Experiências com leitura e escrita no contexto da Educação Infantil
Debora Cristina da Silva Cruz Conceição
Professora de Educação Infantil da SME/RJ, mestranda em educação (UFF), pós-graduada em Administração e Supervisão Escolar (AVM), graduada em Pedagogia (UCAM), arte-educadora (Instituto de Artes Tear e Instituto Formae)
Este texto traz um recorte de vivências da minha trajetória como professora de Educação Infantil na Rede Municipal do Rio de Janeiro, atuando com uma turma de pré-escola I com 25 crianças, no ano de 2018, e seguindo com a mesma turma já na pré-escola II, em 2019, com 28 crianças. Esse recorte foi feito no período de abril de 2018 e abril de 2019. Nesse contexto, apresento como algumas situações dentro desse grupo de crianças do qual faço parte como professora, com momentos que valorizam desde a linguagem oral até as situações em que as crianças se colocam como leitoras e escritoras percebendo os usos das linguagens, propiciando o encontro da teoria com a prática. Esse encontro se dá pela minha observação como professora, buscando brechas para relacionar aspectos teóricos com práticas que favoreçam a aprendizagem das crianças a partir das suas falas e de demonstrações de seus interesses.
As situações apresentadas serão trazidas dentro de um trabalho desenvolvido na perspectiva de projetos. Porém, ainda que o projeto seja único e anual para toda a instituição, mostro que situações com sentido, significado e participação das crianças ganham força ao ser construídas com elas e para elas. Dessa forma, mesmo seguindo as orientações do projeto institucional, irei dialogar com autoras como Barbosa (2006) e Corsino (2009) para embasar teoricamente as vivências práticas desse contexto.
O texto está dividido da seguinte forma: inicialmente trazendo uma reflexão acerca da linguagem oral das crianças, suas ampliações e suas representações por meio das dramatizações e do registro feito por meio de desenho. Em um segundo momento, exemplificarei algumas situações que vão, aos poucos, mostrando para as crianças os motivos de fazermos registros e suas funcionalidades por meio de atividades ligadas às suas rotinas, suas ações e vontades, além de mostrar para elas como esse registro pode passar da oralidade para o desenho e, gradativamente, para o registro escrito.
Em seguida, o texto discorre sobre o papel da escola e do professor na ampliação das construções dessas linguagens (oral, grafismo, escrita), que aos poucos se entrelaçam; refletiremos sobre a escola que ainda quer ser vista como detentora do saber e responsável por garantir a aprendizagem da leitura e da escrita sem considerar os processos pelos quais as crianças passam enquanto vivenciam experiências ligadas a essas linguagens. Abordo a escola que entende a linguagem escrita como necessidade social e por meio de processos de vivências e construção de saberes.
Outra questão que aparece no texto é: em que momento as crianças podem escrever sobre o que pensam, vivem ou desejam? Será que, como professores de Educação Infantil, podemos permitir que a escrita das crianças seja vivenciada? Criança também lê e escreve?
Algumas das vivências trazidas aqui foram inspiradas nas aprendizagens oportunizadas a partir do curso Brincar, Explorar e Trocar, as matrizes do Centro de Referência em Educação Infantil de Realengo do Colégio Pedro II (Creir) e da experiência adquirida ao longo dos anos em diferentes espaços escolares.
Linguagem enquanto interação: algumas considerações
A criança começa a se comunicar e a interagir com o mundo ao seu redor por meio de gestos, balbucios. Ela aprende a falar experimentando a fala, inicialmente por meio de emissão de sons que pouco a pouco vão ganhando sentido. Gradativamente, a oralidade e as dramatizações também vão ganhando espaço na infância e assim também vai acontecendo com o desenho. Com o desenho, ela produz enredos, coloca suas ideias, narra fatos, conta histórias e amplia seu vocabulário.
Aos poucos, a criança começa a construir suas próprias narrativas e vai comunicando o que deseja. Por meio das linguagens citadas e de muitas outras e pelas experiências com elas, a criança pode conhecê-las, interpretá-las, possivelmente poderá dar mais sentido a suas representações; futuramente, essas vivências podem contribuir para o desenvolvimento de outros processos, inclusive da construção da linguagem escrita, uma vez que
o aprendizado da linguagem escrita envolve a elaboração de todo um sistema de representação simbólica da realidade. É por isso que ele identifica uma espécie de continuidade entre diversas atividades simbólicas: os gestos, o desenho e o brinquedo. Em outras palavras, essas atividades contribuem para o desenvolvimento da representação simbólica (em que sentidos representam significados) e, consequentemente, para o processo de aquisição da linguagem escrita (Vygotsky, 1995, p. 69).
Devemos considerar os simbolismos atribuídos pelas crianças em todas as etapas que antecedem a escrita, incluindo a etapa da representação por meio do desenho. É através dessas etapas que as crianças vão elaborando ainda mais a linguagem oral, gradativamente passam a se expressar também em suas dramatizações e desenhos e, aos poucos, a se interessar pelas palavras escritas, passando a fazer uso delas em suas criações e explorações espontâneas.
Tomemos como exemplo os desenhos infantis como forma de exploração da linguagem. Entendemos que, por meio dos desenhos, as crianças traçam narrativas sobre o que pensam, o que vivem e apresentam interesses e memórias. Assim sendo, eles demonstram ser uma forma de exploração da linguagem. Os desenhos podem ser feitos em diferentes suportes: no jornal, no chão, com giz ou até mesmo em pedaços de papelão, ampliando as possibilidades de criação e exploração das crianças. Para Leite e Motta (2005), as crianças vivem exatamente o processo nesta sequência: passam “do desenho de coisas para o desenho de palavras”. Nesse sentido, irei descrever uma atividade que foi proposta para minha turma de pré-escola I; as crianças estavam na faixa etária de quatro anos à época da observação. Os nomes das crianças não serão divulgados para preservar suas identidades.
As crianças estão sentadas em pequenos grupos e são orientadas a escolher imagens de revista previamente recortadas por mim. Ao optar por uma imagem, as crianças são orientadas a criar um cenário para ela e relatar oralmente ao grupo o resultado da sua criação. Durante suas falas, eu fui escriba, fazendo esse registro por escrito para depois anexá-lo aos desenhos das crianças.
Figura 1: Desenho de T. (4 anos)
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.
Figura 2: Desenho de N. (4 anos)
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.
Os autores de cada desenho explicavam o que haviam feito. Veja as falas de T. e N., respectivamente:
"Eu colei a bicicleta porque eu gosto de bicicleta. É, mas eu não tenho. Só que lá na rua tem um montão de bicicleta e tem namorado que vai de bicicleta" (T., 4 anos).
"Eu fiz minha mãe e a bolsa dela, porque ela gosta de bolsa e tem muita bolsa" (N., 4 anos).
Com os exemplos, podemos observar o quanto o trabalho de estímulo, respeito e valorização das criações das crianças, que acontece desde a linguagem oral e suas representações gráficas, pode contribuir positivamente nos futuros registros escritos. Ainda que as imagens tenham sido recortadas previamente por mim, cada criança pode criar o seu próprio enredo e ter a liberdade de se colocar diante do grupo.
É importante que, nessa fase, elas possam escutar e ser ouvidas, expressando seus desejos e ideias, possam conversar, contar e recontar situações ou histórias, dar recados, cantar, dramatizar, falar sobre seus interesses ou suas dúvidas, colaborar com sugestões para a organização do ambiente da sala ou da rotina. Tudo isso pode ser explorado tanto por meio da oralidade quanto por meio do desenho ou do registro escrito pela professora ou pela criança, na forma como ela compreender.
Ou seja, da mesma forma com que as linguagens oral e gráfica vão sendo adquiridas ao passo que as crianças são envolvidas em situações que fazem uso delas, acontece com a linguagem escrita, pois o professor, como leitor e escritor, oferece situações em que as crianças podem perceber que a linguagem escrita comunica, tem sentido, transmite uma ideia. Como exemplo de atividade com linguagem escrita, citamos as produções de textos coletivos pelas crianças. Eles podem ser feitos com a presença e a contribuição do grupo para registrar um acontecimento do dia, e em seguida, lido para a turma e ilustrado por ela. Ou, quando um bilhete precisa ser enviado às famílias, o professor pode lê-lo para as crianças antes que elas o guardem.
Observando as crianças da turma onde atuava, eu percebia que elas também se colocavam no lugar de produtores de texto, de escritores, quando escrevem espontaneamente em seus desenhos, com giz no chão, quando brincam na escola no chamado Canto do escritor (O canto do escritor é uma atividade que eu ofereço em um canto da sala. Uma prática que costumo realizar em minhas turmas deixando que escrevam de forma livre e como concebem. Pode ser em cima de um tecido que está forrando o chão ou numa mesa. Algumas vezes ele é oferecido para o grupo por mim e outras vezes solicitado pelas crianças. Nesse canto, são oferecidos cadernos, bloquinhos, papéis diversos, revistas, guias médicos, lápis, borrachas e canetinhas) ou quando, junto com elas, registrava um acontecimento do dia na turma, anotava os nomes dos presentes e dos faltosos, escrevia um bilhete convidando outra turma para brincar com elas, registrava uma receita para que pudessem consultar posteriormente e conversar sobre seus ingredientes.
Tais situações podem demonstrar também que, lendo para as crianças, acolhendo o que interpretam, fazendo perguntas, o professor as coloca também na situação de leitores. Como sugerem Guedes e Barreiros (2011, p. 62), as crianças começam a entender que “a escrita é construída de dimensões que vão muito além da representação gráfica por meio de letras”. A leitura e a escrita, portanto, fazem parte da vida, parte da nossa cultura, estão presentes e vivas na Educação Infantil, uma vez que o professor propicie situações em que as crianças possam se colocar como leitoras e escritoras. É necessário que as crianças participem de situações de práticas de leitura e escrita e passem a fazer uso dessa escrita como mais uma linguagem para se expressar. Estando em contato com as diferentes linguagens, elas vão se apropriando de seus usos, criando e recriando por meio delas.
Registros dos sentidos e significados atribuídos pelas crianças para leitura e escrita
Durante o curso no Creir, em 2018, após algumas aulas, minha formação continuada ganhou novos sentidos. As aulas que mais chamaram a atenção falavam sobre a importância do registro das falas e das vivências das crianças e do respeito ao seu protagonismo na construção das propostas.
Como consequência dessas aulas no curso, minha atuação como professora com a turma de pré-escola I desencadeou maior valorização do registro escrito da turma enquanto eu fazia o papel de escriba, contribuindo para que as crianças gradativamente percebessem que o que falamos pode ser registrado não apenas por desenhos, mas também pela palavra escrita.
O primeiro registro das considerações das crianças dessa turma de pré-escola I em 2018 sobre leitura e escrita, acabou virando um livro, intitulado por elas “O que as crianças sabem?”. Cada página do livro foi pintada em grupo utilizando diferentes técnicas e em cada uma dessas páginas as respostas de algumas crianças do grupo que decidiram falar para a pergunta título. Perguntas e respostas das crianças ilustram a seguir seus pensamentos sobre o assunto naquele momento.
Para que serve o livro?
“Para aprender a ler” (D).
“Aprender a ler para não ficar fraco” (S.).
“Para ficar inteligente” (E. V.).
“Para ler” (T.).
“Histórias” (N.).
“Para ler” (N.).
“Para aprender a ler” (M. E.).
“Na história tem que ler para aprender” (M. H.).
Então ler serve para quê?
“Saber as letras” (T.).
“Para aprender o nome” (N.).
“Para aprender” (M. H.).
“Para ler livros” (M. A.).
“Para ler histórias” (E. V.).
Só podemos ler histórias?
“Podemos ler qualquer coisa” (M.).
“Pode pegar para ler qualquer coisa, para ter qualquer ideia” (S.).
“Pode ler histórias de terror” (M.).
Com base nas falas das crianças e no registro dessas falas, foi possível perceber o interesse delas em conhecer histórias literárias e conhecer mais sobre leitura e escrita. Foi uma boa oportunidade para começar a oferecer mais momentos de leitura pela professora, de manuseio de livros pelas crianças, de dramatização e de registro de diferentes formas dessas leituras. Por causa dessas observações, a turma foi conhecer a sala de leitura da escola; é uma sala que possui rico acervo literário para crianças. Seu espaço físico, no entanto, é bastante reduzido, não comportando, por exemplo, uma turma inteira com 25 crianças. A exploração de livros no local apenas pode ocorrer em dias em que a turma não está completa; assim, a sala acaba sendo pouco utilizada. No dia da visita, foi preciso dividir a turma em dois grupos: enquanto um grupo entrou na sala, o outro aguardou no banco ao lado da sala de leitura. Na visita, as crianças puderam explorar as estantes de livros, conforme podemos observar nas Figuras 3 e 4.
Figura 3: Visita à Sala de leitura do EDI
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.
Figura 4: Exploração de livros na sala de leitura do EDI
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.
Essa relação com os livros amplia não só o vocabulário das crianças como a compreensão de que a literatura, enquanto arte, estimula a criatividade, a criticidade e o imaginário das crianças. Essa exploração passa a ser natural e vai ganhando significados diferentes, conforme sugere Corsino (2006):
A ênfase na narrativa, no sentido benjaminiano de intercâmbio, de experiência, se relaciona, prioritariamente, ao texto literário; àquele texto que provoca o imaginário das crianças, que abre margem para elas fazerem suas interpretações, pensarem sobre a vida e as interações, estabelecerem relações das mais diversas. O que as crianças aprendem com a literatura muitas vezes não está explicitado na superfície do texto, é troca de experiências, é a possibilidade de pensar, de se pensar e de continuar o texto imaginando.
Nessa construção e apropriação, é importante ouvir as crianças e considerar suas ideias e interpretações, pois suas falas são pistas para encontrar os caminhos que o trabalho pode percorrer.
O papel da escola e do professor de Educação Infantil na formação de leitores e escritores desde a infância
Mesmo as crianças que nunca frequentaram a escola provavelmente já possuem contato com a leitura e a escrita em diferentes suportes. Nas embalagens de produtos, na TV, em revistas, livros ou pelas histórias contadas por seus familiares, por exemplo. Entretanto, a escola não pode se apoiar em suposições de que a criança tenha a dita “bagagem” para começar a oferecer experiências com leitura e escrita para elas. É preciso que, desde o seu ingresso na escola, as crianças sejam estimuladas, por meio de situações significativas, a ler e escrever da maneira como pensam e interpretam o mundo à sua volta. Por isso, é importante que as atividades vivenciadas na escola possam ser registradas junto com as crianças de modo a mostrar aos poucos que a leitura e a escrita fazem parte de situações reais em nossas vidas e que têm valor e significado, conforme aponta Fonseca (2013).
Atualmente ainda encontramos muitas práticas reprodutoras de metodologias que colocam as crianças como copistas ou meramente observadoras, já que as bases que se conheciam do ensino da linguagem escrita eram essas, uma vez que,
até bem pouco tempo atrás, essa era uma tarefa difícil... Os antigos métodos de alfabetização baseados em práticas de prontidão, em exercícios repetitivos de coordenação motora estavam muito presentes nas representações dos professores e, em muitos casos, eram os únicos conhecidos (Oliveira, 2012, p. 252).
Nessa perspectiva, entendemos então que muitos professores ainda acabam se preocupando e se ocupando de fazer correções, em garantir a cópia do modelo correto. Alguns se preocupam ainda com o que a família da criança vai pensar ou se vai entender aquela escrita. A preocupação está no mecânico, na garantia do resultado final e não na qualidade do processo vivenciado pela criança.
A escola é um local propício para a aprendizagem e aquisição dessa linguagem, mas os profissionais precisam fazer isso de forma que compreendam os sentidos dados pelas crianças para a escrita, pois, ainda que a escola seja esse local adequado para instrumentalizar a escrita, como aponta Ferreiro (2000), ela não é a “guardiã” desse saber; a escrita é uma prática social e mais uma linguagem a ser usada para a comunicação.
Com a escola, a escrita passou a ser transmitida para um número grande de pessoas, o que não significa que todas as pessoas tenham que aprender ao mesmo tempo, da mesma forma e com a mesma compreensão. Assim, entendemos que cada um tem suas vivências antes de entrar na escola e que essas experiências com a linguagem escrita podem ser as mais diversas ou até não ser tão variadas assim, dependendo do acesso ou do meio no qual a pessoa possa estar inserida.
Uma vez que seja a escola esse lugar propício da linguagem, é nela também que podem ser oferecidas formas variadas de se conhecer e aprender seu uso. É, portanto, um desafio da Educação Infantil que as práticas sociais de leitura e escrita presentes em nossa cultura possam ser vivenciadas por meio de experiências.
Nesse sentido, deste ponto em diante do texto trarei algumas vivências de situações de leitura e escrita com significado dentro da perspectiva do trabalho com projetos realizados anualmente na pré-escola em questão. Tais situações são pequenos relatos que colocam as crianças na perspectiva de leitores e escritores dentro de situações reais do cotidiano das crianças, colocando suas vozes e desejos dentro das propostas e dando para elas os sentidos atribuídos pelas crianças.
Os dois projetos citados, ainda que tenham sido preestabelecidos pela unidade de Educação Infantil, puderam ser permeados por sentido e significado, uma vez que as crianças tiveram a oportunidade de exercitar autoria e criatividade, pensando junto e participando ativamente das propostas ou fazendo sugestões.
No ano de 2018, no espaço de desenvolvimento infantil onde as observações e registros foram feitos, o projeto anual foi voltado para diferentes gêneros musicais. A cada mês, um novo gênero era trazido para as crianças e, a partir dele, toda a escola conhecia um pouco mais sobre a nossa cultura. O gênero musical que mais atraiu as crianças foi o funk. Depois de ouvir algumas versões instrumentais, de conhecer o grupo Dream Team do Passinho, as crianças também conheceram as profissões ligadas ao ritmo. Algumas dessas profissões foram: cantor (ou MC), dançarinos e DJ. As crianças criaram um personagem DJ e brincaram de fazer uma entrevista com ele.
Figura 5: Cartaz do personagem do DJ criado pela turma
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.
No cartaz está o personagem criado pelas crianças da turma, o DJ. Junto com o personagem, inspiradas por imagens de revistas e vídeos, as crianças criaram também uma mesa de som. Veja as perguntas que, em grupo, as crianças criaram e responderam:
Qual é o seu nome?
Tom Marco.
Qual é a sua profissão?
DJ.
Quantos anos você tem?
20 anos.
O que você gosta de fazer?
Tocar música e fazer batidas para dançar.
De que músicas você gosta?
Funk do passinho.
Com essa atividade, as crianças começaram a observar mais de perto o sentido dos usos e a importância dos registros para posteriores consultas ou para levar informações a outras pessoas. Para além dessas atividades de registro, a leitura literária por mim ou pelas crianças era sempre estimulada. Nas rodas de leitura, os livros selecionados para as crianças explorarem traziam como pano de fundo o tema de música, de instrumentos musicais ou de cantigas de roda, de forma a colocar as crianças ainda mais no universo musical e ampliar seus olhares para diferentes estilos.
Numa outra oportunidade, na festa da família, que chamamos de “O dia de quem cuida de mim”, na unidade de Educação Infantil, as famílias puderam observar as produções das crianças. A turma preparou um pãozinho de leite em pó para oferecer às famílias; para que todos pudessem conhecer a receita, as crianças registraram-na coletivamente.
Figura 6: Registro coletivo da receita (professora como escriba)
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.
Diferentes propostas eram costuradas à medida que o projeto era construído. Aproveitando as situações que deveriam ser trazidas de acordo com o cronograma da unidade, as crianças eram estimuladas a registrar com desenhos e escrita, ou até mesmo por fotos, as suas aprendizagens.
Algumas letras de músicas foram lidas com as crianças; outras vezes, elas podiam escrever em seus desenhos espontânea e livremente o que haviam aprendido sobre o ritmo do mês ou sobre a cultura da região à qual o ritmo estivesse relacionado.
Em 2019, seguindo com a mesma turma, estavam então na pré-escola II (as crianças já com cinco anos); o projeto anual da instituição seria sobre as regiões brasileiras. Foram colocadas para as crianças perguntas sobre como poderíamos fazer para conhecer o nosso país, se poderíamos viajar e quais meios de transporte utilizar. As crianças disseram que, para viajar para lugares distantes, seria necessário utilizar um avião e, por causa disso, uma criança da turma ensinou aos demais colegas como confeccionar aviões de papel para brincar com essa “viagem”.
Figura 7: Brincando com os aviões confeccionados no pátio da escola
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2019.
No dia seguinte à confecção dos aviões, registramos a atividade em um texto coletivo.
Aventura de avião
Nesse dia, o T. ensinou para a gente como fazer avião de papel.
Quem não conseguiu fazer, o T. e as crianças ajudaram.
Depois a gente foi lá pra fora e “embarcou” no nosso avião para Minas Gerais.
Foi divertido!
Outras atividades foram planejadas dentro desse projeto. Convidamos a mãe de uma das crianças da turma, que havia viajado para Minas Gerais, para apresentar fotos da viagem e conversar com as crianças. Como preparação para a visita, registramos por escrito algumas perguntas que gostaríamos de fazer nesse dia.
Depois da conversa, a turma quis fazer um piquenique mineiro. Juntos preparamos um bilhete para as famílias e listamos opções da culinária de Minas Gerais para que as crianças pudessem levar para o lanche coletivo.
Esses recortes são uma pequena amostra de situações em que as crianças puderam se colocar como leitoras e escritoras e perceber os usos da leitura e da escrita em situações reais do grupo. Dessa forma, é possível que elas, aos poucos, percebam as marcas que a escrita pode nos comunicar, percebam suas funcionalidades na sociedade para comunicar, para relembrar ou para criar histórias, registrar receitas ou inventar músicas, por exemplo.
Na Educação Infantil, atividades que colocam as crianças como coautoras das propostas e que valorizam suas vozes e seus pensamentos podem encorajar futuros leitores e escritores que entendem a escrita como uma linguagem com muita importância em nossa sociedade.
Considerações finais
Na Educação Infantil, as linguagens de que as crianças vão aprendendo a fazer uso para se comunicar devem ser vividas, sentidas e ter significado. Não se pode separar o sentir do viver, tampouco esperar que o registro escrito desse sentir e viver se distancie da escrita real daquilo que as crianças pretendem comunicar. “Nesse sentido, a Educação Infantil tem o importante papel de possibilitar o acesso à cultura letrada, a partir da vivência e de experiências com diversos suportes e gêneros textuais, em práticas sociais reais em que o uso desses textos se torne necessário” (Salles; Faria, 2012, p. 136).
Assim sendo, o professor da Educação Infantil deve estar mais voltado para essa construção do sentido, da valorização da escrita da criança e do despertar do interesse por mais essa linguagem, não ficando apenas no lugar de quem corrige ou de quem pune e apresenta resultados diferentes do que ele espera. Nessa fase, viver com tranquilidade o processo é o que pode garantir os melhores resultados.
Mas, então, qual seria o lugar da escrita na escola? Aprende-se a ler e a escrever fazendo cópias? Ordenando ou separando sílabas para depois ler a palavra, o texto? Ou o texto pode ser muito para crianças pequenas? Em que momento as crianças podem escrever sobre o que pensam, vivem ou desejam? Será que, como professores de Educação Infantil, podemos permitir que a escrita das crianças seja vivenciada? Criança também lê e escreve?
Antes de mais nada, é preciso entender que a escrita não é um mero saber escolar e sim uma prática social. Sendo assim, ela precisa ser compreendida e incorporada pelas crianças mediante um trabalho que seja significativamente contextualizado, permeado por textos reais que estimulem a criatividade, criticidade e autoria infantil.
Ou seja, para viver na sociedade que temos hoje, é necessário vivenciar cotidianamente situações que envolvam leitura e escrita; por isso, as crianças devem ser estimuladas a conhecer e fazer uso dessa linguagem de acordo com suas hipóteses e criações desde cedo para que aos poucos possam compreender os seus usos para a vida.
Referências
BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Por amor e por força: rotinas na Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006.
CORSINO, Patricia (org.). Educação Infantil: cotidiano e políticas. Campinas: Autores Associados, 2009.
FERREIRO, Emília. Com todas as letras. Trad. Maria Zilda da Cunha Lopes, retradução e cotejo de textos Sandra Trabucco Valenzuela. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.
FONSECA, Edi. Interações com olhos de ler, apontamentos sobre a leitura para a prática do professor de Educação Infantil. São Paulo: Blucher, 2013.
FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres. Com a palavra escrita. In: KRAMER, Sônia et al. Infância e Educação Infantil. São Paulo: Papirus, 2011.
GUEDES, Adrianne O.; BARREIROS, Tereza Cristina. Caras sobre leitura e escrita na pré-escola ou a formação de narradores: uma paixão nas entrelinhas. In: KRAMER, Sônia et al. Infância e Educação Infantil. São Paulo: Papirus 2011.
LEITE, Ana Lúcia O. de Souza; MOTTA, Maria Inêz Fernandes. Do gesto ao texto: uma reflexão sobre alfabetização e letramento através da arte e da brincadeira, In: Arte do encontro, lugar do encontro. Monografia (Especialização em Educação Infantil) – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2005.
OLIVEIRA, Zilma Ramos de (org.). O trabalho do professor na Educação Infantil. São Paulo: Biruta, 2012.
SALLES, Fátima; FARIA, Vitória Líbia Barreto de. Currículo na Educação Infantil: diálogo com os demais elementos da proposta pedagógica. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2012.
VYGOTSKY Lev. Uma perspectiva histórico-cultural da educação. Trad. Teresa Cristina Rego. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
Publicado em 14 de novembro de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
CONCEIÇÃO, Debora Cristina da Silva Cruz. Experiências com leitura e escrita no contexto da Educação Infantil. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 44, 14 de novembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/44/experiencias-com-leitura-e-escrita-no-contexto-da-educacao-infantil
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