Língua, colonização e ensino: a língua que ensinamos e a língua que precisamos desconstruir para ensinar

Marcela Maria Almeida Silva

Mestranda em Estudos Linguísticos (PPLIN/FFP-UERJ), pós-graduanda em Saberes e Práticas na Educação Básica (Cespeb-UFRJ) e professora de Língua Portuguesa da rede estadual do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ)

A constituição da língua nacional: entre a independência e a colonização

Língua e ideologia são conceitos indissociáveis. Ao longo da história da Linguística, autores como Bakhtin, Pêcheux, Althusser e tantos outros já se debruçaram sobre a dinâmica dessa relação. De acordo com Magda Soares (1998, p. 53), o ensino de um conteúdo pode ser analisado sob perspectivas diversas, mas, em relação à reflexão sobre o ensino de Língua Portuguesa, é preciso levar em conta essa indissociabilidade, sendo especialmente relevantes as perspectivas linguística e sociopolítica de análise. Estas, por sua vez, entrecruzam-se, de modo a articular a compreensão das concepções linguísticas imbricadas no desenvolvimento de propostas de ensino da língua e as condições materiais que propiciaram a produção de tais propostas.

Refletindo sobre tais condições com base na formulação de Magda Soares, parece oportuno mencionar aqui a pesquisa desenvolvida por Eni Orlandi nos anos 1980, a partir de uma parceria firmada entre a Unicamp e a Universidade de Paris a respeito do desenvolvimento das ideias linguísticas no Brasil. De acordo com a autora (2001), a gramática brasileira nasceu no século XIX e seu nascimento está intrinsecamente ligado ao ensino da língua no Brasil, tendo contribuído decisivamente para o estabelecimento da identidade linguística do português do/no Brasil como um novo espaço-tempo diferente do espaço-tempo da língua de/em Portugal. A construção de um saber metalinguístico – o que pressupõe o processo de gramatização – está, pois, na base de constituição da língua nacional.

Entretanto, conforme Guimarães e Orlandi (1996, p. 14), “a língua e os instrumentos linguísticos de gramatização são objetos históricos que estão intimamente ligados à formação do país, da nação, do Estado”. Em outras palavras, apesar de ter “desterritorializado” o português de Portugal, o estabelecimento sistemático das bases linguísticas do português do/no Brasil não está, pois, descolado da história da colonização brasileira. Ao contrário: é inegável que a colonização teve papel preponderante na constituição dos saberes linguísticos brasileiros, o que engloba também uma longa história de apagamentos e silenciamentos. Bethânia Mariani (2004) afirma que a colonização linguística é

um processo histórico de confronto entre línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos dessemelhantes, em condições assimétricas de poder tais que a língua colonizadora tem condições políticas e jurídicas para se impor e se legitimar relativamente à(s) outra(s), colonizada(s).

A concretude dessa definição parece irrefutável. Afinal, a história vigente do Brasil, como vem sendo escrita e contada há mais de quinhentos anos, tem se estabelecido como a narrativa eurocêntrica da constituição de uma nação e de um povo a partir da ótica – e também da língua – dos colonizadores sobre os colonizados, dos portugueses sobre os povos originários, dos brancos sobre os indígenas e os negros, do patriarcado sobre as mulheres, dos dominantes sobre os explorados, dos “vencedores” sobre os “vencidos”, dos “heróis” bandeirantes e militares homenageados nos livros escolares, monumentos e praças, dos “letrados” na língua do colonizador, a despeito da produção linguística de negros e indígenas marginalizados e esquecidos, dos que tiveram e têm direto a voz suplantando os que tiveram sua história, suas formas linguísticas originárias, sua cultura e sua própria existência silenciadas. Essas aparentes dicotomias podem ser compreendidas, a meu ver, como um processo tanto dialógico quanto dialético, que está na base de compreensão da nossa língua porque está na base da nossa própria identidade como povo.

Escola no Brasil: escolarização para quem?

No bojo de uma colonização enraizada em todas as dimensões da sociedade brasileira – o que inclui o direito (ou não) à educação –, a história da escola no Brasil mostra que o acesso à escolarização era privilégio das classes mais abastadas, que já possuíam domínio razoável de uso das regras e funcionamento padrão da língua e para as quais a metodologia de ensino da Língua Portuguesa servia mais como aprimoramento da “norma culta” (Soares, 1998, p. 54), aplicada a um dialeto padronizado e socialmente aceito, já internalizado. Isso delimita, sem dúvida, as condições sociopolíticas que definiram os parâmetros linguísticos de um fazer pedagógico voltado para o ensino da língua como “sistema”.

Nos anos 1960, com a democratização da escola, novas condições sociopolíticas orientaram a reformulação dos parâmetros linguísticos que fundamentaram a didatização dos conteúdos a serem ensinados. Se, por um lado, a escola deixava de atender prioritariamente as classes privilegiadas, levando as filhas e os filhos da classe trabalhadora a ocupar as carteiras das unidades de ensino, por outro, a ditadura empresarial-militar passou a depositar sobre a educação a responsabilidade de produzir mão de obra para o franco desenvolvimento do capitalismo, instrumentalizando os conteúdos para atender à demanda de qualificação profissional do mercado.

A redemocratização do país alterou novamente as condições sociopolíticas determinantes para o planejamento das ações pedagógicas. Novos estudos e trabalhos acadêmicos aplicados ao ensino da língua passaram a ser publicados, e a necessidade de reformulação conteudística e metodológica passou a ser pautada como uma nova visão de gramática, de produção de texto e autonomia discursiva. Entretanto, o apagamento das crianças e jovens das classes populares, para as quais a escola não fazia parte da rotina até os anos 1960, é um dado histórico que não pode ser secundarizado.

Deslocamentos epistemológicos e a possibilidade de formulação de uma outra abordagem pedagógica sobre língua, linguagem, fala e discurso

Além da colonização linguística e do recorte de classe da escola no Brasil como dados históricos basilares, Eni Orlandi (2009), apresenta dois conceitos que abarcam esses elementos sociopolíticos que me parecem muito pertinentes para compreender, hoje, a dinâmica padronização versus movimento, tão frequente no campo dos estudos linguísticos: os conceitos de língua imaginária e língua fluida. A partir desses conceitos, a autora contrapõe a perspectiva de uma língua-padrão constituída, além dos elementos imbricados na colonização, por uma normatividade inatingível e a língua em sua materialidade e historicidade – tangível, por um lado, mas difícil de mapear, de sistematizar, por outro.

A língua que pensamos “saber” – e que queremos que nossos alunos dominem – é a língua que Orlandi denomina como “imaginária”, a língua esquematizada, padronizada, oficial, a língua dos especialistas que constroem um imaginário de língua alicerçado sobre esquemas institucionais – incapazes, porém, de circunscrever todos os aspectos dinâmicos da linguagem. A língua fluida, tão fluida, livre e incontida quanto o curso de um rio, é a língua das experiências, da concretude, da materialidade, uma língua em constante movimento e transformação, como em constante movimento e transformação estão também a vida, a história, a sociedade e os próprios sujeitos falantes da língua. Segundo Orlandi (2009, p. 18),

em nosso imaginário (a língua imaginária) temos a impressão de uma língua estável, com unidade, regrada, sobre a qual, através do conhecimento de especialistas, podemos aprender, temos controle. Mas na realidade (língua fluida) não temos controle sobre a língua que falamos, ela não tem a unidade que imaginamos, não é clara e distinta, não tem os limites nos quais nos asseguramos, não a sabemos como imaginamos, ela é profundidade e movimento contínuo. Des-limite.

Os conceitos de Eni Orlandi me remetem, quase inevitavelmente, à famosa dicotomia saussuriana entre língua e fala, numa tentativa de compreender as relações de mão dupla entre a dimensão institucional e o vasto campo da materialidade do uso, pautando a descolonização ao apontar como centro analítico a própria materialidade linguística.

Outros autores, ainda que por razões diferentes, também se debruçaram sobre essa recorrente distinção hierarquizante entre língua e fala. Dominique Maingueneau é um deles. Esse analista do discurso francês não tematiza a colonização linguística, como o fazem Orlandi e Mariani, mas sua contribuição para o debate no âmbito da Linguística a respeito do pretenso primado dos estudos gramaticais sobre os estudos discursivos parece-me bastante oportuna para as discussões sobre o ensino da língua. Alguns paralelos com os conceitos de língua imaginária e língua fluida de Orlandi podem ser traçados e contribuir para repensar princípios, processos e métodos.

Propondo alguns deslocamentos importantes, como a substituição do conceito de fala por discurso/prática discursiva – almejando, com isso,superar a interpretação corriqueira de fala como o não tangível ou irregular –, a noção de prática discursiva em Maingueneau acomoda o dado linguístico juntamente com o dado social, além de afirmar o primado do interdiscurso para uma efetiva (e não ingênua) interpretação do conceito de discurso. No artigo intitulado A identidade da Linguística, Maingueneau discute a dicotomia língua-discurso, criticando a distinção, nos estudos da linguagem, entre um núcleo considerado rígido – e por isso mesmo inúmeras vezes compreendido como “legítimo” – que se dedica ao estudo da língua, a partir de seu caráter institucional – como já apontara Orlandi –, e uma outra dimensão considerada periférica ou, como denomina o autor, “paralinguística”, que abraça tudo que se situa fora do domínio padrão de língua. Essa dimensão faz referência à linguagem na medida em que faz sentido para sujeitos historicamente considerados e se aproxima bastante da ideia de língua fluida, de Orlandi.

Maingueneau procura, em sua análise, superar as interpretações que hierarquizam epistemologicamente o objeto dos estudos da linguagem. Em lugar do jogo de valorizações e desvalorizações de base saussuriana, Maingueneau propõe uma outra abordagem, pautada sobre a ideia de planos, abolindo a primazia dos estudos gramaticais sobre os estudos discursivos/sociolinguísticos e defendendo a coexistência das duas abordagens como necessárias à compreensão do fenômeno multifacetado da linguagem.

Se nosso ponto de vista é correto, nenhuma dessas interpretações da oposição entre um centro e uma periferia permite caracterizar de forma adequada a divisão instituída pela pesquisa linguística, já que é o próprio princípio de uma distinção entre um interior e um exterior da “língua” que deve ser questionado. Seria preferível, ao invés de falar de regiões peri- ou para- linguísticas, distinguir dentro do “linguístico” um plano gramatical e um plano hipergramatical. A noção de “plano” nos exime da obrigação de justapor duas zonas em uma mesma superfície. Quanto ao prefixo hiper, ele não se destina a fazer referência a uma linguística mais rica, mais compreensível, mas designa um tipo de abordagem linguística que requer pontos de apoio situados além de uma causalidade estritamente linguística (2008, p. 161, grifo nosso).

De acordo com sua formulação, ao plano gramatical corresponderia a pesquisa centrada na investigação das estruturas da língua, na construção, na medida do possível, de “modelos que articulem suas regras a partir de princípios especificamente linguísticos e não evidentes”. Ao plano hipergramatical, por sua vez, corresponderia a pesquisa que associa as estruturas da linguagem a ordens diversas de causalidade. Essa abordagem é pautada por elementos de análise que estão além do debate estrutural da língua, articulando campos de investigação ditos “extralinguísticos” e que são geralmente atribuídos às noções de “fala”, “discurso” e que extrapolam os domínios do conceito de “língua” (Maingueneau, 2008, p. 161).

Em suma, os planos de Maingueneau funcionam como dimensões de análise não concorrentes entre si. Eles se desdobram, correlacionam-se, coexistem num espaço não excludente de parte a parte e são pavimentados pelas distintas abordagens que se ajustam a eles em suas especificidades epistemológicas. Nenhuma abordagem, pois, é determinante da outra; ambas se constituem como pontos de vista diversos, localizados em planos distintos. A aplicabilidade dessa perspectiva de análise poderia ser bastante profícua ao ensino da língua na Educação Básica, já que a ainda atual primazia da “norma culta” sobre as “variantes” poderia evoluir para um ideário linguístico baseado na apropriação da materialidade linguística e na autonomia do sujeito face às variadas situações de uso da língua.

A língua que ensinamos e a língua que precisamos desconstruir para ensinar: considerações finais

Refletindo sobre as formulações de língua imaginária/língua fluida de Orlandi, sobre os planos de abordagem de Maingueneau, sem nos esquecermos de que a colonização linguística e o recorte de classe da escolarização estão na base desse debate, parece evidente constatar que a estrutura de ensino-aprendizagem do ensino da nossa língua nos segmentos da Educação Básica precisa continuar sendo objeto de pesquisas, seminários, conferências, reformulações, ressignificações. A despeito de uma concepção pedagógica que situe o alunado no debate da história de constituição da língua que falamos, a estrutura programática vigente na maioria das redes públicas e na rede privada de ensino ainda está centrada exclusivamente na apreensão da “língua padrão”, “oficial”, da “norma culta”, de uma língua-sistema encapsulada em manuais, tantas vezes herméticos, e nos planejamentos pedagógicos engessados que se repetem ano após ano.

Não obstante a democratização da escola, secretarias municipais, estaduais e proprietários de instituições de ensino seguem apostando no conteudismo, na competição interna, na meritocracia, promovendo uma concepção de ensino-aprendizagem da língua centrada na padronização, nos resultados, médias, metas e notas de corte.

Ainda que estudos sobre a necessidade de coadunarmos planos de abordagem não hierarquizantes e que apostem na autonomia linguístico-discursiva como valor a ser promovido no ambiente escolar venham sendo desenvolvidos país afora, o “falar bem e escrever bem”, os juízos de valor elitistas, o preconceito linguístico, a higienização operada pelo(s) recorte(s) de classe ainda prevalecem nas nossas escolas e na sociedade.

Apesar das pesquisas e esforços para a efetiva reformulação das metodologias ativas, o alunado, via de regra, não se apropria da concepção de língua-sistema adotada pela escola. A subjetividade, em não raras ocasiões, acaba sendo constrangida e contida no conceito de “erro”, ou, quando tolerada, restringe-se às chamadas “variantes”, as quais, contudo, estão sempre aquém do dito “conteúdo gramatical”. Obviamente, não se trata aqui de “cancelar” a gramática, mas de ressignificá-la, situando-a, como abordagem legítima, ao lado de uma abordagem de caráter hipergramatical, para citar Maingueneau, igualmente legítima e cujos movimento e fluidez venham instigar o alunado a apropriar-se dos recursos e instrumentos linguísticos capazes de empoderar suas vozes – e não de rotular suas vozes até silenciá-las.

Precisamos superar toda e qualquer perspectiva de língua que alije os nossos estudantes da possibilidade de compreensão do processo histórico de constituição da nossa própria língua – não simplesmente a dos manuais, mas a língua em seu dinamismo, em sua concretude, constituindo-nos por sua materialidade. Seja nos nossos espaços de formação, seja nos espaços de atuação profissional, urge enfrentar o debate sobre a necessidade de serem reelaborados os princípios norteadores dos planejamentos pedagógicos de ensino da língua, seja no Ensino Fundamental, seja no Ensino Médio, sob o viés da descolonização linguística, da efetiva democratização da escola socialmente referenciada e da autonomia linguístico-discursiva.

Referências

Guimarães, E.; Orlandi, E. (orgs.). Língua e cidadania – o português no Brasil. Campinas: Pontes, 1996.

Maingueneau, D. A Análise do Discurso e suas fronteiras. Revista Matraga, Rio de Janeiro, v. 14, nº 20, p. 13-37, jan./jun. 2007.

______. Novas tendências em Análise do Discurso. 3ª ed. Trad. Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1997.

MARIANI, B. A colonização linguística. Campinas: Pontes, 2004.

ORLANDI, E. (org.). História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. Campinas/Cáceres: Pontes/Unemat, 2001.

______. Língua brasileira e outras histórias. Discurso sobre a língua e ensino no Brasil. Campinas: RG, 2009.

______. Ética e política linguística. Línguas e Instrumentos Linguísticos, Campinas, n° 1, jan./jun. 1998.

SOARES, Magda. Concepções de linguagem e o ensino da Língua Portuguesa. In: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua Portuguesa: história, perspectivas, ensino. São Paulo: Educ, 1998.

Publicado em 07 de fevereiro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Marcela Maria Almeida. Língua, colonização e ensino: a língua que ensinamos e a língua que precisamos desconstruir para ensinar. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 5, 7 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/5/lingua-colonizacao-e-ensino-a-lingua-que-ensinamos-e-a-lingua-que-precisamos-desconstruir-para-ensinar

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