Entre a leitura dos clássicos e suas adaptações: processos de hibridização presentes na literatura infantojuvenil do PNLD Literário
Betty Bastos Lopes Santos
Professora, mestra em Letras (ProfLetras/UNEB), doutoranda (PPGEL/UNEB)
Este artigo se inicia com as proposições de Ítalo Calvino com relação à necessidade e à importância da leitura dos clássicos, o que nos instigou algumas provocações como: a leitura de um clássico deve se dar apenas pelo contato com a obra original? A leitura das versões adaptadas garante ao leitor a mesma experiência que a obra primária promove? Deve-se, portanto, priorizar o trabalho com as obras originais em detrimento das formas adaptadas da literatura, a despeito da idade e do nível de maturidade dos leitores na geração atual? O trabalho com as obras adaptadas em sala de aula refere-se realmente a “simplificações didáticas”, como trata a BNCC?
Esses questionamentos nos levaram a pensar se as formas de adaptação de obras da literatura brasileira para histórias em quadrinhos (HQ) atendem às expectativas de leitura dos clássicos consagrados ou se apenas satisfazem a uma geração imediatista, despreocupada em conhecer os contextos sócio-históricos e culturais nos quais as obras estão inseridas, impedindo o seu acesso a conhecimentos presentes nas obras originais, num processo de “simplificação didática” como considera a BNCC (2018, p.499) ou se são formas que aproximam o leitor das obras literárias consagradas, despertando nele o desejo de, em níveis mais maduros de leitura, ler os clássicos.
Iniciamos a reflexão pelas proposições do que é um clássico sugeridas por Calvino (1993), que nos conduzem a uma concepção diferenciada sobre os clássicos na contemporaneidade, rompendo os padrões tradicionais e conservadores que o definiam. Na sequência, analisamos o que a BNCC sugere para a leitura do texto literário e o trabalho com os gêneros denominados “substitutivos”, a exemplo das adaptações para histórias em quadrinhos, que nós analisamos a partir das discussões de Canclini (2013, p. 336), considerando-as como um “gênero constitucionalmente híbrido”, que, por meio do processo de transgenericidade textual e de suas técnicas hibridizadoras, promove um movimento de intersecção entre o visual e o literário, entre o culto e o popular. Por fim, recorremos às discussões de Machado (2002), que traz orientações valiosas sobre o trabalho de formação do leitor em sala de aula com relação à leitura dos clássicos.
Mas, afinal, o que é um clássico?
A leitura dos clássicos em sala de aula é uma inquietação que se revela importante, tomando como base a geração de jovens da atualidade e sua relação com a leitura, principalmente no contexto educacional. Quando pensamos na leitura dos clássicos em sala de aula, lembramos de Ítalo Calvino, em seu conhecidíssimo ensaio intitulado Por que ler os Clássicos, publicado em 1993.
Nesse ensaio, Calvino convida a uma reflexão importante, profunda e atemporal que conduz, de forma ampla, a uma discussão útil para os dias atuais no tocante ao trabalho com a literatura clássica. São muitos os questionamentos que inquietam os educadores quando se pensa na leitura dos clássicos:
- Quais livros podem ser considerados clássicos?
- Que tipo de literatura deve ser sugerida e conduzida pelo professor em sala de aula nos dias atuais?
- Deve-se priorizar sempre a leitura dos clássicos em obras originais ou pode-se recorrer às adaptações?
- Como incentivar o hábito da leitura e atender às preferências de uma geração hipermoderna, altamente tecnologizada e, por que não dizer, híbrida?
O autor não traz repostas prontas; apresenta provocações que nos conduzem a pensar sobre a relação dos jovens com a leitura dos clássicos ao longo da vida, mostrando como essas obras estão intrinsecamente envolvidas na ideia de quem somos e de como nos constituímos enquanto sujeitos sociais. Calvino apresenta catorze premissas comentadas que nos fazem refletir sobre os clássicos na nossa vida, como leitores; destacaremos algumas de relevância para esta discussão, buscando entender quais critérios podem ser utilizados para definir um clássico.
Na visão de Calvino (1993), o que define um clássico é a sua capacidade de convidar o leitor a uma releitura por sua inevitável atração, mas também não nega a importância da rica experiência de sua primeira leitura. Por sua eficiente comunicabilidade, de acordo com o autor, “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”; portanto, “toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira” (Calvino, 1993, p. 11). Considera-se então que todo clássico possui uma infinidade de informações e aprendizagens que são reveladas no processo de leitura e releitura. Assim, para cada leitor, o clássico diz coisas diferentes em épocas diferentes que se ajustam aos anseios de cada um na busca incessante por suas repostas a cada reencontro.
O autor também adverte, na sétima premissa, que os clássicos “são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (Calvino, 1993, p. 11). Isso revela o quanto de informações sobre o passado os clássicos podem trazer quando nos debruçamos sobre eles, possibilitando o conhecimento sobre fatos, povos e costumes do passado, seguindo no registro dessas histórias ao longo dos tempos, num ciclo que se repetirá em todas as gerações.
Calvino não apresenta uma definição fechada sobre que literatura pode ser considerada um clássico, mas deixa transparecer que essa categoria pode ser mesclada com outros textos literários, dos mais antigos aos mais modernos. Nesse sentido, podemos inferir que a definição de uma obra, na atualidade, como clássico ou não depende muito dos usos e das relações que se estabelecem entre o livro e seus leitores. O que não se pode negar, a partir de Calvino, é que eles são imprescindíveis para nos ajudar a entender quem somos e isso se dá no confronto entre diferentes culturas que a leitura dos clássicos antigos e contemporâneos nos possibilita. A leitura de um clássico, para Calvino, é uma experiência individual e pessoal que acontece por amor e não por imposição. Segundo ele, “se a centelha não se dá, nada feito”. Assim, o papel da escola é apresentar os livros ao leitor que, posteriormente, sentir-se-á livre para escolher os seus próprios clássicos (Calvino, 1993, p. 13). Se a centelha se acenderá (ou não) vai depender do leitor, seus estilos, seus sonhos, seus anseios e os livros que chegarem às suas mãos e das experiências de leitura advindas dessa relação.
A literatura e as novas mídias
À medida que o ser humano muda na sociedade, evoluindo em sua história, a literatura tende a acompanhar esse processo e a se transmutar em suas formas de reprodução, uma vez que está totalmente ligada ao processo de formação e desenvolvimento da sociedade, refletindo toda a complexidade que envolve a condição humana. Segundo Polar (2000, p. 16), “as obras literárias e seus sistemas de pluralidade são signos e remetem sem exceção possível a categorias supraestéticas: o homem, a sociedade, a história”, uma vez que a literatura se funde na condição esclarecedora da aventura do ser humano na Terra. Portanto, para ele, a literatura é parte integrante de uma realidade e de história específicas, produzidas socialmente, em que não há neutralidade e em constante transformação (Polar, 2000). Nos tempos atuais, principalmente com o avanço da tecnologia, temos presenciado essa transmutação das formas de produção da literatura que acompanham os ritmos da humanidade, a fim de atender os seus anseios.
Trazendo essa discussão para o âmbito da sala de aula, a Base Nacional Comum Curricular considera que “a literatura enriquece nossa percepção e nossa visão de mundo” (Brasil, 2018b, p. 499); além disso, destaca que a leitura do texto literário ocupa posição nuclear no Ensino Médio e ressalta que,
por força de certa simplificação didática, as biografias de autores, as características de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs, têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino (BNCC, 2018b, p. 499, grifos nossos).
O documento orienta a recolocação dos textos literários como ponto de partida para o ensino da Literatura e sugere a intensificação de seu convívio com os estudantes, mas ressalva, em nota de rodapé, que
é possível e desejável que se trabalhe com HQs, filmes, animações, entre outras produções baseadas em literaturas, incluindo análises sobre seus processos de produção e recepção. O que deve ser evitado é a simples substituição dos textos literários por essas produções (BNCC, 2018, p. 499, nota de rodapé, grifo nosso).
A observação feita na BNCC sobre a “simplificação didática” que tem ocorrido com a leitura do texto literário, relegando-o a segundo plano, e a ressalva feita na nota de rodapé revelam como alguns gêneros híbridos ainda são vistos na sociedade, principalmente quando orientados por documentos oficiais. Canclini (2013) ajuda a compreender esses processos de hibridização tão importantes quanto as obras consagradas que foram por muito tempo sacralizadas na literatura. Segundo o autor, trata-se de “processos socioculturais nos quais novas estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini, 2013, p. 19).
Nessa esteira, destacam-se também os dispositivos de reprodução em que os livros e seus mais diversos suportes e mídias aparecem na atualidade, como os e-books, audiolivros, podcasts, seriados exibidos nas plataformas de streaming e outras variações híbridas, como as HQs, por exemplo. Nas formas de linguagem e na literatura, esses processos são muito comuns nos tempos atuais, principalmente com o advento da tecnologia moderna. As histórias em quadrinhos, os filmes, os seriados exibidos nas plataformas de streaming, as animações, os fanfiction ou fanfics (Stein, s/d), histórias criadas a partir de personagens e outras histórias já existentes, são exemplos de como essas hibridizações acontecem na relação com a literatura e atraem tanto o público da atualidade. A esse respeito, podemos pensar nas telenovelas brasileiras que resgatam obras clássicas, apresentando releituras que aproximam o leitor da obra original e mesclam o passado com o presente envolvendo os leitores e telespectadores, a exemplo de telenovelas como O cravo e a rosa, que foi baseada na obra A Megera Domada, de William Shakespeare, e ambientada na cidade de São Paulo em meados dos anos de 1920.
Sobre essa questão, Grijó (2005) afirma que
esta nova forma de difundir a literatura para a escola e de “iniciar” os alunos tem apelos que parecem difíceis de resistir, pois faz circular os cânones, tão caros à academia; cria um novo e enorme mercado para os livros paradidáticos e ainda fornece à sociedade [...] a sensação de formação de uma geração de intelectuais que não apenas leem livros, mas leem Camões Shakespeare, Cervantes entre outros (Grijó, 2005, p. 2).
Para Canclini (2013), as histórias em quadrinhos são gêneros “constitucionalmente híbridos”, que rompem com o conceito de coleção patrimonial desde seu nascimento, unindo a cultura icônica à literária, e se constituem como “um componente central da cultura contemporânea” (Canclini, 2013, p. 339). Inferimos então que essa hibridização vai desde a sua composição multimodal, pois reúne várias semioses para compor a comunicação verbo-visual até a sua composição intergênero, uma vez que agrega gêneros textuais diferentes, tornando a leitura mais acessível, mais prática e mais prazerosa. Além disso, consideramos que as histórias em quadrinhos são campo aberto para tratar de temas das mais variadas esferas dentro de uma sociedade, desde assuntos relacionados ao puro entretenimento até a política, como forte instrumento de crítica. Tomemos como exemplo disso as reflexões presentes nas histórias de Mafalda, famosa personagem argentina, criada por Quino e adotada pelos brasileiros, visto que as discussões e provocações sociopolíticas que ela protagonizava não distinguiam a sua nacionalidade diante dos problemas comuns em diferentes culturas (argentina e brasileira), o que a tornou uma legítima defensora das causas brasileiras.
As adaptações literárias do gênero histórias em quadrinhos atualmente são amplamente exploradas em sala de aula e compõem os acervos de programas oficiais de incentivo à leitura como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), criado em 1997 e substituído em 2017 pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático, na edição de obras literárias (PNLD Literário).
É um grande desafio para o professor, na atualidade, despertar no aluno o desejo de ler as obras originárias, assim como suas releituras, suas formas adaptadas, que, sem dúvida, têm importante função no processo de formação do leitor. Estamos diante de um leitor que se quer livre! Desse modo, pensamos que esses gêneros não devem ser considerados nem utilizados como “simplificações didáticas”, tampouco empregados como gêneros “substitutivos”, conforme citados na BNCC; devem ser vistos como gêneros que dão suporte ao processo de leitura e aprendizagem e que em muito contribuem para o enriquecimento cultural, uma vez que se apresentam de forma híbrida, mais acessíveis e talvez mais atraentes ao público leitor na atualidade.
Vale destacar que, em décadas passadas, as HQs foram malvistas, “marginalizadas”, condenadas por educadores, e sua leitura foi proibida em sala de aula, incluindo o confisco de exemplares caso algum aluno fosse pego lendo HQs durante a aula. Eram vistas como objetos de distração que atrapalhavam a aprendizagem. Somente a partir de 1996, com Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que propôs “um pacto entre esse produto cultural midiático e a educação formal” (Santos; Vergueiro, 2012, p. 82), é que o gênero HQ passou a ser pedagogicamente aceito. Daí em diante, e com a inserção do gênero histórias em quadrinhos em programas oficiais de incentivo à leitura promovidos pelo Governo Federal, as editoras passaram a investir nesse mercado, impulsionando a produção de adaptações de obras literárias (Chinen, 2020).
Diante desse contexto, destaca-se a presença das adaptações em HQs no PNLD Literário, um programa do Governo Federal de incentivo à leitura que oferece variadas opções de títulos de literatura adaptada para histórias em quadrinhos para alunos desde a Educação Infantil ao Ensino Médio da rede pública de ensino, sobre o qual falaremos na seção que segue.
A presença da literatura adaptada ao gênero histórias em quadrinhos no PNLD Literário
O PNLD Literário foi criado pelo governo federal, em 2017, em substituição ao Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), surgido em 1997, que contemplava a distribuição de obras literárias para os acervos das bibliotecas públicas escolares até o ano de sua extinção. O PNLD Literário, além da distribuição de obras para os acervos das bibliotecas públicas escolares, trouxe como diferencial a oferta de exemplares para compor o acervo pessoal dos alunos da Educação Básica das instituições federais e das redes municipais e estaduais de todo o território nacional. Outro diferencial em relação ao PNBE é que a escolha dos livros é realizada pelos professores juntamente com a equipe pedagógica de cada unidade escolar, a partir da análise dos Guias do PNLD Literário disponíveis no portal do FNDE. As obras que compõem esses guias são previamente avaliadas por professores mestres e doutores selecionados pelo Ministério de Educação (MEC) mediante critérios preestabelecidos e divulgados nos editais.
As obras são bastante variadas em gêneros, incluindo as adaptações em HQ. Seus temas são bem diversificados e abarcam obras clássicas antigas e contemporâneas, tanto nacionais quanto estrangeiras, além de oferecer um número considerável de obras de novos autores contemporâneos. Numa pesquisa nos guias de obras selecionadas, encontramos, na edição de 2018, nove obras adaptadas em histórias em quadrinhos voltadas para o Ensino Fundamental e quinze voltadas para o Ensino Médio. Na edição de 2020, encontramos dezoito obras adaptadas em histórias em quadrinhos para o Ensino Fundamental. Esses números revelam a mudança de pensamento quanto ao gênero história em quadrinhos na educação, mostrando sua importância para a formação do leitor na atualidade. Assim, há algumas décadas, as HQs vêm mudando de status, deixando de ser vistas como mero entretenimento e assumindo status relevante na qualidade de literatura.
Das obras aprovadas nos catálogos, destacamos duas brasileiras (na edição 2018) que foram adaptadas aos quadrinhos, publicadas por diferentes editoras, indicadas para o trabalho com os alunos do Ensino Médio: Dom Casmurro e Grande Sertão: veredas; analisamos suas resenhas completas, disponíveis no guia online do PNLD Literário para verificar quais as preocupações dos editores com relação ao processo de adaptação ao qual foram submetidas no sentido de manter a qualidade da obra adaptada e de não perder sua proximidade com a original. Escolhemos apenas duas obras consideradas clássicas da literatura brasileira pela relevância no âmbito das literaturas mais lidas e conhecidas.
A primeira obra é o clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis, adaptada para HQ, com texto de Wellington Srbek e ilustrado por José Aguiar, publicada pela Editora Nemo em 2017. Na adaptação, os 148 capítulos são apresentados em 20 partes ilustradas em preto e branco que se resumem em 80 páginas. A história é narrada por Bentinho, que revive suas memórias ocorridas na época do Brasil Império. De acordo com a resenha completa disponível no Guia do PNLD Literário de 2018, para garantir a qualidade da adaptação, os autores buscaram preservar o estilo irônico de Machado na linguagem em quadrinhos, permitindo o diálogo com o público jovem, a fim de manter o quanto possível a riqueza do estilo oitocentista do autor.
A qualidade na linguagem visual da obra também foi um dos critérios observados, segundo os resenhistas, permitindo que a ilustração não só dialogasse com o texto verbal, mas também ampliasse as possibilidades significativas por meio do uso de imagens expressivas em preto e branco que reportam o leitor ao século XIX e aos ambientes internos e externos em que se passam as cenas (Brasil, 2018a).
A segunda obra da literatura brasileira ofertada para o Ensino Médio adaptada em forma de HQ é Grande sertão: veredas, um romance de João Guimarães Rosa, considerado um dos mais expressivos da nossa literatura, publicado em 1956. A versão adaptada do romance foi realizada por Eloar Guazzelli e ilustrada por Rodrigo Rosa, publicada pela Editora Globo em 2018. O romance é narrado em primeira pessoa e tem como personagem principal o jagunço Riobaldo, que relata, já envelhecido, suas experiências no tempo em que fazia parte de um bando de jagunços e se sentia atraído por Diadorim. Ao longo do texto, narra suas perigosas aventuras percorrendo o sertão em meio aos seus envolvimentos em guerras e fugas da polícia.
Os resenhistas afirmam que, nessa adaptação, apesar de terem sido feitos cortes para garantir maior dinamismo da narrativa, os adaptadores buscaram preservar as características do texto original, sendo fiéis ao vocabulário utilizado na obra primária e evitando a transformação do texto narrativo. Outra modificação que se considera importante e foi destacada por eles é que, enquanto a obra primária é caraterizada pela não linearidade da narrativa, na versão adaptada a narração segue a ordem cronológica dos fatos, opção que permitiu privilegiar os episódios de ação sem perder a profundidade do universo narrado (Brasil, 2018a). Além disso, destaca-se a preocupação dos adaptadores no tratamento da temática relacionada à orientação sexual no contexto de machismo em que Riobaldo estava inserido, trazendo essa questão numa perspectiva crítica e reflexiva, isenta de preconceitos e julgamentos, podendo contribuir, sem dúvida, para uma discussão em sala de aula favorável à formação de comportamentos mais tolerantes, respeitosos e que conduzam à desconstrução dos preconceitos socialmente instituídos.
Percebe-se nas obras destacadas a preocupação em não se distanciar da versão original, mantendo a essência das narrativas, a fim de que o leitor conheça, mesmo que de forma indireta, o enredo, o contexto de produção da obra, as personagens e suas personalidades, os dramas vividos na história e a caracterização do espaço. Diante disso, enquanto os clássicos mais antigos exigem um hábito de leitura mais refinado e gosto específico para determinados gêneros, pela época em que foram produzidos, as adaptações em quadrinhos recontam as narrativas de forma mais simples, recuperando enredos, cenários, personagens e seus modos de vida, usando a linguagem imagética e a multimodalidade para tornar a leitura mais dinâmica e mais acessível. De acordo com Neres (2014, p. 20),
uma das compreensões primordiais para o conceito de adaptação é a que define como a atualização de um discurso. O enredo, ou seja, o mote da obra original deve estar presente na obra adaptada, pois deve-se levar em consideração a necessidade do adaptador em ser o mais fiel possível à obra original. Assim, serão realizadas as alterações necessárias, como cortes, supressões ou omissões de trechos que se julguem nocivos ao leitor em idade escolar. A orientação editorial da obra adaptada, a qual norteará esses recursos de edição de texto, poderá ser determinada pela escola ou pelo sistema educacional a que se destina a adaptação.
No caso das obras analisadas, a orientação editorial que define a edição do texto foi determinada pelo Ministério de Educação, que coordena o programa de incentivo à leitura, devendo-se observar, segundo o órgão, a adequação da linguagem para o público a que a obra será oferecida, os cortes que devem ser feitos no enredo atendo-se ao nível de maturidade dos leitores, a fim de que se tornem acessíveis à compreensão por meio da linguagem utilizada, como se pode ver no texto do Edital: “2.2.8 - As obras literárias deverão ser adequadas à faixa etária dos estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e estar em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular” (Brasil, 2020b, p. 4).
Todas as modificações no processo de adaptação devem ser cuidadosamente feitas de forma a não mutilar a obra original. Entretanto, como ressalva Feijó (2012), no processo de adaptação podem ocorrer reduções e simplificações, porém esse processo tornará a leitura acessível a um público mais novo e com poucos recursos por meio do uso de uma linguagem coloquial e mais atualizada.
No caso da obra de Machado de Assis, acreditamos que as adaptações na linguagem contribuem para tornar o texto mais próximo do leitor juvenil, dada a complexidade da linguagem inerente à construção do português falado na época da produção do romance, mesmo sendo preservada a riqueza do estilo oitocentista do autor. Na obra Grande sertão: veredas foram feitos recortes nas partes mais complexas da narrativa, quando o narrador faz as pausas para suas reflexões metafísicas sobre a existência, mas buscou-se preservar as características do texto original, mantendo o vocabulário e a estrutura narrativa. Essas preocupações dos adaptadores giram em torno da ideia de preservar ao máximo a proximidade da obra adaptada à obra original, a fim de garantir ao leitor o não distanciamento entre as duas obras.
Ao contrário do que recomenda Calvino sobre a insubstituível leitura dos clássicos em obras originais e não secundárias, Ana Maria Machado sugere em seu livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo que “o primeiro contato com o clássico, na infância e adolescência, não precisa ser com o original. O ideal mesmo é uma adaptação bem-feita e atraente” (Machado, 2002, p. 15). Para a autora, se proporcionarmos a experiência de leitura com uma obra adaptada, mais tarde o leitor maduro buscará leituras mais profundas com as obras originais vivenciando suas próprias experiências. Assim, ela assevera que
não é necessário que essa primeira leitura seja um mergulho nos textos originais. Talvez seja até desejável que não o seja, dependendo da idade e da maturidade do leitor. Mas creio que o que deve se propiciar é a oportunidade de um primeiro encontro. Na esperança de que possa ser sedutor, atraente, tentador. E que possa redundar na construção de uma lembrança (mesmo vaga) que fique por toda a vida. Mais ainda: na torcida para que, dessa forma, possa equivaler a um convite para a posterior exploração de um território muito rico, já então na fase das leituras por conta própria (Machado, 2002, p. 12-13).
Destarte, não podemos perder de vista o perfil de leitor que se configura na contemporaneidade, que chamaremos aqui de “leitor híbrido”, ancorados nas discussões de Canclini quando afirma que os jovens também aprendem a ler sendo espectadores, telespectadores e internautas ao mesmo tempo (Canclini, 2008, p. 24). Essas múltiplas habilidades são características da geração hipermoderna e, para esse novo leitor, a escola deve estar igualmente atenta diante das inúmeras e aceleradas transformações pelas quais a produção literária tem passado, desde os diferentes suportes de leitura às mais variadas mídias que vêm surgindo com o avanço da tecnologia, num movimento que acompanha a evolução da humanidade.
Considerações finais
Retomando os questionamentos iniciais que motivaram esta discussão, percebemos que as obras adaptadas ao gênero HQ não são “nocivas”, como outrora foi difundido sobre elas. Resguardadas as suas limitações adaptativas, elas se configuram como um importante instrumento de acesso e de incentivo à leitura aos jovens e adolescentes que precisam descobrir o prazer que há na leitura de um clássico. Por se tratar de um gênero constitucionalmente híbrido, as histórias em quadrinhos tornam mais acessíveis obras que dificilmente seriam lidas por determinados grupos etários em idade escolar e multiplicam o número de leitores que passam a conhecer a obra, o que não aconteceria se só existisse a versão original, por todas as questões que justificam a necessidade de adaptação e acabam reforçando um dos critérios que tornam uma obra um clássico, que é o seu acesso por um número cada vez maior de leitores.
Outra ideia a ser descontruída é a de que o trabalho com obras adaptadas em sala de aula configura-se como uma “simplificação didática”, principalmente quando nos referimos ao alunado da escola pública, com todas as suas carências e limitações, inclusive quanto ao acesso à leitura. Nesse contexto, o trabalho com obras adaptadas para histórias em quadrinhos favorece o incentivo à leitura, uma vez que o contato com esse gênero é mais acessível pelo seu caráter multimodal e pela facilidade de compreensão que essa combinação semiótica oferece. No entanto, ao contrário do que se pensa, a leitura desse tipo de texto exige o desenvolvimento de habilidades específicas que estão previstas na BNCC quanto à leitura de textos multimodais e multissemióticos e que precisam ser desenvolvidas a partir de atividades de leitura incentivadas no espaço escolar. Quanto ao último questionamento, de que se deve priorizar o trabalho com as obras originais em detrimento das formas adaptadas da literatura, ficamos com o que sugere Ana Maria Machado, anteriormente citado, de que o primeiro contato com o clássico na infância não precisa ser necessariamente com o original, pois as adaptações bem-feitas e atraentes podem resolver o problema mesmo com todas as limitações inerentes ao processo de hibridização e adaptação dos gêneros textuais.
Conclui-se, então, que as histórias em quadrinhos, no contexto de uma cultura híbrida, exercem papel importante no incentivo à leitura e na promoção do contato do leitor juvenil com os clássicos literários mediante suas adaptações. Há de se levar em conta também que a geração atual tem outros interesses e preferências de leitura em que os clássicos mais antigos, em versões originárias, na maioria das vezes não se incluem. O Programa Nacional do Livro e do Material Didático - PNLD Literário tem favorecido a manutenção dos acervos escolares com a inclusão de obras adaptadas em histórias em quadrinhos que oportunizam a prática da leitura e a formação de leitores com acesso gratuito a essas obras. Resta aos educadores ofertar um cardápio variado de gêneros adaptados ou não, clássicos antigos ou modernos, além de obras contemporâneas que ampliem as possibilidades de formação de leitores nos mais variados suportes, atentando ao perfil de leitores híbridos da contemporaneidade.
Referências
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BRASIL. Guia PNLD Literário 2018. Brasília: MEC, 2018a. Disponível em: https://pnld.nees.ufal.br/pnld_2018_literario/inicio.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018b.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013.
CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas. Trad. Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
CHINEN, Nobuyoshi. Quadrinhos e a Lei nº 10.639/03: uma proposta didática. Revista Intersaberes, v. 15(36), p. 874-890, 2020. Disponível em: https://www.revistasuninter.com/intersaberes/index.php/revista/article/view/2014.
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SRBEK, Wellington; AGUIAR, José. Dom Casmurro, de Machado de Assis. Belo Horizonte: Nemo, 2017.
STEIN, Thaís. Fanfic ou Fanfiction. Dicionário Popular. s/d. Disponível em: https://www.dicionariopopular.com/. Acesso em: 05 set. 2021.
Publicado em 21 de novembro de 2023
Como citar este artigo (ABNT)
SANTOS, Betty Bastos Lopes. Entre a leitura dos clássicos e suas adaptações: processos de hibridização presentes na literatura infantojuvenil do PNLD Literário. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 45, 21 de novembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/45/entre-a-leitura-dos-classicos-e-suas-adaptacoes-processos-de-hibridizacao-presentes-na-literatura-infantojuvenil-do-pnld-literario
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