Um círculo restaurativo com(o) educação antirracista

Marcelo Ohta

Psicólogo: bacharel (FMU) e licenciado (Mackenzie), especialista em Filosofia e Direitos Humanos (PUC-PR) e em Sistema de Justiça: Conciliação, Mediação e Justiça Restaurativa (Unisul), licenciando em Geografia (Cesumar)

“Bom dia, Mariana. Já reforcei ao seu irmão a importância da participação dele no processo circular restaurativo, marcado para hoje, às 14 horas. Isso vale para você e sua tia, uma vez que o pai de vocês não poderá vir devido ao trabalho, ok? E não se preocupe, pois o processo costuma ocorrer com tranquilidade. Aguardarei todos vocês. Até mais tarde!”

Este foi o aviso que acabei de receber da coordenadora pedagógica, Jacira. Ela trabalha há apenas dois meses na escola pública estadual onde hoje curso o 8° ano, mas é a escola à qual pertenço desde o 3º ano do Ensino Fundamental. Eu tive um primeiro contato com ela quando Jacira habilmente fez uns meninos pararem de me chamar de nerd-gordinha-quatro-olhos e, de forma acolhedora, falou para eu não me importar com isso, explicando que minha imagem de ótima aluna predomina e é reconhecida pela comunidade escolar. Assim, fui provavelmente alvo de inveja de alguns dos estudantes, o que me levou a avaliá-la como uma ótima profissional e como uma pessoa atenciosa. Conhecendo-a melhor, soube que ela é de família indígena, tendo deixado a tribo para fazer o Ensino Superior em Pedagogia, com usufruto da política de cotas de uma Universidade Federal pública, na cidade grande.

Agora vou me apresentar: sou Mariana, tenho 13 anos, sou descendente de italianos e, como exposto pelo bullying verbal, gosto muito de estudar, de ler vários livros, com auxílio dos meus óculos de 5 graus em miopia. Logo, apesar de ir bem em todas as matérias, tenho preferência pela Língua Portuguesa, por causa da Literatura. Meu amor aos livros só não é maior do que meu amor pelo nhoque da minha mãe, Olívia. Ela trabalhava como ajudante de cozinha em um restaurante. Há três anos, faleceu vítima de um acidente automobilístico, provocado por um motorista alcoolizado. Sinto ainda enorme saudade de minha mãe! Na época foi um grande sofrimento para todos. Mas meu pai, Luciano, e meu irmão, Bruno, foram atingidos mais duramente pela tragédia. Por causa de uma discussão entre meus pais, relacionada à educação de Bruno, ele saiu de casa para esfriar a cabeça. Horas depois, o telefone tocou. Era o delegado, dizendo à minha mãe da necessidade de buscar seu filho detido por pichação. Assim ela o fez, após meu pai ter se recusado à tarefa. Eis a ocasião do acidente!

Depois disso, meu pai, caminhoneiro, passou a mergulhar no trabalho, fazendo viagens para lugares mais distantes, ficando dias fora de casa. Minha tia, Alda, irmã de Luciano, que não é muito próxima a nós, vem nos visitar à noite (a contragosto, a pedido do irmão) para ver se está tudo em ordem nos dias em que meu pai está ausente.

Bruno é o meu irmão, três anos mais velho. Por ter sido reprovado, quando estava no 9º ano, época de aulas remotas devido à pandemia da Covid-19, ele está cursando o 1ª ano do Ensino Médio. Estudamos na mesma escola, considerada de boa qualidade, se comparada a outras da região. Diferentemente de mim, Bruno nunca foi de estudar, passando de ano com notas mínimas (e com as eventuais ajudas de colas). Contudo, sua maior dificuldade está na Matemática, que lhe causou reprovação escolar. Meu pai (como minha mãe, concluiu só o Ensino Fundamental), até tentou ajudar Bruno, quando mais novo, com explicações nas tarefas da matéria, porém sem resultado.

Bruno teve dois amigos mais chegados. O Pedro, que continua sendo um companheiro fiel de fuga dos estudos (e que igualmente repetiu o 9º ano), e o Daniel, afro-brasileiro, que resolveu dedicar-se mais aos estudos, por isso se distanciou dos dois amigos para passar no vestibulinho de um colégio afamado pelo curso de Técnico em Enfermagem.

Passo a contar o que acarretou o agendamento daquele processo circular restaurativo. Muitas informações eu obtive do rádio peão escolar, de alguns vídeos gravados, além de ter presenciado a parte final do evento. Há uma semana, Bruno e Pedro agrediram o professor André, de Matemática (que também é meu professor), por ele ter aplicado uma prova surpresa. Estamos no início do mês de junho e o professor chegou à escola no começo deste ano, substituindo o professor que se aposentou. André é angolano e fala bem o português. Um homem negro, de conduta exigente. Gosta de dar aulas com muitas atividades e com abordagens profundas sobre os conceitos, visando o nosso entendimento e não somente a nossa memorização das fórmulas. Nem é preciso dizer que o professor obteve inimigos entre os que não gostam de estudar Matemática.

Fiquei sabendo que, algum tempo atrás, foi deixado no para-brisa do seu carro uma mensagem, com os dizeres “Professor FDP, macaco metido a inteligente, volte com sua Matemática para África!”, de autoria até hoje desconhecida.

Voltando ao evento da agressão, com a prova surpresa em andamento, Pedro começou a xingar André, subindo o tom de voz, usando termos racistas e xenófobos. Num determinado instante, Bruno levantou-se e foi até a mesa, rasgando a prova próxima no rosto do professor. André deu a meu irmão outra folha de prova, dizendo que sua recusa resultaria numa nota zero, mas Bruno repetiu a ação. Pedro, por sua vez, gritou que não faria a prova e sairia da sala; enquanto André segurou Pedro, próximo à porta, e pediu para que se acalmasse, tentando fazê-lo mudar de atitude. Bruno ordenou ao professor que largasse o braço do seu amigo e o chamou de preto metido a besta. Ignorado, Bruno pegou os livros e a mochila do professor que estavam à mesa e os atirou pela janela da sala! Alguns alunos aplaudiram e gritaram palavras de apoio, outros filmaram a cena com celular, mas a maioria ficou em choque, silenciosa. Com a algazarra, eu, a minha professora de biologia, Carla, e alguns outros alunos fomos à sala do professor André. No momento de nossa chegada, presenciei meu irmão dando um chute na perna do professor.

“O que você está fazendo, Bruno?! Pare com isso!” – bradei e corri em direção a ele para contê-lo. Pedro aproveitou o tumulto e saiu da sala. André estava com uma expressão de assustado e a professora Carla, depois de ter repreendido os estudantes apoiadores da agressão, levou o colega até a sala da diretoria. A coordenadora Jacira não estava na escola naquele momento. Com os relatos testemunhais e as filmagens de celular da agressão, a diretora Elvira decidiu pela suspensão imediata de Bruno e Pedro, por três dias, enquanto os outros quatro estudantes que apoiaram os atos foram suspensos por um dia. No final da tarde desse dia, meu pai foi chamado para conversar com a diretora sobre o evento ocorrido que motivou a punição de Bruno. Eu fiquei com meu irmão durante a maior parte da tarde para acalmá-lo. O professor André foi dispensado do restante do dia, não tendo sido possível conversar com ele. Resolvi ligar para a tia Alda para pedir que viesse buscar o Bruno e ficasse com ele naquela noite. Eu voltei para casa com meu pai, conversando sobre o ocorrido, contextualizando o ocorrido e tentando reduzir sua visível irritação e decepção.

No dia seguinte, encontrei o professor André na sala dos professores e lhe pedi desculpas pela agressão cometida pelo Bruno. Contei um pouco sobre a nossa história, como foi a perda da nossa mãe, das dificuldades dele em Matemática e das críticas do nosso pai. André ficou sensibilizado. A coordenadora Jacira também veio falar comigo, oportunidade em que mencionou a realização do processo circular restaurativo para o qual é capacitada, cujo histórico remonta a reuniões comunitárias de povos tradicionais para apaziguamento de conflitos entre seus membros, envolvendo experiências próximas às vividas em sua tribo.

Faço um leve almoço, influenciada pela ansiedade em relação ao processo. Avisto meu irmão, tendo a impressão de que a mesma emoção o atinge. Prefiro deixá-lo a sós com suas reflexões. Nessa semana, entre a agressão e o processo circular, cheguei a conversar com Bruno sobre racismo. Eu sei que nosso pai tem algumas expressões e ideias racistas (e machistas), constatadas quando ele diz que “homem branco não pode saber menos de Matemática do que negros e mulheres”. Bruno inicialmente negou seu racismo, argumentando que seu amigo Daniel é negro. Indaguei se ele ficou feliz por o Daniel ter passado no vestibulinho e Bruno me respondeu que ficou triste, porque os dois estudariam em escolas diferentes. Então, eu lhe disse que é normal que amigos sigam rumos profissionais distintos, mas que a amizade pode continuar fora da escola e mesmo a distância. Meu irmão não fez mais comentários.

Às 14 horas começou o processo circular restaurativo, na sala de audiovisual. Jacira se apresentou como coordenadora pedagógica da escola, formada em Pedagogia, mestranda em Educação e especialista em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa, com a função, no momento, de mediadora da reunião. Ela exibe um breve vídeo, apresentando resumidamente o processo restaurativo e reforçando seus objetivos, princípios e regras, bem como retirando as dúvidas dos participantes. Diz que ali é um espaço democrático e seguro para livre expressão, sendo dada, de forma igualitária, voz para todos os participantes (sentados em formato circular de modo que todos pudessem ver uns aos outros). O diálogo seria construído de modo respeitoso. Todos deveriam ouvir atentamente e falar de forma clara e franca, sem sobreposição à fala do outro, para que todos pudessem refletir, compreender e buscar um acordo de reparação ao dano reconhecido. O compromisso coletivo deve ser pelo seu cumprimento e o restabelecimento das relações interpessoais, tornando superado o conflito. Ali, participam voluntariamente o professor André e seus agressores, Bruno e Pedro, assim como representantes familiares, eu e minha tia (como responsável) e a mãe de Pedro, com alguns membros da comunidade afetada, dois estudantes (um que apoiou a agressão e outro que filmou), a professora Carla e a diretora Elvira.

O primeiro a falar é André, que admite ser rigoroso na atuação docente, pois sabe que sua matéria é importante na formação. Por ter sido de família pobre em Angola, sempre batalhou muito para estudar, o que lhe permitiu concluir a Graduação e o Mestrado, com o apoio fundamental de uma excelente professora de Matemática (e que por isso diverge da ideia de que mulheres não podem ser competentes nesta Ciência). André veio ao Brasil por saber da necessidade de bons professores de Matemática. Parte da remuneração que recebe (dando aulas em três turnos e algumas particulares aos finais de semana) é enviada à sua esposa e casal de filhos que ainda vivem em Angola, os quais deseja trazer para o Brasil. Ele reconhece ter sido muito exigente algumas vezes, movido pela intenção de mostrar gratidão e, sobretudo, seu valor profissional, compensando a oportunidade que foi dada a um estrangeiro como ele.

Bruno diz que possui muita dificuldade para entender Matemática e é chamado de burro pelo pai, cujas ideias racistas foram por ele incorporadas. Pedro, por sua vez, comenta que sempre aprendeu pouco na escola, tem baixa motivação para os estudos e pensa em abandonar o Ensino Médio, preferindo começar a trabalhar (sua mãe discorda dessa decisão), mas preocupa-se com a dificuldade de achar um emprego por já ter ouvido muita gente dizer que os imigrantes, injustamente, tiram vagas de brasileiros.

Outras falas importantes vão surgindo, como a da professora Carla, que comenta não ser fácil ensinar conteúdos de natureza científica para estudantes com tanta variabilidade de interesses, com níveis e formas de compreensão distintas. André concordou com ela e afirmou que estará mais atento aos interesses dos alunos. Referindo-se às pichações que Bruno e outros estudantes fazem nas carteiras, paredes e portas do banheiro masculino, próximo ao pátio, André coloca que pretende abordar o tema ligando-o à parte de codificação e criptografia envolvendo a Matemática. Carla observa ainda que a pichação traz a voz dos não ouvidos! Nessa questão, eu, Bruno e os demais estudantes nunca havíamos nos sentido tão verdadeiramente ouvidos em ambiente escolar como neste processo.

Há o reconhecimento do racismo, do machismo e da xenofobia por parte dos quatro estudantes, razão pela qual a coordenadora compromete-se a criar um núcleo de estudos a respeito das temáticas abordadas pela educação em direitos humanos, conectado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da universidade onde faz o seu mestrado. A questão da saúde mental dos atores escolares, impactada negativamente pela pandemia do covid-19, também é considerada, requerendo-se maior suporte. Ademais, aulas de reforço, apoio pedagógico e tempo para planejamento didático aos docentes, assim como um canal aberto para um maior diálogo entre alunos e direção escolar, constituem temas importantes de intervenção, assumidos pela diretora. Pedidos de desculpas e perdões são trocados. Firmado o acordo coletivamente, o próprio processo circular é objeto de plena aceitação e adesão para usos futuros em casos similares. Satisfeita com tudo isso, desta forma me pronuncio:

“Coordenadora Jacira, gostaria de ser a primeira a candidatar-me para fazer parte do futuro núcleo e da futura capacitação para ser mediadora de conflitos e facilitadora de processos circulares restaurativos, visando à prevenção de violências, à discussão de temas e de problemas importantes no âmbito escolar, assim como à recuperação de vínculos interpessoais e ao reforço do pertencimento comunitário”.

Publicado em 28 de fevereiro de 2023

Como citar este artigo (ABNT)

OHTA, Marcelo. Um círculo restaurativo com(o) educação antirracista. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 23, nº 7, 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/23/7/um-circulo-restaurativo-como-educacao-antirracista

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