Como se desenvolve o humano?

Raimundo Nonato Santos de Sousa

Graduado em História (UEMA), especialista em Aprendizagem, Ensino e Tecnologia (Censupeg) e pós-graduando em Gestão em Educação: Supervisão e Orientação (UERGS)

Esta entrevista é uma das atividades desenvolvidas no estágio de Supervisão Escolar executado na Escolinha Padre Antonio Ferraris, instituição pública de ensino localizada no interior do Estado do Maranhão, no município de Aldeias Altas, ao longo do segundo semestre de 2022. A temática privilegiada foi a medicalização da aprendizagem e do comportamento no contexto escolar. Contando com a orientação da professora doutora Tatiana Luiza Rech, o estágio integra o conjunto de atividades do curso de pós-graduação lato sensu em Gestão em Educação: Supervisão e Orientação, ofertado pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).

A entrevista tratada neste texto foi realizada no dia 11 de novembro de 2022 com Maria do Perpétuo Socorro Gonçalves Andrade, ou, como ela prefere se identificar, Socorro Andrade, psicóloga que compõe a equipe multiprofissional da Secretaria Municipal de Educação, Ciências, Tecnologia e Inovação (Semecti) de Aldeias Altas/MA. Nessa entrevista, foi discutido um assunto que, se não é, deveria ser do interesse de todos os professores: o desenvolvimento humano – tema que costuma gerar muitas dúvidas, principalmente para os(as) docentes que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A seguir está a transcrição da entrevista.

Raimundo Sousa: Bom dia, Socorro Andrade. Muito obrigado pela disponibilidade e disposição para colaborar com a discussão desse tema, desenvolvimento humano.

Socorro Andrade: Bom dia, professor Raimundo Sousa. Realmente, esse é um assunto muito importante e de grande interesse para os professores, porque pode contribuir com a melhoria do desenvolvimento dos alunos. Agradeço pelo convite. É um prazer contribuir.

RS: Geralmente, nos cursos de Licenciatura, esse assunto é discutido, porém de forma abreviada, diante de todo o conteúdo dos componentes curriculares do semestre. Então, não é raro um(a) licenciado(a), recém-formado(a) ou com muitos anos de formado(a) vez ou outra se perguntar: O que é mesmo o desenvolvimento humano? Socorro, nos ajude. O que podemos entender por desenvolvimento humano?

SA: Como você falou, essa é uma temática muito abreviada até mesmo na graduação de Psicologia. Eu tive uma disciplina que abordou muito pouco sobre isso. O desenvolvimento humano nada mais é que os processos de mudanças que nós, seres humanos, enfrentamos ao longo da vida, iniciando-se no período pré-natal e indo até a nossa vida adulta tardia, quando já somos idosos. Portanto, trata-se das fases que nós vivemos ao longo desses anos. Os processos de mudanças que o caracterizam englobam três domínios que estão relacionados: o físico, o cognitivo e o psicossocial.

RS: Na Educação, assim como na Psicologia, nós entendemos que cada sujeito, independente da idade, possui uma identidade e, consequentemente, uma subjetividade. Logo, as pessoas são diferentes umas das outras. Fico pensando no impacto dessas diferenças no desenvolvimento. Por isso, pergunto: é mesmo possível falar em desenvolvimento normal, sabendo que todas as pessoas são diferentes?

SA: Do ponto de vista científico, a resposta é sim. Os cientistas estudam de maneira global as diversas fases que todo ser humano atravessa ao longo da vida. Eles analisam a forma geral como as pessoas se desenvolvem e a partir daí definem cada fase do desenvolvimento. Se a pessoa estiver dentro da fase esperada para a idade, considera-se o desenvolvimento dela como normal.

RS: Então, existem princípios gerais que orientam a compreensão do desenvolvimento humano. Considero importante destacar que esses princípios gerais não são nem podem ser entendidos como regras fixas. Inclusive, na Educação costuma-se falar muito em autores como Jean Piaget, que afirmam que o desenvolvimento infantil se processa por estágios bem definidos, com idades que demarcam cada fase.

SA: Verdade. E também é importante, professor, entender que não obrigatoriamente todas as pessoas vão seguir esse mesmo trajeto.

RS: Isso me faz lembrar do pediatra Saul Cypel, que fala sobre as variações de normalidade no processo de desenvolvimento humano. Ou seja, as pessoas não vão se desenvolver no mesmo ritmo, como a senhora destacou. Mas é realmente esperado que alguns estágios estejam presentes no processo de desenvolvimento de todos. Agora, não é porque o João conseguiu alcançar determinada habilidade aos quatro anos de idade que devemos esperar que o Pedro faça o mesmo.

SA: Isso! Preocupante é quando há uma distância muito grande entre o que a criança faz e o que é esperado para a idade dela. Por exemplo: o que, geralmente, uma criança consegue aprender aos quatro anos, Maria só conseguiu aprender aos dez. Aqui já temos um sinal de alerta que precisa ser considerado.

RS: Perfeitamente. A proposta de formação continuada para os professores da escola onde o estágio foi realizado e na qual esta entrevista está sendo feita aborda também a importância de evitar os extremos. Nós não podemos nem defender que todas as pessoas vão se desenvolver no mesmo ritmo, no mesmo tempo e na mesma dinâmica, como também não podemos “fechar os olhos” para as grandes discrepâncias entre o que é esperado e o que é identificado na criança. Ou seja, não podemos cometer o erro de olhar para uma criança que está seguindo seu percurso normal de desenvolvimento e achar que ela tem alguma patologia, tampouco podemos ser negligentes por negar ajuda a uma criança que esteja precisando, seja na área física, cognitiva e/ou psicossocial.

SA: Concordo!

RS: O desenvolvimento humano é um dos processos elementares da vida e, assim como ela, sofre, ao mesmo tempo que produz, alterações por causa de fatores diversos. Sendo assim, senhora Socorro, quais fatores interferem no desenvolvimento humano?

SA: O nosso desenvolvimento é influenciado por vários fatores. Esses fatores atuam de forma integrada. Por exemplo, nossa maturação, a hereditariedade, as influências ambientais, as nossas vivências e os eventos que ocorrem na vida. Um influencia o outro, impactando nosso desenvolvimento. Inclusive, os fatores sociais também têm lugar aqui.

RS: Considerando ainda os fatores que interferem no desenvolvimento humano, como o contexto histórico-cultural influi neste processo de desenvolvimento humano?

SA: Eu diria que nossos princípios… Por exemplo, no Brasil existem regras sociais pautadas em certos princípios. Mas, em outro contexto histórico-cultural, a situação é diferente. Além disso, os jovens de hoje não se desenvolvem como os jovens de antigamente se desenvolviam, porque eles estão vivendo outro ambiente, outro tempo… Então as nossas vivências repercutem muito nas nossas vidas e no nosso desenvolvimento.

RS: Uma das grandes lições que eu aprendi durante minha graduação em História é que somos filhos do nosso tempo. E uma das grandes questões que a luta contra a medicalização coloca em pauta é a de que não somos apenas criaturas biológicas. A Biologia está presente em nós, evidentemente. Nossa vida se prende a ela. Mas a vida humana não se limita ao aspecto biológico. Além de criaturas biológicas, somos também criaturas culturais. A cultura é estrutural e estruturante no modo como nós organizamos nossas vidas e nossas visões de mundo…

SA: Verdade, professor! Um fator isolado não consegue explicar a nossa existência, mas o conjunto desses fatores, sim. A dimensão biológica não é a única existente, por isso ela deve ser vista em conjunto com as outras dimensões para que tenhamos a compreensão correta sobre a vida.

RS: Ainda sobre a influência do contexto histórico-cultural: quando olhamos para a ideia de infância, percebemos que ao longo do tempo as crianças nem sempre foram crianças. A ideia de infância que temos hoje tem sua origem no século XIX. Antes, a criança era vista como um adulto em miniatura, ou seja, como um adulto menor, de força menor…

SA: Realmente! Não existia esse destaque que hoje a criança recebe. Hoje, ela tem uma atenção muito especial na nossa sociedade e da cultura, sendo considerada como um sujeito de direitos!

RS: De fato, além de entender a criança como um sujeito histórico que está situado em um tempo e localizado em um espaço, carregando no seu corpo físico e simbólico as marcas desses tempo e espaço, precisamos enxergar a criança como um sujeito de direitos.

SA: Também sobre essa questão, professor, é importante falar sobre a influência da cultura familiar no desenvolvimento das crianças. Existem famílias que não estimulam o desenvolvimento cognitivo das crianças, especialmente no campo escolar, porque acreditam que, pelo fato de os pais não terem tido uma trajetória na Educação, elas [as crianças] não têm essa responsabilidade. “Ah, já que eu não consegui, não sou exemplo”, alguns pensam. A gente escuta muito isso.

RS: Isso ocorre mesmo, senhora Socorro… Talvez essa seja uma das razões do distanciamento das famílias em relação às escolas. Seguindo… Felizmente, nós saímos de um cenário pandêmico de níveis alarmantes que durou aproximadamente dois anos. Durante esse período, como medida de enfrentamento à transmissão do vírus da covid-19 (SARS-CoV-2), escolas foram fechadas e muitas crianças não tiveram a oportunidade de ter suas primeiras experiências na educação escolar em um estabelecimento de ensino. Pensando especificamente na pandemia da covid-19, como os eventos externos interferem no desenvolvimento humano das crianças?

SA: Ao responder essa pergunta, destaco o aspecto cognitivo. Nós sabemos que muitas crianças ficaram em casa e, junto com esse evento [pandemia], muitas dificuldades de aprendizagem surgiram. É o que estamos recebendo em grande quantidade na equipe multiprofissional da Semecti. A gente percebe que a questão não está ligada ao aspecto biológico, mas sim às consequências da pandemia e do período sem aulas presenciais. O tempo experienciado fora da escola, sem participar do processo educativo e sem interagir com os colegas, impactou muito em muitas crianças. Esses eventos externos têm realmente o poder de atrapalhar o desenvolvimento, porque interferem nos modos de vida. Isso afeta bastante o desenvolvimento cognitivo e o psicossocial. Como se isso não bastasse, ainda temos as perdas, que são outro fator que interfere muito no desenvolvimento das crianças. E o próprio medo de perder a mãe e o pai também… Além disso, existem casos de pais não alfabetizados ou com pouca escolaridade que não sabem ensinar a tarefa de casa para seus filhos. A gente ouve muitos relatos de pais e mães que estão nessa situação. E não poderia deixar de dizer que a exposição prolongada às telas, principalmente do celular, também compromete o processo de desenvolvimento humano das crianças. Infelizmente, nestes tempos de pandemia, muitas crianças passaram mais tempo diante das telas…

RS: Há pouco falamos sobre o impacto das diferenças no desenvolvimento humano. Com relação a isso, que diz muito sobre a subjetividade de todos e de cada um de nós, gostaria de saber o que faz com que uma pessoa seja única?

SA: Além da nossa personalidade, nossa forma de olhar para e responder aos eventos da vida diz muito sobre a nossa subjetividade. E nossas características físicas herdadas dos nossos pais também. Somos únicos para compreender o outro, a nós mesmos, a vida e o mundo. Ninguém compreende o mesmo evento da mesma maneira. Por exemplo: se fôssemos irmãos e perdêssemos nosso pai ou nossa mãe, nós iríamos responder a isso de modo muito particular. Um de nós poderia se queixar, reclamar por causa da perda, enquanto o outro poderia demonstrar gratidão pelas experiências que viveu ao lado da pessoa em vida. Em resumo, tudo isso nos torna únicos.

RS: À guisa de conclusão, além de agradecer à senhora pela importante contribuição, gostaria de encerrar esta entrevista destacando a sua opinião sobre o seguinte ponto que diz muito sobre a formação que está sendo desenvolvida com os professores da Escolinha Padre Antonio Ferraris: como a compreensão a respeito do desenvolvimento humano pode contribuir para uma experiência positiva, por parte dos alunos, na escola?

SA: Acredito que os professores, compreendendo melhor o desenvolvimento humano, poderão evitar comportamentos negativos em sala de aula como, por exemplo, lançar julgamentos desfavoráveis sobre os alunos por desconhecer como eles se desenvolvem. Isso me faz acreditar que essa formação é muito importante, principalmente para os alunos, porque os professores, diante do que for considerado, poderão se tornar mais compreensivos, não farão julgamentos e poderão ajudar seus estudantes, pautando suas ações no conhecimento sobre como se desenvolve o humano, estimulando cada um deles sem esquecer de levar em conta todas as dimensões da vida.

Publicado em 07 de novembro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SOUSA, Raimundo Nonato Santos de. Como se desenvolve o humano?. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23. nº 43, 7 de novembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/43/como-se-desenvolve-o-humano

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