História digital

Marcelo Goulart de Oliveira dos Santos

Licenciado em Historia (Unirio) e em Geografia (Faveni), pós-graduado em História e Cultura Afro-Brasileira (UCAM), em Gestão Escolar, Administração, Supervisão, Orientação e Inspeção (Única/Prominas) e em Biblioteconomia e Gestão de Bibliotecas Escolares (Única/Prominas)

O assunto abordado por Anita Lucchesi em seu artigo História e historiografia digital: diálogos possíveis em uma nova esfera pública traz uma crítica sobre a “era digital”, realçando seus argumentos baseando-se em outras referências e alertando em como a mídia digital pode ser ruim para ser objeto de estudo da História. Ela mostra que a internet se apoderou da história, o que ela vê como um grande problema, pelo fato de ser um mecanismo de pesquisa, em que se encontram diversas postagens de trabalhos com temas históricos. Ela mostra que em locais no EUA e em algumas bibliotecas se usa essa ferramenta para as pesquisas históricas.

Os alunos, quando têm pesquisas a fazer, na grande maioria das vezes buscam a internet para auxiliá-los e deixam de lado os livros didáticos e bibliotecas, ou seja, eles preferem navegar na internet, pelo fato de ser mais rápida a pesquisa.

O Google se tornou uma grande ferramenta para os alunos pelo fato de possuir enorme possibilidade para pesquisar o que quiser em pouco tempo. A internet possui riqueza de informações, mas não são aproveitadas de maneira correta pelos alunos. Lucchesi, em seu artigo, faz crítica sobre a era digital na Historiografia contemporânea, que vem sendo debatida desde a metade do século XX (Santos, 2022). A autora cita pesquisadores que defendem a era digital, como Dilton Cândido Santos Maynard, e essa nova esfera pública, como o sociólogo John B. Thompson, que relata as transformações da era digital e aborda a utilização da internet que constitui interação na sociedade.

Percebemos que ela usou argumentação lógica, trazendo implicações como causa e consequência; além disso, apresenta referencias que sustentam sua crítica e fala de autores favoráveis a essa mudança tecnológica na historiografia.

Anita Lucchesi revela que as tecnologias sobre História distorcem as informações; a tecnologia distorce as noções de temporalidade e espacialidade, ou seja, a internet nem sempre é confiável. A autora discorda dessa nova era digital e dos estudiosos que dizem ser importante essa tecnologia que permite facilidade nas pesquisas.  Sabemos que os jovens possuem informações que a internet proporciona e deixam de lado as pesquisas em livros, documentos e até mesmo em sites ou blogs feitos por profissionais da área que possuem fontes mais confiáveis.

A História digital é uma abordagem para examinar e representar o passado que funciona em conjunto com as novas tecnologias de comunicação computadorizadas, a internet e os sistemas de software. A História digital é uma arena aberta de produção e comunicação acadêmica, abrangendo o desenvolvimento de novos materiais didáticos e coleções de dados acadêmicos. Por outro lado, trata-se de uma abordagem metodológica enquadrada pelo poder hipertextual dessas tecnologias em fazer, definir, consultar e anotar associações no registro humano do passado. Fazer história digital é criar uma estrutura, uma ontologia por meio da tecnologia para as pessoas experimentarem, lerem e seguirem uma discussão sobre um problema histórico (Cohen et al., 2008, p. 454).

Anita Lucchesi leva aos leitores uma crítica sobre a maneira como está sendo utilizada a era digital; chegamos a concluir que a autora não é contra a tecnologia avançada nem contra a internet. O que ela afirma é que a mídia influencia a sociedade no meio da tecnologia e tira a naturalidade de pesquisar em livros e documentos, entre outros. Com o avanço da tecnologia, podemos encontrar na internet trabalhos prontos com variados assuntos; isso permite que o aluno copie (plagie), estude o tema; sabemos que diversos livros didáticos são mal elaborados, e a ferramenta de pesquisa na internet faz com que os alunos não gastem tanto tempo para pesquisar, já que ali se encontram trabalhos prontos.

A autora registra que não é somente na área da História que a tecnologia atrapalha, mas também na vida social. A tecnologia é muito útil, mas tem seu lado negativo. Anita Lucchesi cita o historiador Dario Ragazzini, que propõe um debate levantando questões como qual História está presente hoje na internet? A autora faz críticas a essa e a outras questões nessa linha de pensamento. Anita Lucchesi mostra exatamente que ela quer falar aos leitores sobre a manipulação digital citada por Robert Darnton e Ragazzini. Ela termina sua crítica citando Anderson: um alerta de que a relação entre a historiografia e seu meio está longe de ser transparente; a nova era digital tem suas manipulações.

Sobre Arquivologia, podemos encontrar alguns estudos e até mesmo congressos que discutem os documentos digitais. A própria definição de arquivo digital comporta o que a Arquivologia chama de "arquivos mutáveis", ou seja, que não possuem forma concreta e podem ser alterados. Segundo o site do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), ligado ao Ministério da Justiça, o documento arquivístico digital contém alguns detalhes que dificultam seu gerenciamento: “a rápida obsolescência da tecnologia digital e a fragilidade dos métodos de conservação, entre outros”. No entanto, os arquivos tradicionais têm dificuldades em preservar seus acervos; o risco de perda de informações é um constante desafio para a Arquivologia, dedicada aos documentos digitais ou não.

Esses projetos, exibindo coleções de dados numéricos, textos, imagens, mapas e sons, criam grandes repositórios, proporcionando espaços nos quais os usuários fazem conexões e descobertas por si mesmos. Tais arquivos aproveitam a massa, a multiplicidade, a velocidade, a reiteração, a reflexividade e a precisão oferecidas pelos computadores (Ayers, 2001, p. 6).

Em função do perigo de que alguns documentos digitais escondam manipulações e falsificações, a Historiografia sempre se dedicou (com a ajuda de ciências auxiliares) ao trabalho de autenticação de suas fontes. Para boa parte da historiografia do século XIX, focada majoritariamente em documentos oficiais, essa era uma parte fundamental da atividade do historiador.

Em seu famoso livro Apologia da História, Marc Bloch também dedicou trechos à discussão dos métodos de verificação da autenticidade; por exemplo, existem casos famosos de falsificações de documentos históricos descobertos mediante análises acuradas. Talvez o documento histórico falso mais conhecido seja a doação de Constantino, cuja falsidade foi sugerida por Lorenzo Valla no século XV. Valla observou que o documento (atribuído ao imperador Constantino em 337 d.C.) tinha palavras que foram anexadas ao vocabulário latino séculos mais tarde por influência helênica ou bárbara. Assim, a data de criação do documento foi posta em suspeição.

No caso de Lorenzo Valla e da Historiografia do século XIX, as ciências que ajudavam a História na crítica documental eram a Filologia e a Estilística, entre outras. Hoje esse papel pode ser elaborado pela informática.

Dependendo da metodologia, o historiador sempre procura fontes de origem e formatos variados para alcançar seu objetivo de pesquisa. Assim, ao pesquisar um projeto de lei (do qual só se conhece a versão final), o historiador poderia consultar as atas da câmara que registraram as sugestões de mudança, o arquivo do partido que apresentou o projeto ou até arquivos pessoais do político proponente, desde que sejam franqueadas ou públicas à consulta. Quem trabalha com legislação imperial, por exemplo, está bem familiarizado com esta busca: tentar encontrar nas atas do Senado ou do Conselho de Estado as discussões que sustentaram a aprovação de tal ou qual lei ou mesmo buscar as impressões pessoais de determinado político registradas em cartas que pertencem a coleções particulares. É assim o processo de pesquisa com "P" maiúsculo: caçar dados que precisam ser vasculhados em diversos arquivos, muitas vezes em localidades diferentes.

O advento da tecnologia digital facilita o acesso aos arquivos diversos, mas resta ainda a atividade de pesquisa em diversas frentes. O que quero dizer com isso é que as dificuldades ocasionadas pelo uso cada vez maior da tecnologia estimularão soluções de pesquisas próprias. Digamos que o historiador dará seu jeito para encontrar as informações que lhe convêm.

Nós podemos fazer mais, alcançar mais pessoas, armazenar mais dados, oferecer aos leitores maior variedade de fontes, podemos levar mais materiais históricos para as salas de aula, dar para os estudantes mais acesso a fontes restritas, aprender de mais perspectivas (Cohen; Rosenzweig, 2005).

Além disso, é preciso considerar a micro-História. Essa vertente historiográfica se notabilizou pelo uso extensivo de fontes das mais variadas espécies. Um dos trabalhos mais famosos do grupo de historiadores italianos que se tornaram porta-vozes dessa vertente é A herança imaterial, de Giovanni Levi.

Durante a pesquisa para esse livro, Levi levantou 32.000 referências nominais aos habitantes de uma comunidade italiana do século XVII, período em que teve em média 232 habitantes. Assim, para alcançar as conclusões de seu estudo, o historiador italiano teve que fazer o cruzamento dos dados extraídos de numerosos documentos de formatos diferentes (inventários e testamentos, documentos da administração real, inquéritos da Inquisição, entre outros – muitos outros).

Por outro lado, isso não significa que melhorias que possam ser pensadas em conjunto com arquivistas devam ser ignoradas. Tudo que estiver ao alcance para permitir o melhor uso dos arquivos é do interesse do arquivista e do historiador.

Os congressos são o espaço por excelência em que essas discussões ganham corpo. Contudo, vale lembrar que a Arquivologia possui diversos objetivos, o que significa que os documentos que se tornaram alvo da atividade do historiador não foram pensados para serem históricos (ou utilizados historicamente). Foram, ao contrário, produzidos para atender a uma função primordialmente jurídica e administrativa (como os inventários, os códices judiciais etc.).

Assim, o arquivista tem como primeira função aperfeiçoar o uso desses documentos tendo em mente a utilização que a justiça e a administração farão deles. Grosso modo, essa é a origem da distinção entre arquivo corrente e arquivo morto. Dessa maneira, o uso que os historiadores fazem desses arquivos não são necessariamente os usos para os quais a produção e o armazenamento deles foram pensados.

Referências

AYERS, E. L. The pasts and futures of digital history. History News, v. 56, nº 4, p. 5-9, 2001.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

COHEN, Daniel J.; ROSENZWEIG, Roy. Digital history: a guide to gathering, preserving, and presenting the past on the Web. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005.

COHEN, Daniel J. et al. Interchange: the promise of digital history. The Journal of American History, v. 95, nº 2, p. 452-491, 2008.

DARNTON, Robert. A Historian of Books, Lost and Found in Cyberspace. Chronicle of Higher Education; American Historical Association, 1999.

LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LUCCHESI, Anita. História e historiografia digital: diálogos possíveis em uma nova esfera pública. XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH. 22 a 26 de julho de 2013.

MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Escritos sobre História e internet. Rio de Janeiro: Fapitec/Multifoco, 2011.

MELUCCI, Alberto. Challenging codes. Collective action in the information age. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

PARADA, Maurício. Lorenzo Valla (1407-1457). In: PARADA, Maurício et al. Os historiadores clássicos da História: de Heródoto a Humboldt. Petrópolis: Vozes/PUC-Rio, 2012.

RAGAZZINI, Dario et al. La storiografia digitale. Torino: Utet, 2004.

SANTOS, Marcelo Goulart de Oliveira dos. Tecnologia e o “ensino-aprendizagem”. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 21, nº 2, 18 de janeiro de 2022.

THOMPSON, John B. Mezzi di comunicazione e modernità: una teoria sociale dei media. Trad. Paola Palminiello. Bolonha: Il Mulino, 1998.

Publicado em 19 de dezembro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SANTOS, Marcelo Goulart de Oliveira dos. História digital. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 49, 19 de dezembro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/49/historia-digital

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