Dificuldades de desenvolvimento da linguagem oral e escrita de portadores do transtorno do processamento auditivo central

Claudia Mara Marcelo

Especialista em Educação Especial e Inclusiva (Faculdade de Educação São Luís)

Mario Marcos Lopes

Docente do Centro Universitário Barão de Mauá e da Faculdade de Educação São Luís, tutor na UFTM, professor da rede pública municipal de Ribeirão Preto/SP

Desde seu nascimento, a criança é inserida em um mundo de números, imagens, letras e sons. Importante aspecto a ser considerado no desenvolvimento infantil é a aquisição da linguagem oral e escrita. Nessa perspectiva, podemos observar que para o adequado aprendizado da linguagem oral e escrita, precisam existir diversas combinações de fatores biológicos, sociais e cognitivos, envolvendo aspectos de probidade motora, socioemocional e sensório perceptual.

Partindo desse pressuposto, compreende-se que crianças que apresentam o transtorno do processamento auditivo central (TPAC) geralmente manifestam questões ao adentrar o ambiente escolar, demonstrando dificuldades de manter atenção, recordar o que ouviram, identificar a origem dos sons, distração, lentidão para responder e, principalmente, dificuldades no processo de aquisição da leitura e escrita.

Diante disso, procuramos compreender a seguinte problemática: o transtorno do processamento auditivo central pode gerar obstáculos no processo de desenvolvimento da linguagem oral e escrita? Nessa perspectiva, há necessidade de compreender o que seria o TPAC e como o educador pode lidar com fatores facilitadores ou/e comprometedores do sujeito que aprende.

A pesquisa busca verificar e refletir sobre o que é o TPAC, suas possíveis origens e ainda se esse transtorno está relacionado às dificuldades no aprendizado da linguagem oral e escrita.

Linguagem oral e escrita

Um importante aspecto a ser considerado no desenvolvimento infantil é a aquisição da linguagem oral e escrita. A sua aprendizagem é um dos elementos importantes para que as crianças possam ampliar suas possibilidades de inserção e participação nas diversas práticas sociais.

Ambas são modalidades que se organizam em palavras e textos e, por meio da linguagem verbal, criamos, compomos e recompomos nossa realidade. Vivenciando-a, percebemos que somos cercados de linguagem por todos os lados. Nesse movimento, a linguagem se faz por meio da fala e, por ela, as crianças vão se conhecendo. Segundo Bakhtin (1998, p. 108),

na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal, ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa operar. [...] Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna, é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência.

Pode-se compreender que é por meio da linguagem que aprendemos a nos comunicar. Nesse caminho, entramos no fluxo da cultura que, segundo o autor, envolve um conjunto de práticas discursivas e formas de utilizar a língua.

Isso posto, de acordo com Vygotsky (1994), o processo de mediação pelo outro é essencial no processo de aprendizagem. A linguagem torna-se mediadora na construção do pensamento do sujeito e ocorre normalmente na relação da criança com outras crianças e com os adultos.

Para Vygotsky (1994), a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada. Signos são relações e entidades reais, ou seja, “gradualmente, esse elo intermediário (a linguagem falada) desaparece e a linguagem escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as entidades reais e as relações entre elas” (Vygotsky, 1994, p. 140). Sendo assim, compreendemos que o processo de desenvolvimento da linguagem escrita não pode estar relacionado a um exercício estritamente mecânico, mas a um longo processo de apropriação dos signos pela criança.

Segundo Malaguzzi (1993 apud Dalbergh, Moss e Pence, 2003, p. 57),

quando as crianças nascem elas são banhadas por um oceano de palavras, por signos, aprendendo a própria arte de falar, a arte de escutar, a arte de ler e a de dar significado aos signos. Quero dizer com isso que a criação implica em encontrar uma solução para a competência cada vez maior que se refere a comunicação.

Compreende-se, então, que a criança, desde o seu nascimento, está inserida em um mundo completo de comunicações verbais. Ao entrar na escola, ela aprimora esse desenvolvimento linguístico.

Dificuldades de aprendizagem

Quando falamos sobre aprendizagem é necessário que pensemos nos processos que são envolvidos para que ela aconteça com sucesso. Assim, diversos fatores precisam ser considerados, como, por exemplo, suas habilidades cognitivas, sua audição, seu raciocínio, sua memória e sua concentração. Quando essa aprendizagem não ocorre, há causas que precisam ser investigadas.

Alguns escritores destacam que muitos fatores biológicos podem contribuir para que as dificuldades de aprendizagem ocorram. Smith e Strick (2001, p. 22) destacam “lesão cerebral, erros no desenvolvimento cerebral, desequilíbrios neuroquímicos e hereditariedade”. No entanto, a maioria delas é considerada permanente. Contudo, quando a criança é bem estimulada e trabalhada, esses fatores podem regredir ou estacionar.

As dificuldades de aprendizagens podem ser categorizadas como transitórias ou permanentes e ocorrerem em qualquer momento do processo de ensino-aprendizagem. Correspondem a déficits funcionais superiores, incluindo a linguagem, a percepção, o raciocínio logico e a cognição.

Segundo pesquisas na área, a dificuldade de aprendizagem, por vezes referida como desordem de aprendizagem ou transtorno de aprendizagem, revela-se quando o indivíduo apresenta dificuldades em aprender efetivamente. Segundo Tabile e Jacometo (2017), a desordem no aprendizado afeta a capacidade do cérebro em receber e processar informações, o que pode comprometer o aprendizado. Corroborando Gagné (1980, p. 91), “a aprendizagem é inferida quando ocorre uma mudança ou modificação no comportamento, mudança esta que permanece por períodos relativamente longos durante a vida do indivíduo”.

Desse modo, ressalta-se o papel da escola na vida das crianças, pois na escola a criança acessa, em construção, as mudanças necessárias em relação às condições que possam facilitar o seu aprendizado. Para Lane e Codo (1993, p. 174),

o meio escolar deve ser um lugar que propicie determinadas condições que facilitem o crescimento, sem prejuízo dos contatos com o meio social externo. Há dois pressupostos de partida: primeiro, é que a escola tem como finalidade inerente a transmissão do saber e, portanto, requer-se a sala de aula, o professor, o material de ensino, enfim, o conjunto das condições que garantam o acesso aos conteúdos; segundo, que a aprendizagem deve ser ativa e, para tanto, supõe-se um meio estimulante.

Transtorno do processamento auditivo central: o que é?

O processamento auditivo central diz respeito a mecanismos e processos do sistema auditivo, responsáveis pela localização e lateralização sonora, pela discriminação auditiva, pelo reconhecimento de padrões auditivos e aspectos temporais da audição (resolução temporal, mascaramento temporal, integração temporal e ordenação temporal) e pelo desempenho auditivo na presença de sinais acústicos competitivos.

O transtorno do processamento auditivo central (TPAC) pode ocorrer quando o sujeito apresenta dificuldades na compreensão das informações. De alguma maneira, o processamento auditivo pode ser comprometido com as alterações dessas habilidades auditivas, pois “verifica-se que ao serem rompidas esta e outras etapas, o distúrbio é gerado, sendo associado a dificuldades em linguagem de ordem superior, aprendizagem e funções de comunicação” (Asha, 2005).

Os sujeitos com TPAC manifestam características comuns aos transtornos e às dificuldades de aprendizagem, como: dificuldades em escrita e leitura, em memorizar auditivamente, analisar certas informações e atenção. Como profissionais da educação, o educador em sala de aula deve estar atento às situações de aprendizagem, observando o comportamento do estudante e o seu rendimento, criando estratégias e analisando-o em relação às suas dúvidas e seus questionamentos.

Entretanto, quando não há uma combinação adequada desses fenômenos, qualquer área do desenvolvimento e desempenho pode ser afetada, o que resulta em dificuldades no processo de aprendizagem da criança. Dessa forma, concluímos que, para aqueles sujeitos com TPAC, há prejuízos no processo de desenvolvimento da linguagem oral e escrita. O TPAC, segundo Reis, Dias e Boscolo (2018, p. 12),

é decorrente de déficits no processamento dos sinais acústicos, não atribuídos à perda auditiva nem a déficit intelectual. Ocorre quando há dificuldades em uma ou mais habilidades auditivas necessárias para o correto processamento das informações sonoras. Esse distúrbio faz com que ocorra uma dificuldade na interpretação dos padrões sonoros, prejudicando o indivíduo ao atender, discriminar, reconhecer, recordar e/ou compreender informações apresentadas aos canais auditivos, ocasionando prejuízos na compreensão das informações, alterações no comportamento e dificuldades acadêmicas.

Em resumo, o desenvolvimento do processamento auditivo pode depender da integridade do sistema auditivo, conforme a observação do sujeito que vivencia sons, sejam eles verbais e/ou não verbais, no ambiente em que está inserido.

Considerações finais

O presente trabalho possibilitou uma análise de como o TPAC pode interferir de maneira significativa na aprendizagem, bem como compreender os fatores neurológicos e ambientais envolvidos nesse processo. A falta de informações e de conhecimento a respeito do transtorno, pode dificultar a ação dos profissionais atuantes nas escolas no que diz respeito à sua identificação.  

Não há como negar a complexidade do atendimento à diversidade dessas crianças, pois a inclusão na escola regular é bem mais complexa do que o simples cumprimento da legislação vigente no país. Ela envolve questões desafiadoras, se for considerada a necessidade de transcender à concepção tradicional que parece predominar em boa parte de nossas escolas.

Ademais, para compreender o processo de aprendizagem e as dificuldades presentes na sala de aula é preciso entender o funcionamento do cérebro, suas funções cognitivas, afetivas, emocionais, fazendo dele um grande aliado para a educação.

Referências

AMERICAN SPEECH-LANGUAGE-HEARING ASSOCIATION (ASHA). Distúrbio auditivo (central) de processamento (relatório técnico). 2005. Disponível em: www.asha.org/policy. Acesso em: 30 dez. 2022.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

DAHLBERG, Gunila; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Qualidade na Educação da primeira infância: perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artmed, 2003.

FONSECA, Vítor. Dificuldades de aprendizagem: abordagem neuropsicológica e psicopedagógica ao insucesso escolar. Lisboa: Âncora, 2004.

GAGNÉ, Robert M. Princípios essenciais da aprendizagem para o ensino. Porto Alegre: Globo, 1980.

LANE, Silva T. M.; CODO, Wanderley (org.). Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.

REIS, Talita Gallas dos; DIAS, Roberta Freitas; BOSCOLO, Cibele Cristina. Conhecimento de professores sobre processamento auditivo central pré e pós-oficina fonoaudiológica. Revista Psicopedagogia, São Paulo, v. 35, n° 107, p. 129-141, 2018.

SMITH, Corinne; STRICK, Lisa. Dificuldades de aprendizagem de A a Z: um guia completo para pais e educadores. Porto Alegre: Artmed, 2001.

TABILE, Ariete Fröhlich; JACOMETO, Marisa Claudia Durante. Fatores influenciadores no processo de aprendizagem: um estudo de caso. Revista Psicopedagogia, São Paulo, v. 34, n° 103, p. 75-86, 2017.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superioresSão Paulo: Martins Fontes, 1994.

Publicado em 05 de dezembro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

MARCELO, Claudia Mara; LOPES, Mario Marcos. Dificuldades de desenvolvimento da linguagem oral e escrita de portadores do transtorno do processamento auditivo central. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 47, 5 de dezembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/47/dificuldades-de-desenvolvimento-da-linguagem-oral-e-escrita-de-portadores-do-transtorno-do-processamento-auditivo-central

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