A compreensão leitora e o processo inferencial na construção de sentidos do texto lacunado: um estudo de caso

José Domingos de Jesus Santos

Graduado em Letras (UFS), especialista em Linguagens e suas Tecnologias e em Currículo e Prática Docente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (UFPI), pós-graduando em Língua Portuguesa: Teorias e Práticas de Ensino de Leitura e Produção de Texto (UFMG) e mestrando em Letras - Estudos literários (PPGL/UFS), docente do Unifaveni

A leitura, segundo Marcuschi, “se dá como um jogo, com avanço de predições, recuos para correções, não se faz linearmente, progride em pequenos blocos ou fatias e não produz compreensões definitivas” (Marcuschi, 1985, p. 3). Sua efetividade, porém, depende de uma série de fatores que vão desde a decodificação das palavras até a compreensão do texto por parte do leitor.

A compreensão do que é lido exige trabalho, necessita da identificação das informações e passa pelos processos de inferências de sentidos. A priori, o estudo de caso considerou que algumas motivações para o ato de inferir sentidos dependem do conhecimento do leitor a respeito do gênero que ele lê, de fenômenos linguísticos e psicológicos. Desse modo, as informações contidas na mente do leitor desempenham papel fundamental no tratamento das associações e são responsáveis pela atribuição do sentido ao texto, o que revela indícios da compreensão leitora. A posteriori, as demais causas que contribuem para o processo de compreensão do texto e para avaliar a competência leitora dos estudantes/participantes foram descobertas e reveladas no decorrer do estudo.

Referencial teórico

Fundamentam o cabedal teórico desta pesquisa os estudos de Kleiman (1992 apud Oliveira [2014?]) acerca da compreensão leitora, os saberes de Marcuschi (1985 apud Oliveira [2014?]) a respeito de processos inferenciais, além dos conhecimentos de outros estudiosos da área da leitura que defendem que a habilidade de realizar inferências está ligada à compreensão leitora.

Nessa lógica, teço, nesta seção, algumas considerações iniciais sobre o que pensa boa parte dos autores que compõem o marco teórico deste estudo. No que se refere ao processo inferencial, Marcuschi apregoa que a inferência consiste numa operação cognitiva que possibilita ao leitor elaborar novas proposições a partir de outras já fornecidas; contudo, as proposições dadas e as inferidas devem manter relações passivas de identificação (Marcuschi, 1985 apud Oliveira [2014?]).

Consoante a Kleiman (1992 apud Oliveira [2014?]), além de favorecer a organização das relações de significado dentro do texto, o processo inferencial permite destacar o entrelaçamento ou a teia de significados que o leitor é capaz de estabelecer dentro do horizonte de possibilidades que é o texto. Essas relações não são aleatórias; se originam no encontro-confronto de dois posicionamentos diferentes em situação de leitura: o do autor e o do leitor.

Dell’Isola (2000 apud Oliveira [2014?]), por sua vez, revela que a criação de inferências é um processo essencial no ato da leitura, já que nenhum texto contempla todas as informações de que o leitor necessita para compreendê-lo. É necessário que o leitor complete o sentido do texto com informações que não aparecem nele. Dessa forma, diferente da maioria dos leitores que leem superficialmente, distanciando-se do que Marcuschi (1985) define como leitor maduro – aquele que utiliza de forma adequada as informações disponíveis no texto, relacionando-as aos seus saberes prévios –, um leitor maduro é aquele que consegue construir uma representação mental do significado de um texto, estabelecer relações entre suas partes e associá-las aos seus conhecimentos prévios. Em outras palavras, um leitor maduro pode fazer diferentes tipos de inferências, inclusive inferências complexas.

Dessa maneira, compreende-se que o processo inferencial percorrido para chegar ao sentido do texto contempla as informações externas ao texto e acontece quando o leitor recorre à semântica para complementar o sentido ou mesmo quando utiliza o próprio conhecimento de mundo para preencher as “lacunas” textuais. Assim, ele pode tirar conclusões a partir de pressupostos, adicionar dados e articular as palavras deduzidas.

Acerca do instrumento utilizado para fins de investigação nessa pesquisa, Santos, Boruchovitch e Oliveira (2009 apudSpineli, 2010) apontam que o teste Cloze tem sido “um instrumento de diagnóstico da compreensão em leitura, visto que apresenta muitas vantagens de utilização”. Além disso, “a técnica pode ser empregada como recurso útil, tanto para identificar eventuais dificuldades em relação à leitura como enquanto instrumento de aprimoramento da compreensão textual”. Sendo assim, a aplicação da técnica do teste Cloze teve em vista um parâmetro de três níveis de leitura.

O primeiro consiste em acertar até 44% do total, por isso classificado como frustrante, ou seja, nesse nível, o leitor não consegue utilizar tantas informações do que leu. O segundo, por sua vez, equivale a acertar de 44% a 57%. O leitor desse nível demonstra leitura suficiente, no entanto ainda necessita de ajuda. Acima de 57%, são leitores do nível três. Avaliados como independentes, porque possuem autonomia tanto na leitura quanto na compreensão.

Metodologia

A presente pesquisa se configura como de campo e foi realizada em 2019 na condição de estudante do curso de Licenciatura Plena em Letras - Língua Portuguesa da Universidade Federal de Sergipe e como bolsista Capes do Programa Residência Pedagógica. Na intenção de investigar como ocorre o processo de inferências de sentidos e de avaliar a compreensão leitora dos alunos participantes, utilizei um trecho adaptado do conto O defunto vivo, de Antônio Henrique Weitzel. Por meio do material fotocopiado, trabalhamos o Clozelexical em uma turma de 8º ano composta por 16 alunos da rede regular de ensino da EMEF José Conrado de Araújo. A escolha por essa narrativa se deuem razão de ela contar com 147 palavras e apresentar 31 lacunas. Para isso, omiti os substantivos, no intuito de que os alunos/participantes respondessem com base nas marcas linguísticas ou a partir das construções sintáticas disponíveis no texto.

Inicialmente, houve a entrega do conto, a leitura apenas do enunciado e o esclarecimento de dúvidas sobre a realização da tarefa. Esse procedimento teve duração de aproximadamente cinco minutos. Em seguida, os estudantes preencheram as lacunas do teste Cloze, o que durou cerca de 35 minutos. Logo após, debatemos por volta de 20 minutos a respeito do texto trabalhado em sala de aula. Por fim, avaliei se os alunos conseguiram completar os espaços com a classe de palavra solicitada – substantivo. A aplicação do experimento se deu de modo coletivo e não teve o propósito de definir uma resposta como correta, mas sim de verificar as possibilidades de termos que foram inferidos sem alterar o sentido da história.

Análise dos dados obtidos

Neste tópico, serão analisadas as respostas atribuídas ao teste Cloze. A princípio, os alunos leram e completaram os espaços em branco a partir de inferências que fizeram. Essa atividade foi realizada com o objetivo de avaliar as possibilidades de termos empregados comparando-os ao do texto original. Para isso, levei em consideração quatro pontos: palavra esperada, palavra aceitável, palavra inaceitável e os espaços que não foram preenchidos.

A análise foi materializada em forma de tabela, comprovando pela porcentagem a quantidade de vezes que a palavra esperada foi respondida. Os resultados foram computados. A partir dos percentuais de corte, classificaram-se em três níveis: insuficiente (menos de 44%), regular (entre 44% e 56%) e satisfatório (superior a 56%). A aplicação do teste possibilitou examinar o repertório linguístico dos estudantes, dado que eles inferiram com base nas estruturas sintáticas, acrescentando substantivos que fazem parte da bagagem sociocognitiva, de maneira a não se distanciar do sentido da história.

Substantivos como igreja, cemitério e fantasma, inferidos sequencialmente nas lacunas 4, 5 e 6, podem ter sido pressupostos por conta do termo caixão, já que no texto que foi o corpus da análise eles fazem parte do mesmo campo semântico. Embora não tenham sido esperados na pesquisa, foram encaixados entre as lacunas, porque os participantes inferiram com base nas pistas linguísticas fornecidas no próprio texto, ao passo que, na lacuna 28, todos inferiram o substantivo Deus, ou seja, o substantivo esperado. Esse espaço só seria preenchido com outro substantivo se a referida expressão, que na história indica tumulto quando o caroneiro saiu de dentro do caixão assustando as pessoas, não fizesse parte do léxico mental do leitor.

O Quadro 1 apresenta o número das lacunas com as palavras esperadas que fossem respondidas. A Tabela 1, por outro lado, revela o percentual dos substantivos inferidos correspondentes ao número das palavras esperadas.

Quadro 1: Palavras esperadas

Número da lacuna

Palavra esperada

01

Homem

02

Automóvel

03

Caixão

04

Cidade

05

Caminho

06

Rapaz

07

Carona

08

Motorista

09

Caixão

10

Caroneiro

11

Chuva

12

Caixão

13

Balanço

14

Sono

15

Caminho

16

Motorista

17

Pessoas

18

Carona

19

Caminhão

20

Cheio

21

Gente

22

Caminhão

23

Buraco

24

Estrada

25

Dorminhoco

26

Tampa

27

Caixão

28

Deus

29

Pessoas

30

Caminhão

31

Gente

Fonte: Autoria própria.

Tabela 1: Percentual dos substantivos inferidos pela palavra esperada

Número da lacuna

Palavra esperada

Percentual de ocorrência da palavra esperada

01

Homem

62,5%

02

Automóvel

6,25%

03

Caixão

62,5%

04

Cidade

18,75%

05

Caminho

18,75%

06

Rapaz

25%

07

Carona

50%

08

Motorista

18,75%

09

Caixão

43,75%

10

Caroneiro

6,25%

11

Chuva

50%

12

Caixão

56, 25%

13

Balanço

56, 25%

14

Sono

62,5%

15

Caminho

43,75%

16

Motorista

37,5%

17

Pessoas

56,25%

18

Carona

43,75%

19

Caminhão

50%

20

Cheia

43, 75%

21

Gente

68,75%

22

Caminhão

25%

23

Buraco

37,5%

24

Estrada

37,5%

25

Dorminhoco

12,5%

26

Tampa

87,5%

27

Caixão

81,25%

28

Deus

100%

29

Pessoas

93, 75%

30

Caminhão

37,5%

31

Gente

62,5%

Com base nesses dados, foi possível verificar que não houve lacunas deixadas em branco. Além disso, vimos que não ocorreu o uso inadequado da classe gramatical trabalhada – o que é muito produtivo, pois indica que a turma relacionou conhecimentos linguísticos e gramaticais com outros. Para completar as lacunas, os alunos precisaram fazer retomadas em razão de estarem sendo guiados para lerem o texto inteiro. Assim, o processo inferencial na construção de sentidos do texto lacunado se deu de forma satisfatória durante o processamento da leitura.

Considerações finais

A experiência de aplicar o teste Cloze como ferramenta para diagnosticar o repertório linguístico dos alunos e as estratégias de leitura empregadas por eles para inferir palavras evidenciou que o nível de leitura da turma é compatível com a escolaridade; no entanto, ainda é preciso mediação para que eles encontrem, nas estratégias, meios de aperfeiçoar a compreensão do que leem.

Referências

COSCARELLI, C. V. Reflexões sobre as inferências. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA, 6., 2002, Belo Horizonte. Anais […]. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 1-15.

KINTSCH, W; RAWSON, K. A Compreensão. In: SNOWLING, M.; HULME, C. (org.). A ciência da leitura. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 227-244.

KLEIMAN, A. B. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 2ª ed. Campinas: Pontes, 1992.

KLEIMAN. A. B. Oficina de leitura: teoria e prática. 9ª ed. Campinas: Pontes, 2002.

KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2008.

MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural cognitivo. Teoria e Prática, ano 4, nº 5, p. 3-16, jun. 1985.

MARTINS, M. H. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2012.

OLIVEIRA, F. J. D. de. O processo inferencial na compreensão de textos escritos entre estudantes concluintes do Ensino Fundamental. Gelne, [2014?]. Disponível em: http://www.gelne.com.br/arquivos/anais/gelne-2014/anexos/1185.pdf. Acesso em: 5 out. 2023.

OLIVEIRA, K. et al. A técnica de Cloze na avaliação da compreensão em leitura. In: SANTOS, A. A. A.; BORUCHOVITCH, E.; OLIVEIRA, K. L. Cloze: um instrumento de diagnóstico e intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. p. 47-78.

SANTOS, A. A. A.; BORUCHOVITCH, E.; OLIVEIRA, K. L. Cloze: um instrumento de diagnóstico e Intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

SPINELI, G. de F. Diagnóstico e intervenção pelo Cloze. Avaliação Psicológica, Porto Alegre, v. 9, nº 2, p. 337-339, agosto de 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/avp/v9n2/v9n2a18.pdf. Acesso em: 5 out. 2023.

WEITZEL, A. H. Folclore literário e linguístico. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 1995.

Publicado em 07 de novembro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SANTOS, José Domingos de Jesus. A compreensão leitora e o processo inferencial na construção de sentidos do texto lacunado: um estudo de caso. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 43, 7 de novembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/43/a-compreensao-leitora-e-o-processo-inferencial-na-construcao-de-sentidos-do-texto-lacunado-um-estudo-de-caso

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