Profissão ensinar: identidade e saúde do “Eu educador”

Isabel Cristina Weisz

Doutoranda em Psicologia da Educação (PUC-SP), licenciada e mestra em Língua Portuguesa (PUC-SP), pedagoga pós-graduada em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem (PUC-RS), membro da Sociedade Brasileira de Psicologia

Os especialistas em avanços e crises de nossos tempos parecem unânimes em apontar que estamos na era da educação ou, pelo menos, que sem investimentos ou/e inovações educacionais pouco se pode fazer para evitar o caos precipitado pelo aquecimento global, pelo negacionismo científico e pela permanente campanha de desinformação viabilizada pelas fake news que atualmente compõem o denso tecido da web.

Todavia, pergunta-se: onde, quando e como se estuda científica, social e amorosamente a figura humana daqueles e daquelas que possibilitam a existência e a prática da Educação escolar, os professores? Assim, este ensaio lança um olhar a uma questão crucial já sistematizada, ignorada pelas administrações públicas: a precarização da qualidade de saúde mental e emocional dos professores brasileiros. Em face da realidade salarial da categoria, muitos são levados a ministrar elevado número de horas-aula semanais em condições de trabalho por vezes insatisfatórias, em função da falta de material didático e da violência nas escolas (refletida em agressões verbais, morais e até mesmo físicas contra alunos e professores), além de fatores antagônicos de outras ordens, como o difícil acesso ao local de trabalho e fragilidades na formação acadêmica. Em outras palavras, estamos falando do sofrimento docente sistematicamente silenciado pelos poderes públicos do país.

As vertentes que pensam a Educação mantêm o foco, geralmente, sobre o educando: as dificuldades que o estudante enfrenta ao buscar absorver conhecimento, as metodologias de ensino que mais impulsionam o seu aprendizado e os problemas sociais e econômicos que afetam imediatamente os educandos são temas que, dentre outros vários, se apresentam em recorrência crônica na Educação.

Tais conjunturas educacionais são bastante óbvias e naturais, pois, sem condições mínimas, não há como um indivíduo aprender algo. No entanto, é raro que se tenha presente o fato de que o professor também foi e continua sendo um educando. A formação continuada é uma condição sine qua non do mercado profissional do terceiro milênio. As Ciências da Educação não costumam considerar o ponto de vista do professor em relação ao ato de educar e tudo o que isso implica em termos de saúde física, emocional e psíquica. Pelo contrário, há importantes atividades do trabalho docente que sequer são notadas pelos próprios educadores, uma vez que não recebem um nome. Por exemplo: todo o educador é, na prática, um pesquisador: sem averiguar e, efetivamente, conhecer a comunidade escolar mais ampla na qual atua ele não terá como realizar um trabalho exitoso. Esses são saberes que cada docente tem que construir em cada escola onde atua (Tardiff, 2014). Da mesma forma que existe uma “predisposição cognitiva” necessária para o aprendizado – evidenciada pelos estudos de autorregulação da aprendizagem (Boruchovitch; Frison, 2020) –, há também uma “cognição” e uma “autorregulação emocional” inerentes à prática profissional de ensinar.

Nesse sentido, há que se pensar usando as “lentes” do professor sobre os lugares de fala e fazeres dele próprio como trabalhador. Quais são os inconvenientes morais, emocionais, éticos e psicológicos típicos que afetam um professor em relação ao exercício de sua função? Tudo isso precisa ser identificado, analisado e tratado de maneira interdisciplinar por pesquisadores das Ciências Sociais, da Saúde e da Educação.

É possível que a “invisibilidade” do professor – que demonstramos que ocorre devido à educação formal ministrada em instituições escolares (referimo-nos à popularização, à democratização e à obrigatoriedade do ensino escolar) – seja algo relativamente novo na história da humanidade, com cerca de aproximadamente de 200 anos de existência.

O formato atual de escola começou, de maneira sistemática e efetiva, no chamado “mundo civilizado”, auge da Revolução Industrial, pois passou a ser imperativa a necessidade de ter mão de obra minimamente produtiva e treinável nas fábricas de produção massiva de bens de consumo (Aranha, 1996).

Devemos ter em mente que, no modelo da Idade Moderna europeia, mormente na Inglaterra, na Alemanha e na França e antes do surgimento da figura do “professor de massas”, existiam os professores e as professoras particulares, chamados preceptores. Eles eram tratados com dignidade e respeito pelas famílias que os contratavam. Esses profissionais possuíam vínculos morais com as famílias – e isso não poderia ser diferente, visto que as aulas eram ministradas nas residências dos alunos. Os preceptores se comportavam segundo regras de etiqueta bem definidas. Tratava-se de uma “profissão de elite” para uma elite.

Ao contrário disso, aqui no Brasil a Educação teve início com os jesuítas ainda no período da colonização. Destarte, passou a ser parte de nossa cultura interpretar a incumbência de “educar” como um ato heroico, uma “missão” altruística, quase santa ou mística, de doar-se sem receber quase nada em troca, seja reconhecimento social ou remuneração digna (Krentz, 1986).

Por conseguinte, pensa-se tão somente nos problemas relacionados à aprendizagem: analisam-se e pesquisam-se novas técnicas que possam favorecer o ensino; contudo, a figura do “ensinante” profissional, ser humano oculto nos bastidores do papel social de professor e professora, não é muito estudada. Qual foi a última vez que lemos ou ouvimos alguém discorrer sobre tópicos como estes: “Quais são as síndromes típicas que acometem um(a) professor(a) no exercício da sua carreira?”, “É comum sentirem ansiedade (no sentido clínico da palavra) ou apresentarem distúrbios alimentares ou de sono?” ou “Qual é o senso de identidade dos educadores brasileiros, tanto enquanto indivíduos como enquanto partícipes de uma comunidade mais ampla: a dos professores de um país da América do Sul chamado Brasil?”.

Um educador se sente solitário, desamparado ou mesmo frustrado em suas práticas de produção de conteúdo de ensino a partir de determinados parâmetros curriculares, buscando técnicas e/ou elementos adequados para levar esse conteúdo a seus estudantes, muitas vezes tendo que disputar a atenção com telefones celulares e tablets de último tipo durante uma aula. Assim, outra questão surge: a postura adotada pelo gestor da escola em que esse educador leciona favorece ou intimida uma docência autêntica, pessoal, que motive os estudantes a buscar novos conhecimentos de maneira autônoma, a se interessar mais pelas Ciências?

Ressaltamos aqui que, em geral, os professores não têm muito tempo para refletir sobre um fato de essencial importância no mundo contemporâneo: o educador é o primeiro divulgador científico com o qual uma pessoa tem contato, ainda na infância. Desse modo, o que se sabe sobre como esse profissional educador – que pisa diariamente no chão de uma sala de aula – realmente se sente em face a esse conjunto de questões? Tais temas não são objetivamente estudados nas universidades (ou licenciaturas) que formam professores.

Urge que as Ciências da Educação (que incluem a Pedagogia, as Didáticas e Metodologias de Ensino, a Psicologia da Educação e as Neurociências da Cognição) cogitem criar uma seção, uma especialidade disciplinar que comporte também as “Ciências do Educador”. Quem é esse educador? Como ele se forma, por que ele escolheu essa função? Como ele é visto pelos governantes e pela população nas diversas fases da história? Para onde tal concepção do papel do educador aponta em nossa sociedade brasileira, uma vez que existe um grande e complexo relativismo social quanto à importância do professor nos diversos países do mundo? A educação ministrada profissionalmente por seres humanos (seja ela presencial ou em EaD) será rarefeita pelas novas tecnologias? Qual o nosso papel e quais as nossas intervenções nos temas especificados aqui e nas muitas situações que decorrem deles?

Este texto reflexivo tem o objetivo de colocar na agenda dos debates das reuniões escolares semanais algumas das necessidades, adversidades e angústias de cunho psicológico e subjetivo encaradas pelos docentes brasileiros. Com isso, nosso intuito é fomentar a criação de frentes diversificadas para a informação e prevenção da síndrome de Burnout em nossos educadores. Sabemos indubitavelmente que, valorizando e cuidando da saúde de nossos professores, aperfeiçoaremos nossa qualidade de ensino e construiremos, de maneira palpável, os avanços culturais, científicos, tecnológicos e econômicos almejados por todos os brasileiros.

Referências

ARANHA, M. L. A. História da Educação. 2ª ed. São Paulo: Moderna. 1996.

BORUCHOVITCH, E.; GOMES, L. M. B. (org.). Autorregulação da aprendizagem: cenários, desafios, perspectivas para o contexto educativo. Petrópolis: Vozes, 2020.

KRENTZ, L. Magistério: vocação ou profissão? Educação em Revista, nº 3, p. 12-16, 1986. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/edur/n03/n03a04.pdf.

TARDIFF, M. Saberes docentes e formação profissional. 17ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

Publicado em 28 de novembro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

WEISZ, Isabel Cristina. Profissão ensinar: identidade e saúde do “Eu educador”. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 46, 28 de novembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/46/profissao-ensinar-identidade-e-saude-do-reu-educadorr

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