A diversidade pretérita e evolução no ensino de Biociências: uma análise de aplicação do PaleoGame

Hugo José Coelho Corrêa de Azevedo

Doutorando em Ensino em Biociências e Saúde (Fiocruz/IOC)

Guilherme Modena Alkmim

Mestre em Educação em Ciências (Unifei)

Silvia Arcanjo Carlos Ribeiro

Mestra em Educação em Ciências (Unifei), professora da rede estadual de Minas Gerais

Sabrina L. Belatto

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

A Paleontologia é uma ciência que se destina ao estudo dos organismos em tempos pretéritos e, como saber escolar, se apresenta como parte do conteúdo de Biologia. No final da década de 1990, diversas propostas surgiram acerca de metodologias de ensino dela nas Biociências (Dantas; Araújo, 2006), desde a criação de um capítulo único para a Paleontologia nos livros didáticos (Silva, 1997), atividades lúdicas promovendo conceitos como extinção, Paleogeografia e Paleoecologia (Fernandes, 2005), até a fabricação de kits didáticos, que podem ser acompanhados de um manual explicativo (Fernandes et al., 2003).

Contudo, Krasilchik (2008) relata que o ensino em Biociências ainda se apresenta majoritariamente descritivo e memorístico, promovendo a acriticidade acerca dos eventos geológicos e sua biodiversidade associada. Assim, é relevante a Paleontologia se tornar foco de estudos e análises sobre estratégias de ensino, visando ao aprimoramento da ciência como saber escolar, buscando evitar negligências acerca de seus conceitos.

A importância do uso de conceitos ligados a diversidade pretérita e tempo geológico se embasa na formação do pensamento crítico do aluno, uma vez que esses conceitos sugerem profundos questionamentos quanto à evolução de organismos e continentes, além de esses conceitos serem contemplados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que a evolução se apresenta como um dos eixos estruturantes (Brasil, 1998; 2018) e, na BNCC, como objeto de aprendizagem (Brasil, 2018).

Com a compreensão da importância e da função dos estudos em Paleontologia no ensino de Ciências, a LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), Lei nº 9.394/96, na seção IV, Art. 35, parágrafo III, afirma que uma das finalidades é a formação crítica do cidadão em seu meio como sociedade (Brasil, 1996). Ou seja, o entendimento crítico da configuração atual da biosfera e seus constituintes depende diretamente do estudo de formas passadas e seus percursos no tempo geológico.

O uso de jogos e gamificações vem sendo uma alternativa para o processo de ensino-aprendizagem em Ciências (Pedroso, 2009), pois, além de inserir um recurso lúdico para esse processo, ele pode se tornar mais atrativo para o educando.

Os jogos podem ser uma forma divertida e envolvente de ensinar ciência. Podem ajudar os estudantes a compreender conceitos científicos complexos, desenvolver o pensamento crítico e a capacidade de resolução de problemas e aumentar seu conhecimento da ciência. Os jogos com temática científica podem cobrir uma série de tópicos. Ao utilizar métodos de aprendizagem interativos e experimentais, os jogos podem também ajudar os estudantes a melhorar a sua compreensão de conceitos científicos. Além disso, os jogos podem fomentar a curiosidade sobre o mundo, sua exploração e a descoberta científica.

Produções estadunidenses já desenvolveram vários jogos sobre Paleontologia e Evolução, que se concentram nessas temáticas tornando esses conceitos complexos mais acessíveis e envolventes para os estudantes. Alguns exemplos de jogos de Paleontologia e Evolução incluem:

  • Fossil Hunters - jogo em que os participantes procuram fósseis e constroem esqueletos para aprender sobre diferentes tipos de dinossauros e criaturas pré-históricas.
  • Evolução: a origem das espécies - jogo de cartas em que os participantes competem para criar espécies que podem sobreviver e prosperar em diferentes ambientes.
  • Jurassic Park Builder - jogo de simulação em que os participantes constroem seu próprio Parque Jurássico e gerem o ecossistema dos dinossauros dentro dele.
  • Fossil Formation - jogo em que os participantes aprendem sobre o processo de formação fóssil e utilizam esse conhecimento para identificar diferentes tipos de fósseis.

Ao praticar esses jogos, os estudantes podem aprender sobre evolução, extinção, formação de fósseis e a diversidade da vida na Terra. Podem também desenvolver o pensamento crítico e a capacidade de resolução de problemas à medida que navegam pelos desafios de cada jogo. Todavia, para a sala de aula e em solo brasileiro, há um déficit de produção de jogos sobre essas temáticas, principalmente disponibilizados em língua portuguesa.

Longo (2012) destaca que o uso dos jogos é uma quebra dos paradigmas tradicionais do ensino, pois com eles o professor oferece uma gama maior de possibilidades de intervenções pedagógicas do que ocorria no passado – estritamente giz e quadro. O objetivo deste artigo foi usar o jogo PaleoGame como estratégia de ensino de Paleontologia e Evolução para relatar sua experiência de validação.

Metodologia

O jogo foi elaborado no Programa de Pós-graduação Lato Sensu em Ensino em Ciências sediado no Instituto Federal do Rio de Janeiro, atualmente depositado no Núcleo de Pesquisa em Ensino e Divulgação de Ciências (Nedic/IFRJ) e disponível para empréstimo.

Caracterizado como um jogo de cartas, o PaleoGame possui como objetivo a construção de uma linha temporal acerca dos tempos geológicos e suas respectivas diversidades. As cartas possuem dois lados de uso, frente (Figura 1) e verso (Figura 2); há também uma carta anexa em que constam as regras do jogo (Figura 3).

Figura 1: Exemplo da parte frontal das cartas do PaleoGame

Fonte: Nedic/IFRJ.

Figura 2: Exemplo da parte traseira das cartas do PaleoGame

Fonte: Nedic/IFRJ.

Figura 3: Carta anexa ao baralho explicando as regras

Fonte: Nedic/IFRJ.

Ao montar uma linha do tempo geológico por tentativa e erro, o jogo possui como objetivo a inserção do conteúdo paleontológico no ensino de Biociências.

Para a execução da prática, foram utilizadas três escolas de classe média-alta localizadas na cidade do Rio de Janeiro, em Botafogo, Copacabana e Urca. Foram selecionadas turmas do 2º ano do Ensino Médio. A aplicação ocorreu em 2018. A escolha das turmas se baseou na compatibilidade curricular entre o conteúdo do jogo e os planos de ensino das escolas. Foi utilizado à risca o manual de uso; os alunos foram divididos em seis grupos de cinco para realizar a intervenção pedagógica (total de 30 alunos).

A partir desse momento se iniciou a discussão acerca do tempo geológico e diversidade pretérita com a finalidade de recolher dados ligados aos conceitos abarcados. Em seguida, o jogo teve início e não houve mais intervenção dos aplicadores.

Utilizou-se a Análise Textual Discursiva, um método empregado para discutir, referenciar e categorizar informações obtidas nas pesquisas de natureza qualitativa (Moraes, 2003; Moraes; Galiazzi, 2007).

A Análise Textual Discursiva pode ser compreendida como um processo de construção da compreensão acerca das informações inseridas que emergem em uma sequência em documentos ou falas e discursos (Moraes; Galiazzi, 2007), subdivido em três etapas: unitarização, categorização e comunicação.

No processo de unitarização deste relato, utilizou-se a gravação de voz previamente permitida pelos alunos e responsáveis como unidade de análises. Na etapa seguinte, o discurso foi categorizado de acordo com análises conceituais. Na última etapa há uma leitura provinda dos autores acerca dos dados obtidos.

Resultados e discussão

Por razões éticas, os nomes dos alunos e suas respectivas localidades não serão expostos. No Quadro 1 estão os transcritos das falas.

Quadro 1: Transcritos das falas e relatos obtidos durante o processo de aplicação do PaleoGame

Aluno

Transcritos das falas

Aluno 1

A

Este jogo é interessante, pois podemos jogar e ainda entender melhor, mas esse plástico é bem pobre.

Aluno 1

B

Dá para observar essa planta no Museu Nacional.

Aluno 1

C

Eu queria saber mais sobre esse animal aqui. Até quanto ele viveu?

Aluno 2

D

Dá pra aprender especiação com isso?

Aluno 3

E

Olha só o Rio de Janeiro sem a praia!

Aluno 3

F

As plantas são todas iguais! Que sem graça!

Aluno 3

G

Olha, este aqui parece um dinossauro! Mas não é, porque a época dele não é condizente.

Aluno 3

H

Mas nossa, os continentes juntam e separam, juntam e separam. Toda hora!

Aluno 4

I

Eu acho melhor ir ao museu do que ficar vendo cartinha, parece yu-gi-oh!

Aluno 5

J

Não acredito que a Terra teve toda essa diversidade, eu não tenho noção nenhuma de quanto seria um milhão de anos.

Aluno 5

K

Qual a relação dos continentes com os animais? Eles mudam e extinguem todo mundo?

Aluno 5

L

Como os cientistas sabem que teve gelo ali? Ficam marcas nas rochas?

Aluno 6

M

Olha, não existia homem ainda ali!

Aluno 6

N

Paleogeografia é parecido com a Geografia, só que antiga. A mudança dos continentes deve ter influenciado mudanças climáticas e extinções. Mas isso tem que perguntar pros caras lá (os aplicadores).

Aluno 7

O

Se as geleiras derretessem aqui no Plioceno, será que o ser humano chegaria às Américas?

Aluno 7

P

O aumento dos arthropodes tem relação com o clima também? Ou só do oxigênio?

Aluno 8

Q

Nossa! Imagina o quanto quente isso deveria ser!

Aluno 8

R

Os animais ali viventes deveriam ficar muito loucos de calor.

Aluno 8

S

As plantas fossilizadas também petrificam?

Aluno 9

T

Engraçado, tem algumas formas de vida que parecem repetidas, pois parecem com algumas formas atuais.

Aluno 9

U

Não entendi o conceito de tempo geológico, são muito altos todos esses números.

Aluno 10

V

Caramba! 10 milhões de anos! E ainda estamos em 2018!

Aluno 11

X

Se uma montanha crescer ali no meio, bloqueia toda a corrente de ar, né? Aí para de chegar nutrientes para as plantas de lá? Aí como é que fica?

Aluno 11

Z

Será que existe algum continente debaixo d’água?

Aluno 12

A1

Olha! O polo sul tinha vegetação, dava pra pegar um sol lá até!

Aluno 13

B1

Não acredito nisso, congela e descongela rápido assim?

Aluno 14

C1

Esses nomes em latim são difíceis de ler, por que não coloca em inglês?

Aluno 15

D1

Esta planta é uma pteridófita? Eu não entendi.

Aluno 16

E1

Olha! Uma lacraia gigante! Era carnívora? Tem como saber o que o animal comia?

Aluno 16

F1

O jogo é legal, mas prefiro ficar vendo as imagens.

Aluno 16

G1

No Museu Nacional tem um desse aqui! Não sei se é de verdade, mas tem.

Aluno 17

H1

De onde eles tiram esses nomes dessas épocas?

Aluno 17

I1

Dá pra saber se ali era água salgada ou doce?

As categorias explicadas a seguir surgiram do processo metodológico da Análise Textual Discursiva na etapa das análises conceituais. Os conceitos empregados nas falas foram agrupados em categorias convergentes.

De acordo com o transcrito e com o processo de categorização, pode-se dividir as falas e relatos em três grupos categoriais: o jogo enquanto objeto, diversidade pretérita e Paleogeografia e tempo geológico.

Categoria 1: O jogo enquanto objeto

Nesta categoria estão os transcritos relacionados ao jogo físico; a categoria surgiu de transcritos (Quadro 1) que convergiram ao analisar o material do jogo. Nela estão os transcritos A, C1 e F1. Houve críticas ao material (plástico) de que ele era feito, aos nomes em latim presentes nas cartas e às imagens presentes no jogo.

Sobre os nomes em latim, Faria et al. (2011) denotam o fato de que possuir nomenclatura em latim dificulta a compreensão de termos, expressões e conceito. Todavia, torna-se necessário o uso com a finalidade de demonstrar a ciência como processo; entretanto, não se deve cobrar em sala de aula o arcabouço conceitual. Azevedo (2019) discute que o latim no ensino deve agir apenas como termo acessório para poder demonstrar como é feito o processo de nomenclatura, mas o que deve ser o objetivo do processo ensino-aprendizagem é a diversidade, e não decorar nomes em latim.

De acordo com a bibliografia, os nomes presentes nas cartas eram apenas para situar que aquela representação animal ou vegetal possuía de fato um nome e que esses nomes são cunhados do latim.

Categoria 2: Diversidade pretérita

Na categoria estão os transcritos ligados a discussões que os alunos tiveram acerca da diversidade fóssil que se apresentava nas cartas. A categoria surgiu da convergência entre os transcritos que demonstravam discursos sobre os animais e plantas fósseis representados nas cartas. Fazem parte da categoria os transcritos B, C, D, F, G, J, M, P, S, T, D1e E1.

A diversidade pretérita é uma chave de discussão muito importante para a evolução e a diversidade de animais e plantas (Amorim, 2002). Nela pode-se discutir eventos especulativos, seletivos, teoria de ilha etc.

A categoria se apresentou constante no discurso dos alunos enquanto o jogo era aplicado. A notoriedade do interesse em alguns representantes se torna positiva para que a diversidade pretérita se torne alvo de múltiplos estudos. Todavia, ela não é muito explorada no Ensino Básico; apenas representantes vivos e atuais são foco de estudos e de exemplificações no ensino formal (Azevedo, 2019). Dessa forma, o PaleoGame pode ser positivo para discussões sobre o tema em sala de aula.

Categoria 3: Paleogeografia e tempo geológico

Na categoria estão transcritos ligados a discursos de tempo geológico e a posição das placas tectônicas junto aos efeitos delas quando o movimento adere a uma nova configuração continental. Estão na categoria os transcritos H, K, L, N, O, Q, R, U, V, X, Z, A1 e B1.

O tempo geológico e Paleogeografia estão inseridos na mesma categoria, dado que são fatores ligantes entre si, uma vez que há necessidade de milhões de anos para uma nova configuração paleogeográfica.

A discussão que o jogo conseguiu trazer acerca do tema se tornou bastante positiva, pois os alunos conseguiram demonstrar que não possuem noção de tempo geológico, que se dá por milhões de anos, e da Paleogeografia ao observar lugares que atualmente são cobertos por gelo e terem sido no passado dominados por florestas tropicais. Dourado e Leite (2008) discutem em seu escopo analítico a dificuldade de inserir esses temas no ensino formal cotidiano, podendo ser complementados com atividades intervencionistas que tragam os conceitos como foco de discussão, como foi trazido pelo jogo.

Considerações finais

A validação do jogo se tornou positiva perante o discurso entregue, demonstrando que jogos intervencionistas acerca do conteúdo de Paleontologia devem ser usados no âmbito do ensino formal com a finalidade de trazer discussões negligenciadas no dia a dia de uma sala de aula.

O PaleoGame conseguiu trazer às discussões qual era seu objetivo de produção, como a diversidade, Paleogeografia e tempo geológico. Todavia, admite-se que a aplicação do jogo em diferentes localidades pode gerar tais discussões também, dadas as diversidades regionais do Brasil; portanto, o resultado obtido aqui não expressa necessariamente a realidade de outras instituições escolares. Como fator limitante da pesquisa, é necessário ressaltar que as escolas envolvidas neste estudo são de classe média alta, onde os alunos têm total acesso à visitação a museus e a outras fontes de informações que agregam ao seu capital cultural.

 Considera-se validado o jogo como hipótese proposta do artigo. O PaleoGame pode atuar como jogo interativo e, assim, suprir a falta que os conteúdos de Paleontologia fazem no ensino formal.

Vale lembrar que a Paleontologia necessita de intervenções mais significativas para o ensino de Biociências, uma vez que pouco é estimulada no decorrer da formação do estudante da escola básica e na formação de professores.

Referências

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AZEVEDO, H. J. C. C. Introdução ao ensino de Zoologia. Rio de Janeiro: Espaço Acadêmico, 2019.

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DANTAS, M. A. T.; ARAÚJO, M. I. O. Novas tecnologias no ensino de Paleontologia: CD-ROM sobre os fósseis de Sergipe. Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias, v. 1, nº 2, p. 27-38, 2006.

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FERNANDES, M. A. Utilização de réplicas de fósseis no Ensino Fundamental para a construção de mapas paleogeográficos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PALEONTOLOGIA/CONGRESSO LATINOAMERICANO DE PALEONTOLOGIA, 19/6. Aracaju, 2005.

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Publicado em 28 de fevereiro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

AZEVEDO, Hugo José Coelho Corrêa de; ALKMIM, Guilherme Modena; RIBEIRO, Silvia Arcanjo Carlos; BELATTO, Sabrina L. A diversidade pretérita e evolução no ensino de Biociências: uma análise de aplicação do PaleoGame. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 7, 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/7/a-diversidade-preterita-e-evolucao-no-ensino-de-biociencias-uma-analise-de-aplicacao-do-paleogame

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