Escola sem Partido e o mito da escola neutra: a importância do sentido político da educação

Thalles Azevedo Ladeira

Mestre em Ensino (PPGEn/UFF), professor de séries iniciais nos municípios de Rio das Ostras/RJ e Casimiro de Abreu/RJ

O Projeto Escola sem Partido (ESP) foi protocolado pelo deputado federal Izalci Ferreira (PSDB-DF) e no Senado tramita um projeto de igual teor, nº 193, de 2016, inspirado na campanha feita por um movimento social e encabeçada por Miguel Nagib após sua filha chegar da aula, em setembro de 2003, relatando que o professor  dela havia comparado Che Guevara, um dos líderes da revolução Cubana, a Francisco de Assis.

A partir de então, esse movimento ficou onze anos em discussão, com uma parcela da sociedade que acredita que há doutrinação política e ideológica nas escolas e que é preciso combatê-la, tornando-se projeto de lei em 2014, ao ser apresentado no Estado do Rio de Janeiro pelo deputado estadual, Flávio Bolsonaro, sob o PL nº 2.974/14; em 2015, ganhou dimensão nacional (Camelo, 2017).

Cabe apontar, segundo Saraiva e Vargas (2017), que o ESP ganhou força e ainda vem se consolidando baseado em grupos religiosos fundamentalistas e grupos políticos de direita e extrema direita. O objetivo de tais grupos é sensibilizar a sociedade para reduzir até conseguir banir por completo qualquer política do Governo Federal, de estados e municípios de valorização das liberdades de gênero e sexualidade e de qualquer concepção política de esquerda presentes no âmbito escolar.

Deve ficar bem claro para nós que a própria legislação reconhece o caráter político da  educação, quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDBEN (Brasil, 1996) e as Diretrizes Curriculares para a Educação Básica (Brasil, 2010) afirmam que as escolas deverão orientar seu trabalho por meio de um projeto político-pedagógico.

Nesse sentido, é possível afirmar que, embora a escola deva mesmo ser sem partido, ela nunca deixará de ser um campo político, a exemplo das escolhas que constituem o currículo escolar, que, por sua vez, são sempre escolhas políticas.

Deve ficar claro também que o Projeto de Lei da ESP já vem sendo aprovado (ainda que sem divulgação nas mídias) em alguns municípios do país, a exemplo de Santa Cruz do Monte Castelo/PR. Entidades como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais (Anajudh LGBTI) foram até o Supremo Tribunal Federal (STF) para denunciar a Lei Complementar nº 9/2014, que instituiu o Programa Escola sem Partido no município; no entanto, nada foi feito a respeito até o momento.

Deve-se dar destaque também ao site Movimento Escola sem Partido, de acesso aberto ao público em geral; o site deixa clara em sua página a suposta doutrinação dos alunos por parte dos professores: “Vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas, [as] escolas se transformaram em meras caixas de ressonância das doutrinas e das agendas desses grupos e dessas correntes” (ESP, 2017). O site ainda incita alunos e pais a denunciar os professores, caso ocorra o que eles consideram ser uma doutrinação, promovendo uma política de coação e intimidação dos docentes.

Apenas para ter uma ideia da dimensão do problema, cabe destacar que existe um menu localizado à esquerda da página, sob a forma de um manual para o controle da ação docente, constituído pelos seguintes links (ESP, 2017):

  • Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar
  • Modelo de notificação extrajudicial
  • Flagrando o doutrinador
  • Planeje sua denúncia
  • Conselho aos pais: “Processem por dano moral as escolas e os professores que transmitirem conteúdos imorais aos seus filhos”.

Cabe evidenciar ainda que o site do Programa Escola sem Partido (ESP, 2017) destaca em sua primeira página um trecho do Projeto de Lei (PL) que tramita no Congresso Nacional, a ser implantado (caso seja aprovado) em todas as escolas do país, com o que entende ser os deveres do professor.

  1. O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
  2. O professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.
  3. O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
  4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.
  5. O professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
  6. O professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula (ESP, 2017, online).

O destaque dado a essa parte do PL na composição da capa do site deixa claro que o ESP visa como foco principal à criminalização docente a partir da vigilância constrangedora do exercício profissional dos educadores, haja vista que, se em algum momento da aula eles emitirem qualquer questionamento acerca da realidade social ou sobre algum aspecto da realidade que soe para o aluno como uma tentativa de doutrinação, poderão ser passíveis de sansões como demissão, dentre outras.

Esse clima de denuncismo que ainda incide sobre escolas ao redor do Brasil ganha respaldo no próprio site do Movimento, na seção intitulada “Flagrando o doutrinador”, ao listar uma série de procedimentos que caracterizariam doutrinação, a fim de estimular os alunos a denunciar os seus professores (ESP, 2017).

O site ainda apresenta outra seção, “Educação Moral”, em que denuncia situações em escolas que estariam atentando contra os valores cristãos e familiares: temas ligados a gênero e sexualidade.

Cabe apontar ainda que, segundo um levantamento realizado pelo Movimento Professores contra o Escola sem Partido,até janeiro de 2018 foram identificados mais de 150 projetos de lei vinculados ao MESP circulando por câmaras e assembleias legislativas de todo o país. Evidencia-se que tais projetos vêm ganhando força no cenário político sem muita divulgação, a fim de evitar as manifestações contrárias e atos de resistência nas localidades em que tais projetos tramitam.

O único projeto que tramita no Congresso Nacional contra o MESP, em esfera federal, é o PL nº 6.005/16, do deputado federal do Partido Socialismo e Liberdade Jean Wyllys (PSOL/RJ), que estabelece propostas que refutam os fundamentos do MESP, instituindo o Programa Escola Livre, que, dentre uma série de proposições, estabelece:

  1. a livre manifestação do pensamento;
  2. a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar, ler, publicar e divulgar por todos os meios a cultura, o conhecimento, o pensamento, as artes e o saber, sem qualquer tipo de censura ou repressão;
  3. o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (Brasil, 2016, p. 1).

É importante evidenciar ainda que o Movimento Escola sem Partido (MESP) tem a simpatia de muitos setores conservadores, reacionários e fundamentalistas de nossa sociedade; setores que, por sua vez, são ancorados por representantes do empresariado ultraliberal ligados ao capital internacional.

Consideramos que a grande isca para captar agregados ao MESP é por meio da estratégia de disseminar uma ideia de que as escolas brasileiras estão cheias de professores desenvolvendo uma doutrinação marxista sobre os alunos e, além disso, estaria ocorrendo o que eles denominam “ideologia de gênero” nas escolas brasileiras; de acordo com eles, é um movimento encabeçado pela esquerda brasileira que visa, grosso modo, ensinar assuntos ligados a sexo e despertar a libido nas crianças, nesse sentido levando muitos a acreditar que se trata de um movimento de destruição da família brasileira.

Isso faz com que o MESP seja visto como um movimento salvacionista da família e, ao passo em que consegue convencer a população dessa falácia, se fortalece no sentido de impor uma realidade de controle e vigilância no trabalho dos professores, sendo ela uma face da precarização do trabalho docente.

Diante disso, fica claro, de modo geral, que esse movimento – diga-se de passagem, político – visa combater não a doutrinação e a “ideologia de gênero” dentro da escola de fato, mas sim qualquer possiblidade de apropriação de conhecimentos críticos e emancipadores, que estimulem a paridade de direitos e organização da classe trabalhadora.

Desse modo, é necessário irmos frontalmente contra o caráter policialesco com que o projeto em questão vem estimulando os pais dos alunos e até mesmo os outros companheiros de profissão a denunciar os docentes que agirem de modo a ser considerado inadequado pelo ESP. Nesse sentido, o site do ESP apresenta um modelo de notificação extrajudicial a ser utilizado para impedir que os professores tratem de temas “indesejados”. Segundo o próprio ESP, tais denúncias trariam benefícios a toda a comunidade escolar:

Pense que, se a notificação produzir o efeito esperado, sua iniciativa reverterá em benefício de todos os alunos do professor notificado, e não apenas do seu filho. Trata-se, portanto, de um serviço de utilidade pública (ESP, 2017).

Torna-se evidente, mais uma vez, a presunção, por parte do ESP, de uma suposta universalidade de seus valores e crenças e o caráter não neutro do movimento. Em virtude de tudo que já indicamos, é preciso deixar claro que o ESP representa mais uma forma de criminalização do ensino na perspectiva crítica, agindo na tentativa de qualificar como doutrinador qualquer professor que trate de temas político-sociais em sala de aula de forma crítica e emancipatória, configurando-se, antes de qualquer coisa, como uma grande afronta ao principio constitucional do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, assim como da liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar e divulgar o pensamento.

Isso nos leva a compreender que precisa ser combatida de modo imediato, no que se refere à educação, a concepção de uma suposta neutralidade. É necessário nos posicionar contra essa concepção neutra de educação, partindo da concepção de que a educação é em si um ato político, conforme aponta Paulo Freire ao afirmar que “é impossível uma educação neutra, que se diga a serviço da humanidade, dos seres humanos em geral” (Freire, 2006, p. 23), do mesmo modo como Saviani indica: “toda prática educacional possui uma dimensão política, e toda prática política uma dimensão educativa” (Saviani, 2012).

Face ao exposto, devemos ter a clareza de que todo professor, ainda que não queira    ou não perceba, carrega consigo uma base ideológica, excludente ou democrática, (Freire, 2006) a favor da manutenção do sistema ou a favor de sua superação.

A esse respeito, Freire (2007) ainda destaca que

o respeito aos educandos não pode fundar-se no escamoteamento da verdade – a da politicidade da educação e na afirmação de uma mentira: a sua neutralidade. Uma das bonitezas da prática educativa está exatamente no reconhecimento e na assunção de sua politicidade que nos leva a viver o respeito real aos educandos ao não tratar, de forma sub-reptícia ou de forma grosseira, de impor-lhes nossos pontos de vista (Freire, 2007, p. 40).

Nesse sentido, consideramos que uma escola supostamente neutra é mais ideológica do que outra, na medida em que não revela suas verdadeiras intenções de alienação dos sujeitos envolvidos, negando a possibilidade de apropriação de uma perspectiva crítica da realidade e da própria humanização do homem, escamoteada em discurso de uma suposta função neutra das escolas e do trabalho do professor.

É importante considerar que essa suposta neutralidade na educação, que é em si um dos balizadores do discurso do movimento ESP, não passa de um viés político-ideológico da classe dominante, cujo objetivo é o cerceamento da liberdade do professores para escolher ou não atuar de modo crítico, emancipatório, revolucionário em sua prática cotidiana e, de igual modo, uma tentativa de negar aos alunos a apropriação de conhecimentos sob uma perspectiva crítica e dialética da realidade social.

Logo, essa “lei da censura” ou “lei da mordaça”, como vem sendo chamada pelos pesquisadores e educadores de renome contrários a ela, configura-se como sendo um ataque brutal à profissão docente na medida em que representa uma imposição da flexibilização do fazer docente, além de ser mais uma forma de cerceamento e controle da prática do professor sob pena de ser criminalizado; mais do que isso, representa um ataque a toda a classe trabalhadora de modo geral (a saber, um ataque político e ideológico), a quem historicamente já vem sendo negado o direito de acesso a um saber crítico e emancipador pela burguesia dominante.

Além disso, devemos ressaltar como o MESP pode ser extremamente adoecedor para os professores, sobretudo no âmbito emocional e psicológico, pois não é nada saudável trabalhar em condições de censura, de cerceamento e de controle de sua ação pedagógica, com dúvidas constantes sobre o que dizer e/ou como abordar determinado assunto, sob pena de receber advertência da equipe gestora; processado por pais de alunos ou até mesmo ser exonerado de seu cargo. Ou seja, trata-se de um movimento que visa levar medo, insegurança e mais adoecimentos para os espaços escolares.

Referências

BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 193, de 2016. Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o "Programa Escola sem Partido". Brasília, 2016.

CAMELO, E. A. N. A. Escola sem Partido e as implicações para a prática docente. In: VI SEMANA DE INTEGRAÇÃO, 2017, Inhumas-GO. Anais... Inhumas: UEG, 2017. v. 4.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: três artigos que se completam. São Paulo: Cortez,  2006.

______. Política e educação. 8ª ed. São Paulo: Villa das Letras, 2007.

MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO (MESP). Introdução. Disponível em: http://escolasempartido.org/. Acesso em: 10 jan. 2023.

PROGRAMA ESCOLA SEM PARTIDO (ESP). Programa. Disponível em: https://www.programaescolasempartido.org/. Acesso em: 15 jan. 2023.

SARAIVA, Karla; VARGAS, Juliana. Os perigos da Escola sem Partido. Teias, Rio de Janeiro, v. 18, p. 68-84, 2017.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 2012.

Publicado em 07 de fevereiro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

LADEIRA, Thalles Azevedo. Escola sem Partido e o mito da escola neutra: a importância do sentido político da educação. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 5, 7 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/5/escola-sem-partido-e-o-mito-da-escola-neutra-a-importancia-do-sentido-politico-da-educacao

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