiências pessoais. Exceto por algum espaço de criatividade que a escola lhes concede durante a educação infantil e o início do ensino fundamental, os estudantes da escola básica recebem um crescente número de orientações no sentido de que, em sua escrita, evitem manifestar o que sentem e pensam, embora haja comandos formais nas provas que, aparentemente, solicitam isso.

Concordamos com o autor e consideramos que, mesmo tendo que escrever um texto com uma proposta bastante limitada, as crianças se sentem livres para imprimir suas marcas de autoria no texto. Os sentimentos, posições ideológicas e as experiências que transitam no currículo oculto vencem a barreira da padronização das tirinhas e transbordam a realidade vivenciada na prática pedagógica diária da turma.

A seguir, analisamos duas produções textuais que fazem parte do portfólio de escrita das crianças. Veremos que elas estão autorizadas a dar suas opiniões, que nem sempre são as esperadas em provas convencionais. Em geral, elas pouco se importam o que o aluno quer dizer, mas quer avaliar a escrita descolada de sentidos.

O contexto das escritas seguintes foi a semana do aniversário da escola. Com o objetivo de não padronizar a escrita, a proposta foi: fechar os olhos, pensar na escola e escrever o que viesse à cabeça. A primeira aluna, no Texto 4, lembrou sobre seu primeiro dia de aula e sobre o desejo de seu pai que estudasse em uma escola “particular”. Na visão do responsável, a escola seria melhor para que a filha fizesse no futuro uma boa faculdade.

Figura 5: Texto 4

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do Texto 4:

“Minha escola:

No primeiro dia de aula não me lembro se chorei, mas acho que não. Na (nome da escola) tem os melhores professores, mas se você ficar com a tia (nome da professora) você vai ter muita sorte. Mas vamos para aescola. Essa escola é muito legal, tem passeios, festas e muita diversão.

Eu amo, amo, amo e amo!

Essa escola meu pai queria que eu estudasse em outra escola. Eu até que entendo o lado dele de eu estudar numa escola muito boa pra eu fazer uma boa faculdade, mas eu entrei na (nome da escola) e não vou sair.”

Ao ler o texto da criança, podemos perceber os discursos familiares que ela carrega consigo. Nesse caso, a ideia que para passar no vestibular é preciso estar em uma escola particular “muito boa” apresenta um preconceito com a escola pública, como se a pública fosse um espaço com menor qualidade. Esse discurso é reproduzido em várias camadas de nossa sociedade. Percebemos também a vontade da aluna diante da fala do pai, “eu entrei na (nome da escola) e não vou sair!”, assim como a sua análise sobre a escola, professores e o carinho pela sua professora em especial.

Cabe ressaltar também a noção de vestibular e faculdade em uma menina de 6 anos, que desmente o que em geral se pensa de uma menina preta de comunidade e com pais sem escolarização. Também, por ela, vemos a importância que os responsáveis dão para a Educação, pois existe uma expectativa familiar para que a criança não pare de estudar e garanta seu futuro pela Educação Superior. Esse texto revela que as questões vividas pelas crianças estão muito além das retratadas na maioria das temáticas das avaliações formais recebidas pela escola.

Quanto à estrutura, pode-se analisar que a criança já está usando diversos recursos exigidos nos critérios de avaliação da SME/RJ. A escrita acontece de forma segura, basta olhar a imagem e ver um texto sem rasuras, sem uso de borracha ou outras marcas de correção. A folha do portfólio não mostra apenas um texto organizado, diante dos padrões linguísticos de uma produção textual, mas de uma escrita sem maiores preocupações com acertos e erros, tendo como único e exclusivo objetivo a comunicação escrita e a interação com o leitor.

Além do que foi escrito, vemos o desenho de uma menina negra, arrumada para a escola com sua mochila, uma referência à sua vida de estudante, o que de forma delicada e linda completa a mensagem que passa sobre a escola.

No Texto 5, sobre a mesma temática do texto anterior, outra criança lembrou de sua ida para a escola e detalha a sua rotina.

Figura 6: Texto 5

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do Texto 5:

“Minha escola:

Era uma vez um dia ensolarado. Era dia de ir para escola eu não queria.

Estava muito cansada, mas tem que ir, fazer o que? Vou me arrumar, tomar café e escovar os dentes, pegar a mochila e encher minha garrafinha de água.

E fui para escola cansada, mas tinha que ir. No caminho fui comendo pão de queijo e com Guaravitamuito bom e também pelo menos aprendo outras coisas que eu ainda não sei. Foi muito legal e muito divertido.”

As duas produções textuais destacadas caminham para a discursividade e autoria das crianças como sujeitos autorizados a escrever sobre o que emociona, sobre sua rotina e até sobre suas queixas.

No Texto 5, a aluna relata a manhã de sono e cansaço, sem desejo de ir para a escola. Ela encontra na escrita um lugar de fala e desabafo, “mas tem que ir, fazer o que?”. Ou seja, a proposta da professora em falar sobre a escola de forma autoral e livre foi uma saída fácil e cada sujeito se apropriou da falar sobre o que emociona, incomoda e está em sua vida atual. O texto traz aspectos muito peculiares da sua organização familiar e da sua rotina.

Ela narra aspectos de sua higiene pessoal, o cuidado em levar a garrafinha d’água cheia, o que comeu e bebeu no caminho, ou seja, as marcas positivas do dia após a vontade de não ir para a escola. Ela expressa, no texto, um ritual bem feito para adentrar em um novo espaço de novas aprendizagens: a escola. A exigência “chata” de ir para a escola é ressignificada ao longo do dia, quando ela diz “pelo menos aprendo outras coisas que eu ainda não sei. Foi muito legal e muito divertido”. Ou seja, o dia começou de uma forma e a escola conseguiu superar as expectativas ruins sobre o dia.

As duas útimas produções que apresentamos a seguir são provas escritas da SME/RJ. É importante analisá-las à luz dos estudos de Castro (2011) e Smolka (2012) e refletir sobre a perspectiva autoral, do drible na desautorização, as estratégias e da liberdade para escrever o que deseja.

A proposta do Texto 6, como outra já analisada aqui, apresenta três quadros em que vemos uma cachorro encontrando uma flor, admirando a flor e a guardando em uma caixa. No caso, o animal tem comportamento humano. É importante destacar que, diferentemente dos autores dos textos anteriores, o aluno do Texto 6 foi uma criança que apresentou muitas barreiras na leitura e na escrita durante todo o 1° ano do Ensino Fundamental. No 2° ano, ele se sentiu mais seguro e essa produção textual foi uma grata surpresa.

Figura 7: Texto 6

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do Texto 6:

“A caixa do Tomas.

Tomás encontrou uma florzinha no chão. E o Geraldo e o Tomás

  1. Vemos sim! - O Geraldo! Olha que linda flor!
  2. Verdade tão linda Vamos sim!
  3. O Geraldo O que quantas horas? E nove e três. Vamos regar você. Uma hora depois… “Á,ÁÁÁ”

Não pode ser! Ela morreu! TATATATATATA

Temos o funeral para planta. Adeus, adeus planta! Adeus planta! Não chore amigo. Eu sei que ela era preciosa. Então fim.”

No momento da correção individual do Texto 6, o aluno foi chamado para explicar as partes que a professora não havia compreendido. Foi perguntado o porque do “TA TA TA TA TA TA” e ele prontamente respondeu: - “Ué, a planta não morreu? Então, tá tocando a música tãtãtãtãtãtã” (nesse momento canta a marcha fúnebre). Mesmo percebendo que ainda está se apropriando do sistema alfabético da escrita convencional, podemos analisar que está prestando atenção à pontuação e usando-a como sabe, sem uma obrigação ortográfica rígida.

Vemos que traz o recurso da música como trilha sonora da história que ele, de forma autoral, criou para a tirinha solicitada. Desse modo, conforme alerta Castro (2011) é importante valorizar estratégias que “permitam aos estudantes a partir de suas experiências e lançando mão de suas capacidades como usuários regulares da Língua Portuguesa – a identificação e a seleção de recursos para a construção de seus textos” (Castro, 2011, p. 144-145).

A tirinha apenas mostrava um cachorro encontrando uma flor e guardando-a na caixa. O aluno deu um título, nome para as personagens, criou um enredo com diálogo, um momento de tensão (a morte da planta) e no fim, o enterro da flor e a consolação ao amigo. Pode-se analisar quanta informação pode ser extraída e analisada a favor do desenvolvimento pedagógico do aluno, para além das prescrições avaliativas fechadas de um texto.

A última produção textual que apresentamos, também da prova escrita da SME/RJ, apresenta três quadros, nos quais vemos um cachorro sujo. Na sequência, o animal tomando banho em uma bacia e no último quadro ele aparece limpo.

Figura 8: Texto 7

Fonte: Arquivo das autoras.

Transcrição do Texto 7:

“O Cão limpo.

Meu nome é Luca, moro em Brumadinho, Minas Gerais.

No início de 2019, fui ter que ir para Niterói porque a barragem da Vale se rompeu. Meus donos me levaram todo sujo de lama! Lá, me deram banho e fiquei limpo.

Depois do banho, tiramos fotos. Essa é a minha história. Fim.”

No Texto 7, percebemos reflexões sobre temas muito profundos, vistos pela criança nos noticiários daTV.

As reportagens sobre o rompimento das barragens em Brumadinho afetaram tanto o aluno, como sujeito em interação consigo mesmo, com o  outro e com o mundo ao seu redor, que ao ver o cachorrinho sujo de lama, faz a conexão com o acontecimento noticiado e se sente autorizado para incluir o tema em sua escrita autoral.

O conhecimento de mundo trazido na produção escrita vai muito além de visualizar uma tirinha e dar sentido ao que aparece nela pelo texto. Uma simples tirinha, limitada ao aparecimento de um cachorro sujo de lama, o banho e sua limpeza, não impediu a escrita de um tema relevante da sociedade, naquele momento atual.

Percebemos que ele estava tão envolvido com a temática que seria limitado falar só do que era proposto. Ele tinha uma história além do que era proposto visualmente nas tirinhas.

De acordo com Smolka (2012), esses textos trazem aspectos que nenhum livro didático ou cartilha pode considerar em sua confecção. A escrita foge dos padrões e rompe com a racionalidade do material para que o aluno possa escrever sobre o que deseja. Os textos carregam sentidos e significados reais e legítimos. Em contrapartida, as tirinhas enquadram o aluno a escrever sobre o que a avaliação deseja, mas do modo de cada um, pois todos somos autores e temos sobre o que falar. Esses alunos provam a possibilidade e a ousadia de uma escrita mais criativa e autoral.

Considerações finais

As produções escritas analisadas neste artigo revelam como é desafiador avaliar fora do contexto de produção. As crianças trazem consigo uma bagagem histórica, social e cultural, recheada de significados, vivências e emoções que desejam comunicar. Além de ocuparmos, como professores, a posição de leitores de textos, precisamos avaliá-los dentro de padrões que nem sempre levam em conta o contexto em de suas produções.

O uso do portfólio assumiu um papel principal na avaliação processual e qualitativa em uma prática de alfabetização que permite a autoria dos estudantes. Porém, ao analisar as produções textuais das crianças, realizadas no decorrer do processo em sala e nas avaliações oficiais, consideramos que as crianças conseguem fazer conexões, criando estratégias para imprimir suas vivências e marcas autorais no texto. As análises deixam clara que a motivação da escrita não era a proposta solicitada, mas a liberdade em escrever, o desejo e a segurança no processo, sem o medo do erro ou de punição.

Autorizar a escrita é permitir que, mesmo em situações mais limitadas de escrita, o estudante possa criar estratégias para subverter a padronização e escrever com autoria. É preciso instigar e valorizar o protagonismo infantil como um saber legítimo e genuíno.

Consideramos fundamental fortalecer as discussões docentes sobre as avaliações em larga escala e como contextualizá-las à prática dentro de sala de aula, de modo que os professores possam também participar de processos de formação continuada, de confecção do material e tenham autonomia na correção, diante da realidade vivida com a turma.

 

Referências

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CASTRO, Marcelo M. C. e. Autoria e adesão ideológica: considerações sobre o percurso doensino da produção textual na educação básica. In: II SEMANA DE INTEGRAÇÃO ACADÊMICA DO CFCH. Anais [...]. Rio de Janeiro, CFCH/UFRJ, 2008.

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SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. 13ª ed. São Paulo: Cortez, 2012.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Publicado em 17 de outubro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

ARAUJO, Brunele Almeida de; AMORIM, Rejane Maria de Almeida. Avaliações escritas no ciclo de alfabetização e as marcas de autoria. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 40, 17 de outubro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/40/avaliacoes-escritas-no-ciclo-de-alfabetizacao-e-as-marcas-de-autoria

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