A leitura e a escrita na escola prisional feminina: um diálogo a partir de Paulo Freire

Ivanilde Apoluceno de Oliveira

Pós-doutora em Educação (PUC-Rio), doutora em Educação (PUC-SP e UNAM-UAM México), docente e pesquisadora do PPGED, coordenadora do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire da UEPA, bolsista produtividade do CNPq2

Suzianne Silva Tavares

Graduada em Pedagogia (UEPA), doutoranda em Educação (PPGED/UEPA), assessora Pedagógica do Curso de Educação Física da UEPA

A leitura “não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”, (Freire, 1989, p. 9), relacionando-se à interpretação do mundo. No contexto das escolas prisionais, observamos que as práticas de leitura e escrita estão intimamente relacionadas com a política prisional da remição da pena, a exemplo de projetos de ‘remição de pena pela leitura’, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Neste artigo, problematizamos as práticas de leitura e escrita que se limitam à política prisional do controle do tempo, da vigilância, da remição da pena e das práticas de evangelização. O diálogo será sustentado pela concepção freiriana de educação que considera o papel/experiência dos sujeitos no processo de construção do conhecimento, considerando-se as suas vivências durante o processo de produção de leitura.

Como fonte principal de dados, selecionamos documentos públicos que estabelecem critérios para a ‘remição de pena pela leitura’ nos estabelecimentos penitenciários estaduais. No contexto das escolas prisionais, a leitura tem se limitado ao ensino de valores, à política de ressocialização, à disciplina e ao controle do tempo (ociosidade), configurando-se no mito do letramento e limitando a educação escolar a uma forma de manipular as ações das educandas, desconsiderando suas experiências de letramento existentes desde antes do momento da privação de liberdade.

De acordo com o levantamento de 2019 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), com base em informações prestadas pela direção das unidades prisionais do Brasil, dos 748 mil presos no Brasil, pelo menos 327 mil não completaram os 9 anos do Ensino Fundamental e 20 mil são considerados analfabetos. Entretanto, apenas 123 mil pessoas presas estão matriculadas em alguma atividade educacional. Desse total, 23.879 participam de algum programa de remição pela leitura.

Para Godinho e Julião (2021), as pessoas inseridas no contexto prisional produzem práticas de leitura e escrita, embora tenham baixa escolaridade (90% da população prisional brasileira não têm a escolaridade básica obrigatória completa e mais de 60% sequer o Ensino Fundamental completo). A escrita e leitura de cartas para familiares e amigos, de bilhetes que circulam internamente entre os presos e de documentos relacionados ao cumprimento de pena (petições, alvarás, informações sobre o processo) são comuns e amplamente valorizados no espaço prisional.

De acordo com a Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021, há procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade. Contudo, deve-se problematizar até que ponto tais práticas reconhecem o papel das mulheres na produção dessas atividades, pois o fato de ter o Ensino Fundamental incompleto não significa que a maioria desses sujeitos não possui práticas de leitura ou mesmo que a escola prisional não desenvolva situações de leitura, pautadas na vivência desses coletivos.

No Art. 2º, a resolução reconhece o direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas, considerando-se as atividades escolares, as práticas sociais educativas não escolares e a leitura de obras literárias. As atividades escolares são aquelas de caráter escolar, organizadas formalmente pelos sistemas oficiais de ensino, de competência dos estados, do Distrito Federal e, no caso do sistema penitenciário federal, da União, que cumprem os requisitos legais de carga horária, matrícula, corpo docente, avaliação e certificação de elevação de escolaridade. As práticas sociais educativas não escolares são atividades de socialização e de educação não escolar, de autoaprendizagem ou de aprendizagem coletiva, assim entendidas por ampliarem as possibilidades de educação para além das disciplinas escolares.

As práticas sociais escolares e não escolares são processos que se complementam e que estão interrelacionados, não se sobrepondo um ao outro, mas considerando os saberes escolares e a experiência na produção das situações de leitura. Nesse cenário, o projeto político-pedagógico (PPP) da escola prisional feminina deve ser elaborado no sentido de reconhecer tanto a importância da educação formal quanto as diferentes formas de interação humana, as vivências e as experiências dessas mulheres, antes mesmo do momento de privação de liberdade, com papel ativo na promoção de novos saberes articulados às práticas de leitura.

Nesse sentido, partindo de uma abordagem freiriana de educação, este artigo apresenta alguns pontos relevantes para pensarmos como as práticas de leitura e escrita estão presentes na escola prisional, qual é a sua dimensão política (evangelismo, controle, disciplina) ou se reconhece que, apesar da situação de privação de liberdade, as mulheres apresentam uma vasta vivência que lhes possibilita promover práticas de leitura que não somente as que estão relacionadas à educação formal ou à obra literária, mas, relacionada à própria vivência, à interação humana e à produção de novos saberes advindos do próprio grupo social no qual serão inseridas.

Nesse contexto, temas como violência, abuso sexual, sexualidade, racismo e diferença de gênero, aparecem como marcadores sociais que estiverem presentes em algum momento da trajetória de vida dessas mulheres. Assim, esses temas se apresentam como possibilidades de a escola prisional desenvolver um trabalho diferenciado, para além de uma simples atividade relacionada a um determinado livro didático, que não esteja relacionado a essas vivências, reforçando o direito à remição. Contudo, no interior de tais práticas, não há uma intencionalidade educativa, uma política de transformação social e participação ativa dessas mulheres.

Freire (1989) reconhece o papel da educação na transformação ética, política e da própria existência humana dos sujeitos. “Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz” (Freire, 1989, p. 11). Nas palavras do autor,

por isso é que, ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, cujo desaparecimento recente me feriu e me doeu, e a quem presto agora uma homenagem sentida, já estava alfabetizado. Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais. Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a "leitura" do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da “palavramundo” (Freire, 1989, p. 11).

No tocante aos novos estudos sobre letramento, Street (2014) defende que o letramento parte da prática social, por meio do processo de interação humana e, tão logo, por meio da vivência relacionada à “leitura” do mundo, como conceituada na obra de Freire. O fato de ser alfabetizado não pode ser considerado como uma condição primeira para desenvolver e compreender os processos de leitura e escrita, pois de acordo com Godinho e Julião (2021), existem diversos letramentos locais, produzidos por grupos sociais diferentes, com usos cotidianos.

Para Godinho e Julião (2021), deve-se considerar que mesmo as pessoas definidas como analfabetas têm práticas letradas, pois dificilmente encontraremos culturas sem qualquer grau de letramento. Ler é compreender o mundo que nos cerca com base nas diferentes formas de interação humana, no contato com as diferentes culturas e na compreensão da realidade que está à nossa volta.

Nessa dimensão, ler também significa um ato político, uma estratégia de libertação das grades que não aprisionam somente o corpo, mas que refletem a política penal do controle, da vigilância, da disciplina e das ideologias.

Desse modo, este estudo tem por objetivo contribuir para repensar novos rumos para as práticas de leitura e escrita na escola prisional feminina, de modo a considerar os saberes e as vivências que estão para além dos muros da escola, que são produzidas no cotidiano prisional e representadas em práticas letradas como processos de interação humana.

A leitura como atividade de interação humana

Assim como a educação, a leitura constitui um direito humano indispensável à vida. É a partir da leitura que o ser humano encontra possibilidades “outras” de interação, a partir da convivência com os diferentes sujeitos e grupos sociais. Conviver ou/e sobreviver em uma sociedade letrada, preconceituosa e, ainda, marcada por estigmas sociais para as populações menos assistidas por ações político-educacionais, tornou-se um dos grandes desafios, principalmente, para a população encarcerada.

No âmbito escolar e social, a leitura assume importante papel frente à alfabetização e à socialização de novos saberes. Entretanto, a partir dos estudos de Godinho e Julião (2021), este artigo também problematiza e levanta alguns questionamentos acerca do lugar da leitura na Política de Execução Penal Brasileira, visto que as práticas de leitura não podem ser reduzidas exclusivamente à remição da pena, mas a um conjunto de ações, vivências e saberes que perpassam a trajetória de vida das mulheres que cumprem pena privativa de liberdade e que demarcam a leitura como uma prática social que não está presente exclusivamente na escola e/ou que é produzida somente a partir da leitura de obras literárias.

A leitura aqui problematizada está presente nas relações sociais, entre os diferentes coletivos populares, ou seja, entre grupos não alfabetizados pelos processos de escolarização formal, mas que se encontram em situação de privação de liberdade, produzindo situações de leitura, a partir de seu contexto social e prisional.

Ao rememorar um pouco de sua infância e das situações que produziram as práticas de leitura, Freire (1989) mostra que a leitura não pode ser reduzida às práticas escolares, mas pode partir da realidade dos sujeitos.

Há pouco tempo, com profunda emoção, visitei a casa onde nasci. Pisei o mesmo chão em que me pus de pé, andei, corri, falei e aprendi a ler. O mesmo do primeiro mundo que se deu à minha compreensão pela “leitura” que ele fui fazendo. Lá, re-encontrei algumas das árvores da minha infância. Reconheci-as sem dificuldade. Quase abracei os grossos troncos – os jovens troncos de minha infância. Então, uma saudade que eu costumo chamar de mansa me envolveu cuidadosamente. Deixei a casa contente, com a alegria de quem re-encontra gente querida (Freire, 1989, p. 11).

No âmbito prisional, as práticas de leitura estão relacionadas ao uso do livro didático e da Bíblia como mecanismo de disciplina, controle e evangelismo. Pouco se observa no interior dos projetos de leitura ou mesmo nas práticas pedagógicas escolares, situações em que as mulheres em situação de cárcere possam participar de forma ativa na produção das ações de leitura, em que os saberes da experiência e os produzidos durante o encarceramento pelas trocas culturais são reconhecidos como parte integrante desse processo mais amplo de reconhecimento desses saberes que demarcam as experiências dessas mulheres.

A pesquisa realizada por Tavares (2017) aponta que a infância da maioria das mulheres que cumprem pena privativa de liberdade demarca situações de violência (sexual, doméstica, de gênero, raça etc.). Importante salientar, como bem menciona Freire, que a infância traduzida por más experiências deixa as “marcas” de um passado/trajetória de opressão e violência. Fatores que precisam estar presentes no chão da escola, pois a leitura também pode ser construída a partir deles, de modo a não se constituir uma prática de reprodução e/ou controle, mas uma reflexão da própria vida/existência. O que me faz querer olhar o passado e refletir sobre ele, almejando algo novo?

As experiências representam modos de ser e existir, demarcam situações de leitura do mundo, de um mundo em particular, possibilitando que se aprenda a partir delas para posteriormente ressignificá-las. Nesse cenário, a interação humana está presente nos processos culturais, de construção de saberes, no contexto social, educacional, familiar e prisional. Ao analisar as práticas de leitura e escrita, Godino e Julião (2021) afirmam que elas são imprescindíveis à reflexão sobre as condições sócio-históricas e culturais em que os sujeitos produzem. Em outras palavras, considera-se que a leitura e a escrita são práticas sociais e, portanto, não podem existir ou mesmo ser produzidas fora das relações sociais (interações humanas). Não estamos imersos na história; nós a fazemos cotidianamente por meio das interações com os diferentes sujeitos que usam a leitura e a escrita em seu cotidiano. Nessa direção, a pesquisa de Godinho e Julião (2021) apresenta algumas reflexões acerca dos novos estudos sobre letramento que têm como um dos principais objetivos romper com a visão reducionista de letramento, que considera válida uma única forma de letramento (a ocidental), ignorando os diversos letramentos locais produzidos por diferentes grupos sociais, que cotidianamente realizam situações de leitura e escrita.

Street (2014), ao demarcar o campo dos novos estudos sobre letramento, buscou compreender a leitura e a escrita como práticas sociais, problematizando a oposição entre o modelo autônomo de letramento e a proposição do modelo ideológico.

As pessoas definidas como analfabetas têm práticas letradas porque dificilmente encontraremos culturas sem qualquer grau de letramento. O que existe, sim, é a escassez de contato com um tipo específico de letramento: aquele legitimado pela escola, que reproduz um modelo de letramento ocidental (Godinho; Julião, 2021, p. 4).

As práticas letradas não são produzidas somente pelas pessoas que foram alfabetizadas, mas mesmo as que ainda não passaram pelo processo da alfabetização formal, podem desenvolver tais práticas partindo das relações humanas estabelecidas antes e durante o processo penal. Mas de que forma a escola considera as vivências e as práticas de letramento desses sujeitos? Que tipos de textos e de escrita são introduzidos pela escola prisional?

Considerando que a escola assume um importante papel no desenvolvimento das ações educacionais é preciso problematizar essas questões a fim de provocarmos novos debates e novos rumos para a educação prisional e à política de execução penal. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) dentro do sistema prisional demanda novos desafios, a saber, considerar as práticas de leitura que são devolvidas pelos processos de interação humana, ressignificando esses espaços e dando sentido à vida dessas mulheres.

Por isso, a infantilização do ensino no contexto da EJA prisional também é algo a ser problematizado no contexto das políticas públicas, pois, como dito anteriormente, as práticas letradas não são produzidas somente pelas pessoas que foram alfabetizadas. Nesse cenário, pessoas com baixo grau de escolarização também possuem autonomia para produzirem situações de leitura, a partir das interações e de seu próprio contexto.

A leitura e a escrita a partir da experiência

Estas experiências de letramento precisariam ser reconhecidas e valorizadas pelas políticas públicas de remição de pena pela leitura que se propusessem a ampliar tais experiências sem reproduzir o modelo autônomo de letramento, que somente reconhece as formas de letramento legitimadas pela escola. A leitura como prática social é indissociável dos sujeitos que leem, de suas motivações e do contexto de vida em que realizam a leitura. Na prisão, ler significa um modo de ter contato extramuros, de estabelecer ou manter vínculos de afeto ameaçados pelo isolamento no estabelecimento prisional, assim como de acompanhar a própria situação jurídica e, com base nessas informações, projetar o próprio futuro após o encarceramento (Godinho; Julião, 2021, p. 4).

A leitura como prática social está para além das práticas de letramento legitimadas pela escola, pois se configura no contexto de vida por meio da experiência humana, como já mencionado. A leitura amplia o repertório cultural dos sujeitos envolvidos no processo, considerando que cada pessoa aprende e se desenvolve a partir da vivência com o outro.

Sobre os saberes da experiência, Freire (1996) considera que a educação pode se constituir num movimento de busca, de consideração com a diversidade de saberes que estão presentes na escola. Nessa direção, os saberes da experiência de educadores e educandos são a base do processo pedagógico, o qual representa “um texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “escrito" e “reescrito” (Freire, 1996, p. 50). O autor ainda afirma:

Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra (Freire, 1996, p. 50).

A educação é um ato político que está a serviço de todos os envolvidos no processo educacional. O ato de educar envolve bom senso, criticidade, autonomia, liberdade, solidariedade entre educador e educando, pois, uma educação verdadeiramente comprometida com a transformação social dos educandos é aquela que desenvolve possibilidades de diálogo de forma democrática.

Considerando que a educação não é neutra, o ato de educar sempre apresenta uma intencionalidade (ou para a libertação, ou para a manipulação ideológica). Nessa direção, as práticas de leitura na escola prisional feminina devem considerar o que as mulheres-educandas trazem em si mesmas. Para Godinho e Julião (2021), simbolizar a experiência relaciona-se diretamente com o ato de fabular. Há uma conexão entre a vivência e a fabulação na constituição do modo como cada pessoa interpreta o mundo aos outros e para si.

O contato com textos literários possibilita interpretações diferentes da própria vida e do mundo. Possibilita o diálogo do leitor ou leitora com mundos e experiências humanas diversas, despertando reflexões acerca da existência, por isso os textos são capazes de provocar emoções, lembranças, reflexões e conhecimentos inéditos até o momento daquela leitura. Reiteramos, portanto, a necessidade dessas obras estarem associadas à realidade das mulheres educandas, de modo a abranger suas experiências com a violência, criminalização, desigualdades de gênero etc.

A possibilidade de ler a obra de uma escritora, por exemplo, pode despertar a reflexão acerca do papel da mulher na literatura, estimulando outras mulheres a tomarem uma atitude diante da própria situação de opressão, almejando novos horizontes sociais. A Lei nº 13.696/18, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita, determina que ficam vedadas a censura, a existência de lista prévia de títulos para fins de remição e a aplicação de provas. A flexibilização com o que se está lendo também é um ato de cuidado com o outro e com a sua aprendizagem. Godinho e Julião (2021) destacam que a leitura do texto literário contribui para a descoberta de si mesmo nas diferentes fases da vida, representando a formação da identidade pessoal em contraposição ao processo de mortificação do eu, anunciado por Goffman (2015).

Nessa direção, a leitura é uma experiência que se contrapõe a tudo o que se vive na prisão, por consistir na possibilidade de um reencontro consigo mesmo e com o outro, em uma espécie de “fuga” da situação de opressão advinda do encarceramento. A educação e as práticas de leitura e escrita são instrumentos indispensáveis à promoção e à valorização da vida humana, a fim de cultivar os sonhos e a sensibilidade, em busca da superação dos desafios e da transformação pessoal e coletiva.

Para muitas mulheres em situação de cárcere, as práticas de leitura e escrita ainda são utopias, pois são práticas excludentes da escola, com baixa oferta de vagas nos projetos, fatores que tendem a desestimular e/ou inibir o seu sonho.

A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na inteligência mecanicista portanto determinista da História, o futuro é já sabido. A luta por um futuro assim “a priori” conhecido prescinde da esperança (Freire, 1996, p. 38).

O autor chama a atenção para o papel da História frente ao movimento educacional, considerando que o futuro e mesmo o presente não são determinados (resistentes a todo movimento de mudanças), pois devem estar sujeitos às intervenções humanas dentro de uma perspectiva de evolução social e humana, considerando as diferenças, as subjetividades e os sonhos, dentro das dimensões éticas, políticas e estéticas.

Uma educação de cunho humanista contribui com o desenvolvimento de práticas que problematizam a realidade em que o ser humano possa ser crítico/questionador. A leitura de uma determinada obra literária que aborda a questão de gênero, por exemplo, pode contribuir para que as mulheres em situação cárcere reflitam sobre as desigualdades do presídio masculino e feminino, sobre a sua condição de ser mulher e presidiária na sociedade brasileira, sobre ser mulher e analfabeta, mãe solteira (chefe do lar) e outros. Em oposição a essas questões, as mulheres poderão refletir sobre sua capacidade de intervir/mudar a realidade. Nessa direção, o contato com a leitura de obras literárias representa a esperança de sonhar um sonho possível por meio da atuação sobre o mundo.

Ao relatar a experiência vivenciada por meio de um projeto de extensão universitária desenvolvido em um presídio feminino do Rio Grande, Godinho e Julião (2019) apontam que a participação das mulheres nas rodas de leitura possibilitou a prática de leitura coletiva às participantes, produzindo reflexões sobre textos literários de autoria feminina e estabelecendo relações com as próprias histórias de vida e leituras de mundo, como descrito no trecho a seguir:

Ao todo, quatro grupos, com no máximo 15 mulheres cada, participaram de dinâmicas de apresentação de escritoras brasileiras e sua importância para o reconhecimento da literatura de autoria feminina; leitura em voz alta de contos de Lygia Fagundes Teles, Marina Colasanti, Elisa Lucinda, Conceição Evaristo e outras; reflexão sobre o tema, o enredo, os personagens, o desfecho; estudo do tratamento estético da linguagem por cada autora; debate sobre aproximações do conto com a vida das mulheres que somos e das que conhecemos; escrita coletiva de resenha do conto estudado; e escrita individual de resenha do conto estudado (Godinho; Julião, 2019).

O contato com a leitura de obras literárias não se resume à questão da garantia dos direitos humanos, não excluindo ou negando a sua importância, mas o fato de ler/conhecer tais autoras possibilita a relação da reflexão da obra em interface com suas experiências de vida.

Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar como ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo (Freire, 1996, p. 39).

A leitura crítica de determinada obra significa estar no contexto, como definido por Freire (1996), problematizando o futuro como perspectiva e não como algo determinado. Estar no mundo representa essa possibilidade de intervenção. Ao passo que homens e mulheres evoluem nas dimensões social, educacional, espiritual, ética e humana, a sociedade humana, como um todo, também passa por esse processo de transformação social.

A educação é esse constante movimento e o movimento faz parte da história como processo de transformação. O ser humano é peça fundamental para mudar o contexto engessado por práticas excludentes e opressoras. É ele quem, por meio dos processos de interação social e educacional, tem a capacidade de modificar a base da pirâmide social sobre a qual são estabelecidas as relações hegemônicas de poder.

Pensar a organização social e educacional a partir da ótica freiriana constitui um processo libertador, que possibilita olhar a realidade a partir de uma perspectiva crítica. Em contribuição ao pensamento de Freire, as experiências com a leitura também são apontadas por Petit (2013; 2010), a partir da relação entre texto e mundo, entre enredo e histórias de vida dos sujeitos envolvidos no processo. Essas experiências possibilitam o encontro do ser humano consigo mesmo e com o outro, encontrando um lugar de pertencimento, de construção de identidades, de leitura reflexiva do texto e do mundo e de reconhecimento da literatura como um direito.

A leitura e a escrita na escola prisional feminina a partir das contribuições de Paulo Freire

A leitura da obra A importância do ato de ler (Freire, 1989) apresenta uma dimensão “outra” do ato de ler que vai além da simples codificação da palavra escrita. Para Freire (1989), o ato de ler está diretamente relacionado à leitura do mundo, o que significa dizer que os “textos”, as “palavras” e as “letras” são produtos dos fenômenos da natureza ou mesmo das relações sociais estabelecidas entre os grupos. A obra problematiza sentidos “outros” do ato de ler por meio da dimensão cultural do vivido. Nesse cenário, os “textos”, as “palavras”, as “letras” são produzidas

no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolegar (Freire, 1989, p. 10).

Para o autor, a leitura do mundo precede a leitura da palavra, pois linguagem e realidade estão intimamente relacionadas dentro do processo de compreensão do texto, implicando na percepção das relações entre o texto e o contexto. O acesso à escola e aos projetos de leitura são fundamentais frente ao sistema de garantia dos direitos humanos, pois amplia os repertórios de leitura das mulheres privadas de liberdade. Consoante Godinho e Julião (2019), a educação é um direito essencial para o desenvolvimento das sociedades, não podendo ser condicionada a uma função ou missão (formação, controle, disciplina, evangelismo, terapia etc.), mas à formação integral do ser humano “em suas capacidades, necessidades e sonhos – sim, sonhos, todos temos direitos a sonhar e criar no âmbito da imaginação novas formas de viver, pensar, agir e interagir no mundo” (Godinho; Julião, 2019, p. 7).

Sonhar é ter esperança em um futuro melhor, em uma sociedade mais justa e igualitária, na qual homens e mulheres sejam capazes de agir de forma pessoal e coletivamente, com autonomia. Sonhar é não somente acreditar na mudança de uma determinada realidade, mas provocar inquietações, agindo ativamente para o alcance dela. Nessa direção, Freire (1996, p. 101) afirma que

o aprendizado, por outro lado, por parte dos esmagados e das esmagadas, dos impedidos de ser, dos renegados, de que é possível, pela luta séria, justa, decidida, incansável, refazer o mundo. De que a esperança tem sentido se é partejada na inquietação criadora do combate na medida em que, só assim, ela também pode partejar novas lutas em outros níveis.

Quando alguma situação, fato e/ou conduta gera inquietação no ser humano é um sinal de que algo está inconcluso, de que a sociedade e a escola não estão prontas. A inquietação de que trata Freire é resultante da tentativa do controle social, hegemônico e da padronização de saberes, de condutas, desejos e sentimentos. É uma tentativa de libertação da situação de opressão. A aprendizagem, nesse contexto, por meio do diálogo com as classes oprimidas, representa a valorização dos diferentes saberes e a articulação entre o sonho de quem sonha com o que se concretiza na base na ação humana.

Para os detentores do poder, a exclusão é uma das principais formas de controle social. Excluir da escola, da sociedade, do acesso ao mercado de trabalho, dos projetos de leitura etc., resulta na degradação da espécie. Considerando que ninguém é capaz de ter domínio sobre o conhecimento, pois todos nós sabemos alguma coisa e todos nós ignoramos alguma coisa, o aprendizado é uma possibilidade de alcançar a tão sonhada mudança, vinculada a um projeto de sociedade que leve em consideração a diversidade dos sujeitos e de seus saberes.

Esta é, sempre, a certeza dos autoritários, dos dogmáticos, de que sabem o que as classes populares sabem/ de que sabem o que elas precisam, mesmo sem falar com elas. Por outro lado, o que as classes populares já sabem, em função de sua prática social, é de tal maneira “irrelevante”, “desarticulado”, que não faz sentido para autoritários e autoritárias. O que faz sentido para eles e para elas é o que vem de suas leituras, e o que escrevem em seus textos. É o que já sabem em torno do saber que lhes parece fundamental e indispensável e que, em forma de conteúdos, deve ser “depositado” na “consciência vazia” das classes populares (Freire, 1996, p. 60).

A organização do ensino por parte do educador não constitui um mero cumprimento burocrático dos sistemas de ensino, desde a seleção dos conteúdos até a consideração dos saberes de cada público. Há uma resistência contra os fatores hegemônicos e excludentes. Para Kleiman (2001), o letramento está relacionado às práticas cotidianas de uso da leitura e da escrita em que as experiências de leitura aprimoram e consolidam aprendizagens e propiciam a elevação do nível de letramento da população.

Acerca do projeto de extensão mencionado por Godinho e Julião (2019), a cada encontro, as intervenções das participantes evidenciam uma grande capacidade de todas em estabelecer nexos entre o texto literário e a vida das autoras das obras lidas, promovendo várias intervenções e debates. Essas intervenções não se restringem a relatos pessoais, mas abrangem reflexões sobre as condições de vida das mulheres, a violação de seus direitos, a violência doméstica e os estereótipos de gênero reproduzidos no âmbito familiar, inclusive entre os familiares mulheres.

Nessas condições, de acordo com os autores, os projetos de leitura, embora não sejam suficientes para compensar a ausência de todas essas experiências de leitura, ainda assim criam espaços de leitura coletiva, reflexão sobre o texto literário e, de algum modo, incentivo ao hábito da leitura que atinge outras mulheres, além das que frequentam a escola, provocando mudanças pessoais e sociais, em consonância com a construção de uma sociedade mais justa, humana e igualitária.

Algumas considerações

As práticas de leitura e escrita ainda são subsidiadas por ações de cunho terapêutico, disciplinamento e como prática evangelista. A remição pela leitura apresenta descontinuidades com o nível educacional da população prisional (a maioria possui o Ensino Fundamental incompleto) e com abordagens relacionadas à realidade das mulheres-educandas, a exemplo de leituras sobre a questão de gênero. Diante desse cenário, a autoestima e a formação ética são perspectivas que permanecem no campo da idealização de uma educação transformadora.

As práticas de leitura e escrita são resultantes de um processo que considera a remição da pena pela leitura, mas também, em uma dimensão mais integradora dos saberes e práticas sociais, considera a leitura como porta de acesso à EJA e as políticas educacionais como direito humano. A leitura de textos literários e não literários, estimulam o pensamento autônomo, a problematização da realidade e a proposição de possibilidades de mudanças nesse contexto.

As rodas de leitura, por exemplo, partem de uma metodologia que contribui para a ampliação das habilidades de leitura das mulheres-educandas, permitindo o diálogo com diferentes saberes e o exercício de imaginação, da criatividade e da reflexão que a literatura suscita.

A experiência realizada no presídio feminino por Godinho e Julião (2019) possibilitou observar que a roda de leitura aproxima as mulheres, promovendo espaços de solidariedade e, ainda, de partilha de ideias, lembranças, medos e risadas, pela identificação entre as pessoas que, em seu dia a dia, vivem cercadas de hostilidade, rivalidade e desconfiança, seja pelo tratamento das agentes penitenciárias, seja entre as próprias detentas.

Os projetos vinculados à remição da pena pela leitura, a priori, devem levar em consideração que a população encarcerada é constituída de sujeitos de direitos e acessar a escola e os níveis mais elevados do conhecimento é uma possibilidade de ascensão social e humana.

A garantia do acesso as práticas de leitura e escrita sem articulação com a EJA tende, na visão de Godinho e Julião (2021), a precarização do direito à educação, já bastante insuficiente nos estabelecimentos prisionais do país. Por não garantir a elevação de escolaridade, a remição pela leitura não deveria priorizar os detentos que não têm acesso à escola, como normatizam alguns estados em suas leis sobre o tema. Ao contrário é imprescindível garantir matrícula a toda população prisional com baixa escolaridade, em consonância com a oferta de atividade complementares para a escolarização.

O direito à leitura em contextos de privação de liberdade reforça a necessidade de combater as desigualdades sociais e educacionais uma vez que acaba privilegiando uma pequena parcela de detentos com escolaridade básica completa ou Ensino Superior. Outro aspecto se refere ao gênero textual exigido para a participação no projeto, visto que não se aproxima das práticas de letramento presentes no cotidiano dos detentos.

Assim, valorizar as experiências de leitura e escrita das mulheres-educandas é indispensável para a promoção de uma sociedade mais democrática e inclusiva. Nessa direção, salienta-se que não deve caber ao Estado definir quais livros a pessoa privada de liberdade deve ou não ler, nem fazer da política de remição de pena pela leitura, pretexto para o ensino de valores ou comportamentos, pois a literatura acaba sendo usada para outras finalidades. Nesse cenário, a remição pela leitura transforma-se em um instrumento de catequização, agora não mais dos indígenas pelos jesuítas, como no século XVI, mas de controle e vigilância das mulheres em situação de cárcere, tornando a educação mais uma forma assistencialista de pensar a organização social e educacional. Isso posto é de suma relevância provocar reflexões para possíveis mudanças nesse âmbito, rompendo com práticas legitimadoras da opressão.

Referências

BRASIL. Lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para dispor sobre a remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12433.htm. Acesso em: 15 out. 2018.

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Publicado em 19 de dezembro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de; TAVARES, Suzianne Silva. A leitura e a escrita na escola prisional feminina: um diálogo a partir de Paulo Freire. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 49, 19 de dezembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/49/a-leitura-e-a-escrita-na-escola-prisional-feminina-um-dialogo-a-partir-de-paulo-freire

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